As "confusas" e "deselegantes" declarações de Marcelo sobre a Palestina colocam-no "perto de Orbán ou Fico"

3 nov 2023, 22:57

Marcelo quis ter este diálogo em frente às câmaras de televisão: virou-se para o chefe da missão diplomática da Palestina em Portugal, Nabil Abuznaid, e disse-lhe que palestinianos é que começaram esta guerra contra Israel - e pediu moderação aos palestinianos perante o que está a acontecer. Nabil Abuznaid ficou estupefacto e invocou "a ocupação israelita de 56 anos" para se contrapor a Marcelo. Mas Marcelo insistiu: "Eu sei, mas vocês não deviam ter começado" a guerra. E depois foi embora a meio da discussão

Fernando d'Oliveira Neves, que representou Portugal na Organização das Nações Unidas (ONU) durante vários anos, ouviu o que Marcelo disse e começa por reagir assim: trata-se de declarações "confusas" que vão além da posição portuguesa e europeia sobre a guerra no Médio Oriente. "É melhor nunca falar de quem começou o quê entre Israel e Palestina", diz à CNN Portugal o embaixador jubilado.

Ainda assim, o antigo diplomata não acredita que as declarações do Presidente da República causem um embaraço diplomático, até porque Marcelo Rebelo de Sousa "não disse que são todos os palestinianos". "Não disse especificamente que foi o Hamas, mas não disse que foram todos os palestinianos", vinca.

"Não há problema diplomático nenhum. O representante palestiniano disse o que nós sabemos que eles querem, ter um Estado que Israel está a inviabilizar. Se lá estivesse um representante israelita diria o contrário", acrescenta Fernando d'Oliveira Neves.

Tiago André Lopes, especialista em diplomacia, discorda desta visão. Para o professor da Universidade Portucalense, as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa "carecem de elegância política, que o Presidente da República costuma ter, mas desta vez não teve".

"Não foi parcimonioso, não teve equilíbrio nenhum e, nesta fase, não ajuda. Se Portugal quiser entrar em negociações diplomáticas, este tipo de postura não ajuda. E, acima de tudo, não fazem muito sentido", sublinha.

O tom com que foi dito

O problema também está no facto de as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa irem além daquilo que tem sido dito por Portugal, que tem mantido uma postura próxima da generalidade da política europeia, condenando o Hamas mas chamando a atenção para a necessidade de se entender o contexto do que se passa.

Tiago André Lopes diz mesmo que as palavras do Presidente da República são também "à revelia do que disse o secretário-geral da ONU, António Guterres". "Passar um pano branco sobre o contexto, apontar o dedo quase em tom jocoso... o problema não tanto o que foi dito mas o modo como foi dito, o tom com que foi dito", diz.

E estas declarações também vão contra a posição assumida por Portugal nas Nações Unidas, onde o nosso país votou a favor da resolução apresentada pela Jordânia, que pediu um cessar-fogo (mas sem incluir uma condenação ao Hamas). "A nossa embaixadora esteve brilhante. Apesar de referir que Portugal discordava da ausência de condenação ao Hamas, disse que Portugal não esquecia o contexto [do conflito]", acrescenta o especialista em Relações Internacionais.

Tiago André Lopes lembra ainda a postura que têm assumido os vários líderes europeus, que abordam o assunto sempre com grande cautela. O presidente francês disse, ainda antes de Israel intensificar as operações, que uma entrada na Faixa de Gaza por parte do exército israelita seria "um erro". Emmanuel Macron avançou com uma posição quase consensual na União Europeia mas que não colheu a visão de dois líderes: Viktor Orbán e Robert Fico, primeiros-ministros de Hungria e Eslováquia, respetivamente, que tentam tirar partido de um discurso contra a população muçulmana.

"Estamos à revelia do que disseram os primeiros-ministros de Bélgica ou da Noruega - ou do próprio Macron. Todos os europeus tentam uma postura mais ponderada e Marcelo Rebelo de Sousa coloca-se perto de posturas como as de Orbán ou Fico, que alinharam apenas com Israel mas por causa de alguma islamofobia", conclui Tiago André Lopes.

Os dois pontinhos pretos

Na atribuição de culpas sobre o que se está a passar, Fernando d'Oliveira Neves aponta aos políticos dos dois lados, nomeadamente ao desrespeito israelita por todas as resoluções que saíram do Conselho de Segurança da ONU sobre o problema. "Israel é o maior violador do Direito Internacional e nunca cumpriu uma resolução da ONU sobre o Médio Oriente", nota o embaixador jubilado, referindo que "o ódio é muito antigo e acumulado".

Recordando os tempos de diplomata nas Nações Unidas, Fernando d'Oliveira Neves conta como, por volta do ano de 1980, dois colegas árabes lhe mostraram o mapa da Cisjordânia com "dois pontinhos pretos" - eram os dois primeiros colonatos de Israel em território palestiniano.

"Eles disseram-me que o objetivo era multiplicar aquilo, tornando impossível criar ali um Estado", como estava previsto pela resolução da ONU, que aprovou o Plano de Partilha da Palestina em 1947. Desde então que o território que devia ser palestiniano tem sofrido constantes alterações, com Israel a construir mais e mais colonatos, nenhum deles reconhecido internacionalmente.

Foi isso mesmo que Nabil Abuznaid tentou lembrar a Marcelo Rebelo de Sousa, dizendo-lhe que vivem "sob ocupação há 56 anos". "Eu sei, mas vocês não deviam ter começado" esta guerra, insistiu o Presidente da República, acabando por se ir embora a meio da discussão.

Recuando ainda mais no tempo, Fernando d'Oliveira Martins lembra aquilo a que os palestinianos chama "Nakba" - ou catástrofe. É o nome dado ao êxodo palestiniano quando, em 1948, 800 mil cidadãos foram obrigados a sair de suas casas para que os judeus se pudessem instalar na Palestina.

Por isso mesmo, e reconhecendo o caráter terrorista do Hamas, o embaixador jubilado diz que existe sempre um outro lado. "Que o Hamas é um grupo terrorista, é. Que o ataque foi de uma desumanidade e brutalidade, foi. Que é compreensível a reação imediata dos israelitas, também, mas daí para a frente deixa de ser compreensível", reitera, dizendo ainda que, "como potência ocupante", Israel "tem a obrigação de manter ordem nos territórios que ocupa".

Confundir palestinianos com o Hamas

Dois membros do secretariado nacional do PS, Porfírio e Silva e Isabel Moreira, criticaram as palavras do Presidente da República, considerando que não pode confundir palestinianos e Hamas.

“Parece que o Presidente da República terá dito ao representante da Palestina em Portugal que desta vez foram alguns de vocês que começaram. Será que o Presidente da República também confunde o Hamas com os palestinianos?”, perguntou Porfírio Silva, membro da direção e vice-presidente da bancada do PS, na rede social X.

Porfírio Silva questionou depois “se não seria razoável exigir” a Marcelo Rebelo de Sousa, “no mínimo”, que “não confunda o Hamas e a Autoridade Palestiniana”.

O secretário-geral do PCP lamentou que o Presidente da República tenha "esquecido o contexto histórico" ao dizer o que disse. Numa vigília pela "Paz no Médio Oriente", Paulo Raimundo referiu que Marcelo Rebelo de Sousa deve saber que "a raiz deste conflito tem 75 anos".

Já a líder do Bloco de Esquerda considerou que “envergonha Portugal” o facto do Presidente da República ter dito ao chefe da missão diplomática da Palestina que alguns palestinianos "não deviam ter começado" esta guerra com Israel.

“Em Gaza, o plano de limpeza étnica é executado como punição coletiva sob um argumento - 'alguém do lado palestiniano começou isto'. Dito por Marcelo ao embaixador da Palestina, envergonha Portugal. #NãoEmMeuNome”, pode ler-se numa publicação de Mariana Mortágua na rede social X.

Para a coordenadora do Bloco de Esquerda, teria bastado que Marcelo Rebelo de Sousa tivesse apelado a um cessar-fogo.

O Presidente da República já veio entretanto tentar esclarecer as declarações, dizendo que o "ataque terrorista" do Hamas "serviu como pretexto" para a reação israelita. Marcelo Rebelo de Sousa reiterou que "o mais importante são as pessoas" e que Portugal defende uma solução de dois Estados.

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