Eu escrevi o nome da minha filha no abdómen dela ["um relato terrível", "catastrófico"]

CNN , Abeer Salman, Kareem Khadder, Kareem El Damanhoury, Rhea Mogul e Lauren Said-Moorhouse (com Manveena Suri, Clarissa Ward e Kareem Khadder)
24 out 2023, 10:56
Gaza hospital hospitais crianças

"Muitas das crianças estão desaparecidas, muitas chegam aqui com os crânios partidos... e é impossível identificá-las, só através dessa escrita no corpo delas é que são identificadas." Umas morrem, outras sobrevivem - mas com uma "gestão de dor" deste tamanho: "Um dos nossos cirurgiões recebeu recentemente um miúdo de 10 anos com queimaduras em 60% da superfície corporal e ele acabou por não tomar analgésicos". Não tomou porque não os há. Reportagem em Gaza, onde os médicos avisam: os bebés prematuros que dependem do fornecimento de oxigénio vão morrer se não for entregue urgentemente combustível [aviso: este artigo contém descrições e fotografias que podem ferir a sensibilidades dos leitores]

Os nomes escritos nos corpos das crianças expõem os receios dos pais de Gaza no meio da guerra entre Israel e o Hamas

nota do editor: este artigo contém descrições e imagens gráficas; a imagem de abertura deste artigo foi tirada no hospital de Al-Shifa Hospital a 23 de outubro, em Gaza

por Abeer Salman, Kareem Khadder, Kareem El Damanhoury, Rhea Mogul e Lauren Said-Moorhouse, CNN (com Manveena Suri, Clarissa Ward e Kareem Khadder)



Os cadáveres de três crianças jazem sobre um tabuleiro de aço no interior do que parece ser uma morgue de um hospital de Gaza. Uma das pernas de um dos corpos tem as calças puxadas para cima e expõe palavras escritas a tinta preta na pele.

"Recebemos alguns casos em que os pais escreveram os nomes dos filhos nas pernas e no abdómen", diz à CNN Abdul Rahman Al Masri, chefe do departamento de urgências do Hospital dos Mártires de Al-Aqsa.

Abdul Rahman Al Masri conta que os pais temiam que "qualquer coisa poderia acontecer" e ninguém seria capaz de identificar seus filhos.

"Isso significa que eles sentem que são alvos a qualquer momento e podem ser feridos ou martirizados", acrescenta Al Masri.

A tinta preta é um pequeno sinal do medo e do desespero que os pais sentem no enclave densamente povoado, uma vez que Israel continua a bombardeá-lo com ataques aéreos implacáveis em retaliação pelos ataques do Hamas de 7 de outubro.

O supervisor da sala do Hospital dos Mártires de Al-Aqsa, onde os cadáveres são lavados, descreveu este domingo como "um dia excecional".

Recusando-se a dar o seu nome, diz à CNN que o número de mortos durante a noite de sábado para domingo tinha ultrapassado os 200 e fez eco das palavras de Abdul Rahman Al Masri.

"O que notámos hoje é que muitos pais escrevem os nomes dos seus filhos nas pernas para que possam ser identificados após os ataques aéreos ou se se perderem. Este é um fenómeno novo que começou agora em Gaza."

"Muitas das crianças estão desaparecidas, muitas chegam aqui com os crânios partidos... e é impossível identificá-las, só através dessa escrita é que são identificadas."

Nas últimas duas semanas, centenas de crianças foram retiradas dos escombros de edifícios destruídos por ataques aéreos naquele que é um dos locais mais densamente povoados do mundo, muitas das quais ficaram irreconhecíveis devido aos ferimentos.

Com Israel a continuar o seu "cerco total" ao território empobrecido e com os fornecimentos cruciais a ficarem perigosamente baixos, os médicos dos hospitais de Gaza foram forçados a operar sem analgésicos, de acordo com os Médicos Sem Fronteiras.

Leo Cans, chefe da missão em Jerusalém dos Médicos Sem Fronteiras, disse à CNN esta segunda-feira que a escassez de material significava que as operações cirúrgicas estavam a decorrer "sem a dose correta de narcóticos, sem a dose correta de morfina".

"Em termos de gestão da dor, isso não está a acontecer. Atualmente, há pessoas a serem operadas sem morfina. Acabou de acontecer a dois miúdos", disse Cans. "Temos muitas crianças que infelizmente estão entre os feridos. Um dos nossos cirurgiões recebeu recentemente um miúdo de 10 anos com queimaduras em 60% da superfície corporal e ele acabou por não tomar analgésicos".

"Não há qualquer justificação para bloquear o acesso da população a estes medicamentos essenciais", sublinha Cans, que fala também em relatos "terríveis" sobre os pais de Gaza terem de escrever os nomes dos filhos em partes do corpo dos menores para o caso de os pais ou as crianças serem mortos e haver uma maneira de se saber a quem pertencem. Acrescentou que os colegas lhe tinham dito que as famílias dormiam no mesmo quarto porque "querem viver juntas ou morrer juntas".

Os profissionais de saúde também começaram a sentir o impacto da falta de combustível. "O combustível é essencial para as estações de tratamento de água, a fim de dessalinizar a água... Se não há combustível, não há água de qualidade", relata Cans, acrescentando que muitas pessoas estavam agora a beber água não tratada, o que provocou surtos de diarreia.

Num vídeo divulgado no domingo pelo Ministério da Saúde, controlado pelo Hamas, Fu'ad al-Bulbul, chefe do departamento neonatal do hospital Al-Shifa, em Gaza, avisou que a maioria dos bebés sob os seus cuidados morreria se o combustível acabasse.

"Se a eletricidade for cortada, haverá acontecimentos catastróficos dentro desta unidade. A maior parte dos bebés que dependem de ventiladores morrerá porque só podemos salvar um ou dois bebés, mas não podemos salvar todos os bebés", afirma Al-Bulbul no vídeo.

O seu departamento tem 45 incubadoras e trata predominantemente de bebés prematuros resultantes de gravidezes de alto risco.

No domingo, o seu hospital tinha ficado sem surfactante e citrato de cafeína, ambos normalmente utilizados para aliviar os problemas respiratórios dos bebés prematuros.

A maioria dos bebés está em estado crítico e a sua equipa médica, exausta, trabalhou 18 dias seguidos, acrescenta.

Um médico neonatal que trabalha num hospital no sul de Gaza disse à CNN esta segunda-feira que os bebés prematuros que dependem do fornecimento de oxigénio vão morrer se o combustível não for entregue urgentemente no enclave.

No Complexo Médico Nasser, no sul de Gaza, 11 bebés internados na unidade de cuidados intensivos (UCI) neonatais também correm o risco de morrer se não for fornecido combustível ao enclave para ajudar a alimentar máquinas vitais como ventiladores e monitores, diz Hatem Edhair, chefe da UCI neonatal do hospital.

"A maior parte deles são bebés prematuros. Metade deles está em ventilação não invasiva que necessita de oxigénio. Isso significa que metade deles precisa urgentemente de oxigénio e monitores."

Um dos bebés foi concebido através de fertilização in vitro e a sua família queria tê-lo há cerca de 11 anos, segundo Edhair.

"Como posso dizer à família deste bebé que o seu filho vai morrer porque não há oxigénio?"

Hospitais em crise

Entretanto, os hospitais também estão a ficar sem medicamentos, água e eletricidade enquanto centenas de palestinianos feridos continuam a procurar tratamento, dizem à CNN médicos e profissionais de saúde em Gaza.

Mais de 300 pessoas procuraram ajuda no Hospital dos Mártires de Al-Aqsa, em Deir el-Balah, Gaza, depois de Israel ter lançado bombas nas proximidades, na noite de sábado para domingo, afirma Iyad Issa Abu Zaher, diretor-geral do hospital.

A situação tornou-se "catastrófica", acrescentou.

"É impossível para qualquer hospital do mundo admitir este número de feridos. Não há espaço nem camas hospitalares para estes feridos. Os feridos estão à porta das salas de operações e uns em cima dos outros, cada um à espera da sua vez para ser operado."

Israel declarou um "cerco total" a Gaza há duas semanas em resposta ao ataque do Hamas, bombardeando o enclave com ataques aéreos e cortando o acesso de toda a população a alimentos, água e eletricidade.

Pelo menos 1.400 pessoas, a maioria civis, foram mortas no ataque do Hamas, o pior massacre de judeus desde o Holocausto, e mais de 200 foram feitas reféns.

O número de mortos em Gaza desde 7 de outubro subiu para mais de 5.000 e mais de 15.000 feridos, segundo o Ministério da Saúde da Autoridade Palestiniana na Cisjordânia ocupada.

Desde então, os hospitais têm enfrentado enormes desafios, desde a prestação de cuidados a um número esmagador de feridos até ao acesso a material médico que pode salvar vidas, à medida que as bombas chovem e os geradores ficam perigosamente sem combustível.

Os primeiros comboios de camiões de ajuda humanitária foram autorizados a entrar em Gaza a partir do Egipto durante o fim de semana, mas nenhum dos 34 veículos que passaram pela passagem de Rafah transportava combustível.

Segundo cálculos da CNN, faltam a Gaza mais de 7.200 camiões de ajuda humanitária.

O território recebe normalmente 455 camiões de ajuda por dia, segundo as Nações Unidas, o que significa que deviam ter chegado 7.280 camiões entre 7 e 22 de outubro. Por outras palavras, Gaza recebeu metade de 1% - um duzentos avos - da quantidade de ajuda que normalmente recebe.

Os grupos humanitários também sublinharam que o que foi entregue durante o fim de semana não é nada perto do que é necessário.

"É apenas um pequeno começo e está longe de ser suficiente", afirmou a Organização Mundial da Saúde num comunicado no sábado.

No domingo, a agência da ONU que ajuda os refugiados palestinianos advertiu que as suas reservas de combustível se esgotariam em três dias.

Impossibilidade de evacuação

Israel tem avisado repetidamente os residentes para evacuarem a parte norte de Gaza, antes de uma esperada incursão terrestre dos militares israelitas.

O Crescente Vermelho Palestiniano afirma que os militares israelitas emitiram três ordens de evacuação na sexta-feira para o hospital Al-Quds, que está a tratar mais de 400 pacientes e a dar abrigo a cerca de 12.000 civis deslocados.

"Não dispomos de meios para os evacuar em segurança. A maioria dos pacientes tem ferimentos graves", disse o porta-voz Nebal Farsakh à CNN no domingo.

Farsakh disse que 24 hospitais, incluindo o Al-Quds, estão sob a ameaça de "serem bombardeados a qualquer momento devido às ordens de evacuação israelitas".

A CNN não verificou este número de forma independente.

A administração do Hospital Al-Quds afirmou ainda que o exército israelita os tinha contactado repetidamente exigindo a evacuação imediata do hospital, em preparação para um ataque aéreo noturno.

Solicitada a comentar o assunto, as Forças de Defesa de Israel (IDF) responderam dizendo que pediram aos residentes da zona norte da Faixa de Gaza que evacuassem "a fim de mitigar os danos aos civis".

"O Hamas instala intencionalmente os seus meios em zonas civis e utiliza os residentes da Faixa de Gaza como escudos humanos", acrescenta um comunicado das IDF.

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