A gripe já chegou e os especialistas fazem um pedido ao país

3 nov 2023, 07:00
Hospital Santa Maria (Lusa/Tiago Petinga)

Vírus da pandemia veio alterar o padrão da gripe, mas, este ano, e por esta altura, parece estar a repetir-se o que era esperado noutras épocas antes da covid-19. Mas a "aposta forte", avisam os especialistas, tem de ser a vacinação: o comportamento dos vírus, mesmo vigiados e monitorizados, é sempre imprevisível

A vigilância laboratorial dos casos de gripe começou oficialmente no início de outubro e, até agora, só há uma certeza: a época de gripe 2023/2024 "está a ser mais parecida com as épocas pré-pandemia de covid-19", caracterizadas normalmente por um pico de casos no mês de janeiro. 

"Ainda não estamos a ver circulação do vírus da gripe ou do vírus sincicial respiratório (VSR), mas nas épocas pré-pandemia era normal que a circulação destes agentes se iniciasse no mês de novembro. O pico da epidemia de gripe costumava ocorrer em janeiro e, em outubro, a circulação do vírus era baixa e esporádica", explica à CNN Portugal a virologista Raquel Guiomar, responsável pelo Laboratório Nacional de Referência para o vírus da Gripe e Outros Vírus Respiratórios do Departamento de Doenças Infeciosas do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA). 

A covid-19 trouxe alterações ao padrão mais habitual das épocas de gripe: na época de 2020/2021 não houve casos de gripe, "graças a todas as medidas de prevenção da transmissão de vírus respiratórios que foram implementadas, e que tiveram grande efeito na gripe e nos outros vírus", lembra a especialista. Em 2021/2022, o pico da gripe registou-se em abril, um pico tardio ainda na sequência das medidas de contenção da covid-19 - "normalmente, em abril já não temos muitos casos e, nesse ano, em maio ainda havia gripe, apesar da tendência decrescente", lembra Raquel Guiomar. Já a época de 2022/2023 "foi muito precoce, tivemos o pico da gripe em novembro e chegámos à altura do Natal já numa fase decrescente dos vírus respiratórios", recorda ainda a virologista. 

Para este ano, a especialista não quer fazer previsões, até porque "podemos estar daqui a um mês com muitos casos de gripe", admite. Ainda assim, "o padrão, desde o início de outubro, está efetivamente mais semelhante a um padrão pré-pandemia. Não sei se lhe podemos chamar o padrão normal, mas é o padrão a que estávamos habituados", esclarece Raquel Guiomar. 

Na época passada, de 2022/2023, a atividade gripal foi de baixa intensidade, sem consequências graves ao nível da mortalidade e foi nas crianças, entre os 5 e os 14 anos, que se detetou a maior percentagem de casos de gripe (33%), seguidas dos jovens e adultos entre os 15 e os 29 anos (26%), segundo o relatório anual do Programa Nacional de Vigilância da Gripe e de Outros Vírus Respiratórios, apresentado recentemente.

Não são necessariamente más notícias. "O vírus pode não representar um impacto tão grande para a saúde das crianças, mas foi nas crianças que se detetaram mais casos positivos", diz Raquel Guiomar. "A razão para haver maior incidência neste e não noutros grupos etários também tem a ver com a vivência social das crianças, a proximidade que têm entre elas, que proporciona uma fácil transmissão", explica. "Mas não são as crianças que têm a doença mais grave, em Portugal a vacinação só está recomendada para crianças de risco. Está descrito na literatura, até aos sete anos quase todas as crianças contactam com o vírus da gripe e só a partir dessa data começam a adquirir a imunidade natural que, ao longo da vida, as vai proteger para futuras infeções", acrescenta a virologista.

Vírus da gripe em circulação surgiu na pandemia de 2009

Dos dados consolidados até ao momento sobre a atual época gripal, que ainda são escassos, o vírus detetado com mais frequência é o Influenza A, do subtipo AH1N1. "Os dois vírus do tipo A que infetam normalmente a população humana são os do subtipo AH3N2 e o AH1N1", refere Raquel Guiomar. "O H1N1 está completamente adaptado à população humana, surgiu em 2009 na pandemia de gripe e tem circulado ao longo de vários invernos desde então. É um dos vírus incluídos na composição da vacina anual disponibilizada", garante a virologista, que assume que, por agora, não há razões para alarme quanto ao próximo inverno. Este não foi, porém, o vírus que circulou nas duas últimas épocas de gripe: "Em predominância, na época passada, circulou o AH3", indica Raquel Guiomar. 

De acordo com o boletim mais recente, que compila informações da semana de 23 a 29 de outubro, os laboratórios da Rede Portuguesa para o Diagnóstico da Gripe e Outros Vírus Respiratórios notificaram 6.107 casos de infeção respiratória e foram identificados 145 casos de gripe, encontrando-se a doença com "atividade esporádica" mas tendência crescente. A mortalidade, por todas as causas, está "de acordo com o esperado". "Nesta época, foram identificados outros agentes respiratórios em 947 casos", lê-se no documento, que dá ainda conta de uma tendência crescente no número de internamentos por VSR em menores de 24 meses. 

"Este é um vírus [o VSR] que tem grande impacto na saúde das crianças, nomeadamente nas crianças muito pequenas, abaixo dos dois anos, e em bebés prematuros. Essa população tem muitas vezes doença severa, as conhecidas bronquiolites, e por isso foi implementado durante a pandemia um sistema de vigilância dedicado ao VSR e às populações hospitalizadas abaixo dos dois anos", esclarece Raquel Guiomar.  "O que esperamos é que, através de medidas terapêuticas, implementadas na população de risco em Portugal, seja possível evitar impacto neste grupo."

A especialista indica também que este sistema de vigilância, por outro lado, permite dar o alerta e monitorizar a circulação do vírus em períodos que não são habituais. "Neste momento, começou a haver um ligeiro aumento dos casos confirmados laboratorialmente, mas estes sistemas são importantes para detetar a circulação do VSR, em particular, fora do período do inverno, que foi o que aconteceu em 2021: devido às medidas implementadas por causa do SARS-CoV-2, houve uma alteração na circulação dos outros vírus respiratórios" - incluindo no da gripe, conforme referido acima. Quanto ao VSR, Raquel Guiomar diz que a expectativa é a de que os casos aumentem gradualmente nas próximas semanas, e lembra que, atualmente, já existem anticorpos para prevenir infeções respiratórias causadas pelo VSR, administradas às populações de risco, nomeadamente aos bebés prematuros.

Quanto à vigilância da covid-19, "ainda não está completamente integrada no programa nacional de vigilância da gripe a nível laboratorial", que é a área que coordena, explica a especialista do INSA. Ainda assim, desde a época gripal de 2020/2021, em todas as amostras recebidas é feita a pesquisa para VRS e covid-19, além dos vírus da gripe, esclarece Raquel Guiomar. "Isso permite-nos monitorizar qual destes três agentes, que são os mais importantes e com maior impacto na saúde, estão em circulação a cada semana", assinala.

"São doenças com grande impacto na população de risco", frisa Raquel Guiomar, chamando a atenção para a importância da prevenção através da vacinação: a campanha de vacinação para gripe e covid-19 começou a 29 de setembro, "garantindo que toda a população tenha tempo de se vacinar até ao aumento da circulação da gripe e da covid-19, que pode ocorrer nas próximas semanas", admite a virologista. Questionada sobre se administrar as vacinas para os dois vírus ao mesmo tempo pode demover o público-alvo, garante que não: "As pessoas tomaram mais consciência da gravidade que algumas infeções respiratórias podem representar para a sua saúde, e fazer a vacinação em simultâneo até teve um efeito benéfico para a vacina da gripe, graças às pessoas que foram vacinar-se contra a covid-19."

A importância da vacinação 

Filipe Froes, pneumologista e diretor do Serviço de Cuidados Intensivos do Hospital Pulido Valente, em Lisboa, defende que, perante a imprevisibilidade da gripe, a aposta tem necessariamente de ser na vacinação. "Sabemos que a gripe é a principal doença do adulto que é prevenível pela vacinação e que a vacinação é a medida mais eficaz para prevenir a gripe e as suas complicações", declara. 

"Sabemos também, utilizando os dados da época gripal do hemisfério sul, que as vacinas têm boa efetividade e não deveremos ter uma situação catastrófica, tão grave como já vivemos em 2015, mas só podemos fazer essas contas no fim", admite. "Quer em relação à gripe, quer em relação à covid, aquela frase dos prognósticos só no final do jogo aplica-se na totalidade", ironiza. "O nosso dever é prepararmo-nos para o pior e esperarmos o melhor", resume. 

Filipe Froes congratula-se, porém, com os números até agora conhecidos da campanha de vacinação: segundo o mais recente relatório disponível, do final do mês de outubro, tinham-se vacinado cerca de 1 milhão de pessoas contra a covid-19 e 1,2 milhões contra a gripe. "São bons números e temos de os saber manter", diz o pneumologista. "Mas também temos de saber a percentagem da cobertura vacinal dos profissionais de saúde, que não só podem ser vetores de transmissão de doenças mas também são um exemplo de vacinação para a restante população."

O pneumologista corrobora ainda a necessidade de se monitorizar o VSR, tal como já é feito pelo INSA: "Como eu lhe chamo, o vírus sem reconhecimento", diz, brincando com as iniciais. "Fruto da utilização generalizada durante a pandemia dos testes de biologia molecular, conseguimos detetar este vírus e a possibilidade de mudar e melhorar o seu impacto", elogia.

Para o diretor dos Cuidados Intensivos do Hospital Pulido Valente, a "aposta forte" terá de ser sempre na prevenção, dado o comportamento imprevisível dos vírus que nos costumam acompanhar nas estações mais frias. "Temos um novo microorganismo, que é o SARS-CoV-2, que está a evoluir para a sazonalidade; o VRS já existia, mas não tínhamos noção do seu impacto. E temos a gripe, que tem uma grande imprevisibilidade." Para Filipe Froes é, por isso, preciso "trabalhar agora" para "defendermos os nossos doentes" - seja na adoção de comportamentos que dificultam os contágios, seja pela vacinação.

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