“Há sinais de que a utilização de alguns destes navios está orientada para o mapeamento dos cabos submarinos. Isto tudo representa um perigo para a NATO e para Portugal”
A intensidade com que os navios russos atravessam as águas marítimas nacionais não era assim desde o final da Guerra Fria. De navios científicos a submarinos - e até uma fragata que transporta mísseis hipersónicos - ao todo 39 navios russos passaram por águas nacionais desde que começou a guerra na Ucrânia. “Estas ações representam um perigo para as nossas infraestruturas críticas”, explica o comandante João Fonseca Ribeiro, que serviu a Marinha portuguesa por mais de 25 anos.
O especialista considera que, apesar de a passagem de navios de guerra russos nas águas portuguesas ser algo “natural”, o atual contexto de tensão entre Moscovo e a NATO deve levar a um aumento da atenção por parte da Marinha portuguesa. Principalmente por se tratar de uma região por onde passam diversos cabos submarinos, essenciais para as telecomunicações que ligam a Europa ao resto do mundo.
“Estas ações representam um perigo para aquilo que pode ser uma ação militar para com as nossas infraestruturas críticas. Se esta postura se altera, Portugal tem de conseguir defender os cabos submarinos”, defende o especialista.
Um exemplo: durante dois dias, o navio abastecedor vice-almirante Paromov e a fragata russa vice-almirante Kulakov atravessaram os mares portugueses, foram acompanhados pelo olhar atento dos marinheiros do navio NRP Sines da Marinha portuguesa. A fragata vice-almirante Kulakov foi modernizada em 2010 e transporta uma quantidade considerável de mísseis antinavio e antisubmarino e foi adaptada para conseguir transportar a bordo dois helicópteros Ka-27. Com uma tripulação de mais de 300 pessoas que operam o seu vasto e complexo sistema de armamento a bordo, este navio é uma espécie de canivete suíço da marinha russa e uma ameaça constante para os seus adversários. Tem capacidade de combater submarinos mas também outras embarcações, contando com isso com a ajuda de mísseis de precisão e de vários canhões de 100 mm. Além disso, está bem protegida de potenciais ameaças aéreas, com quatro lançadores de mísseis terra-ar.
O navio que acompanhava o Kulakov era o abastecedor vice-almirante Paromov. Capaz de transportar e abastecer grandes quantidades de combustível em mar alto, esta embarcação também pode servir para retirar e transportar os resíduos de navios de guerra, bem como participar em missões de busca e salvamento em várias regiões. Além disso, também possui um heliporto que permite a aterragem de um Ka-27, um helicóptero cuja função é atacar submarinos.
“Esta presença naval é também uma demonstração de força por parte da Federação Russa”, alerta o comandante João Ribeiro.
O "temível" Almirante Gorshkov
É um dos mais evoluídos navios da marinha russa. O Almirante Gorshkov, da classe com o mesmo nome, é a tentativa russa de desenvolver os seus melhores e mais evoluídos navios furtivos. Com um custo aproximado de 230 milhões de euros por unidade, o Kremlin encomendou a construção de dez unidades, embora ainda só tenham sido entregues três.
Desenvolvido e construído na terra natal de Vladimir Putin, São Petersburgo, este navio foi desenhado para ter várias funções em alto mar, ao contrário dos seus antepassados soviéticos. Mas talvez a capacidade que mais assusta os analistas ocidentais é a possibilidade de servir de plataforma para disparar os mísseis hipersónicos Zircon, que têm a capacidade de alcançar alvos até 900 quilómetros a uma velocidade quase intercetável.
No início de 2023, a 12 de janeiro, a Marinha portuguesa acompanhou a passagem deste navio a cerca de 1.300 quilómetros a oeste da ilha das Flores, no arquipélago dos Açores.
Outro dos navios de guerra que atravessaram a costa portuguesa foi o Almirante Grigorovich. É o navio mais caro que passou pela costa portuguesa desde que a Rússia decidiu invadir a Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022. Custou cerca de 460 milhões de euros e entrou ao serviço em 2016. Inicialmente foi construído para reforçar a frota do Mar Negro, mas acabou por ser enviado para a costa da Síria para dar apoio a um dos maiores aliados de Vladimir Putin.
"São armas muito capazes", sublinha João Fonseca Ribeiro.
A função deste navio é ser o escudo da frota. O Almirante Grigorovich foi construído para escoltar navios de guerra, protegendo-os de todo o tipo de ameaças. São capazes de disparar mísseis Kalibr contra navios ou alvos terrestres, bem como mísseis Oniks contra embarcações até 600 quilómetros de distância. O navio produz um escudo de defesa antiaérea para a frota com os 36 mísseis SS-N-12 que traz a bordo. Com eles é capaz de abater alvos a uma distância de 40 quilómetros.
Com um poder de fogo notável, o Grigorovich possui ainda capacidade de disparar dois torpedos de 533 mm que podem ser utilizados contra navios - mas também contra submarinos. Além disso, existem a bordo dois canhões de 100 mm que podem atingir alvos aéreos, marítimos ou terrestres a uma distância máxima de 20 quilómetros.
A bordo segue também um helicóptero Ka-27 especializado em guerra antissubmarina.
Merkuriy, Stoykiy e Soobraziltelnyy
Um dos mais recentes navios de guerra do arsenal russo atravessou águas portuguesas no dia 16 de agosto. Trata-se do RFS Mercuriy, um navio da classe Steregushchiy. Esta embarcação foi lançada ao mar pela primeira vez em maio de 2023 e é um dos mais avançados tecnologicamente, tratando-se de uma embarcação construída com materiais que absorvem o sinal do radar, tornando-se mais difícil de detetar.
Este navio é projetado para detetar e destruir submarinos e navios de superfície inimigos. Possuem sistemas de artilharia, sistemas antimísseis, armas antisubmarino, sonar, radar e hangar para helicópteros.
Este navio pertence à frota do Mar Negro, mas atualmente encontra-se a operar no Mediterrâneo desde outubro de 2023, uma vez que a Turquia não permite desde fevereiro de 2022 a passagem de navios de guerra russos no estreito do Bósforo.
Mas o Mercury não foi o único. Outras duas corvetas da mesma classe passaram por Portugal, tendo sido seguidas por embarcações da Marinha Portuguesa. Trata-se da Stoykiy e da Soobraziltelnyy, duas embarcações com uma enorme capacidade de defesa antiaérea. Ao contrário da Merkury, estas duas embarcações pertencem à esquadra do Mar Báltico.
Krasnodar, o caçador
São pequenos e silenciosos e, por isso, bastante perigosos. O Krasnodar, um submarino da Classe Kilo, é capaz de viajar 7.500 milhas náuticas (cerca de 13.890 quilómetros) à procura do seu alvo sem ser detetado. Para isso foi construído com um revestimento capaz de absorver as ondas de um sonar. Além disso, esta camada ajuda-o a reduzir a sua pegada sonora, o que também o ajuda a ser ainda mais furtivo.
Mas o propósito deste submarino é eliminar submarinos inimigos e destruir embarcações à superfície. Para isso conta com seis tubos para disparar torpedos de 533 mm, que têm a capacidade de ser teleguiados. Pode também transportar a bordo 18 mísseis antisubmarino Starfish.
Versões modernizadas desta classe, como o Rostov-on-Don - que foi gravemente danificando num ataque ucraniano ao porto de Sevastopol, a 13 de setembro -, têm capacidade ainda mais poderosas. Estas versões não só são capazes de disparar torpedos guiados por fios como também estão equipadas para disparar mísseis cruzeiro Kalibr, que podem ser utilizados contra navios, submarinos ou alvos terrestres, como tem acontecido na Ucrânia.
Um destes modelos acabou mesmo por passar em território português, já bem no final do ano. Acompanhado do rebocado ATS Sergey Balk, o submarino Ufa foi monitorizado de perto pela marinha portuguesa. Dias depois acabou mesmo por atravessar o estreito de Gibraltar em direção ao Mar Mediterrâneo.
Para João Fonseca Ribeiro, Portugal e a NATO não devem afastar a hipótese de que exista a presença de submarinos nucleares a operar no Atlântico e nas águas da Zona Económica Exclusiva portuguesa desde o início das tensões entre a Rússia e a Ucrânia. A Rússia possui uma frota de 66 submarinos, dos quais 14 são nucleares e têm capacidade de permanecer em missão durante longos períodos de tempo sem reabastecer.
“Admito que a frequência das operações de submarinos nuclares russos possa ter aumentado. Admito que mantenham patrulhas e admito também que possam ter aumentado a prontidão e o número de meios”, diz João Fonseca Ribeiro.
Os “investigadores”
Entre os vários navios acompanhados pela Marinha Portuguesa destaca-se o elevado número de navios de exploração científica. Aparentemente inócuos, por quase nenhum trazer a bordo armamento, João Fonseca Ribeiro admite que estas embarcações não são livres de ameaças.
Um desses é o Akademik Fedorov, um navio quebra-gelo que foi lançado ao mar no dia 24 de outubro de 1987, ainda durante a União Soviética. Tem capacidade de levar a bordo 172 pessoas a uma velocidade de 16 nós, cerca de 30 quilómetros por hora. Numa expedição em 2007, navegou com mais de 100 cientistas e investigadores a bordo, bem como dois minisubmarinos de alta profundidade para explorar o fundo do Polo Norte.
Outros dos navios detetados pela Marinha portuguesa foi o Akademik Ioffe, também ele um navio de investigação científica. Pertence à Academia das Ciências da Rússia, mais concretamente ao Instituto de Oceanologia. Construído nos últimos anos da União Soviética, esta embarcação foi utilizada para conduzir experiências acerca da propagação de som em longas distâncias no oceano.
Mas entre as passagens de navios ligados a investigações científicas está o Mstislav Keldysh, embarcação que levou o realizador James Cameron a duas expedições ao Titanic, em 1996. Este navio é equipado com dois submersíveis capazes de mergulhar em grandes profundidades. Estes navios são capazes de estudar as profundezas do oceano ao detetar e detalhar com precisão as características que existem no fundo do mar.
“Os objetivos da utilização destes navios estão a alterar-se. E há sinais de que estão orientados para o mapeamento dos cabos submarinos. Isto tudo representa um perigo para a NATO e para Portugal”, conclui João Fonseca Ribeiro.