Um sistema imunitário que se 'esquece' do vírus, menos pessoas vacinadas e mais frio. Porque é que este H1N1 tornou a gripe A epidémica em Portugal?

8 jan, 07:00
Médico no hospital (Getty Images)

Especialistas dizem que ainda não há evidência científica que comprove uma maior agressividade vírus influenza A (H1N1), subtipo de gripe que tem entupido os hospitais portugueses e congestionado os cuidados intensivos, mas a imunidade ‘pós-pandemia’ pode ainda ser, em parte, responsável pelo atual cenário. A corrida às urgências, dizem, resulta da falta de literacia e alternativa

Os casos de gripe A -  mais concretamente de H1N1 - têm feito soar os alarmes por todo o país: só na última semana do ano foram diagnosticados em hospitais mais de 1.300 casos deste subtipo do vírus Influenza, há sérios constrangimentos no acesso a camas nos cuidados intensivos, um aumento da taxa de mortalidade que poderá resultar deste vírus e os médicos estão preocupados com a baixa adesão à vacina da gripe. 

“Não é um vírus qualquer, tem um passado de má memória, é um subtipo de vírus da gripe que deu origem à grande pandemia de 1918-1919 e que dominou na epidemia de 2009. E agora é o que está a dominar aqui em Portugal”, começa por dizer o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, que explica: “Este vírus vai mudando e o que temos agora não é o mesmo de 1918”. No entanto, ainda assim, “é um pouco agressivo”.

Mas, porque é que este vírus, que não é novo, está agora em força? Ainda não há uma resposta científica para isso, mas Filipe Froes, pneumologista e diretor do Serviço de Cuidados Intensivos do Hospital Pulido Valente, em Lisboa, aponta dois fatores: “menor imunidade natural e menor imunidade vacinal”.

A menor imunidade natural prende-se com o facto de, nos últimos três anos, o vírus Influenza (independentemente do seu subtipo) ter circulado menos ou não ter circulado de todo, o que pode ajudar a explicar o impacto que está a ter agora. 

“O último contacto que os portugueses tiveram com este vírus foi em 2019, no inverno imediatamente antes da pandemia, depois disso não tivemos mais contacto com ele”, diz Manuel Carmo Gomes.  Em 2020 e 2021, continua o epidemiologista, “não houve gripe” e em 2022 houve “uma circulação moderada e mais do tipo B”, já em 2023 “tivemos o H3N2 do tipo A”. “Ou seja, houve quatro anos de interregno em que muita gente não contactou com o H1N1, sobretudo as crianças que nasceram há quatro anos ou menos, e as crianças são o principal disseminador da gripe, apesar de não terem as formas mais graves da doença”, esclarece o epidemiologista.

Gustavo Tato Borges, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, também defende que o menor contacto com o vírus pode ajudar a explicar o impacto que tem agora - até porque, diz,  “no ano passado, no inverno, já não existiam restrições e não assistimos a esta mortalidade e já circulava o vírus da gripe” -, mas recusa a ideia de “perda de imunidade”. O que pode estar em causa, e até “de forma empírica” levar a crer “esta estirpe que pouco mais agressiva”, continua Tato Borges, é o chamado “esquecimento natural das nossas defesas face ao vírus da gripe”. 

“Não acredito que tenhamos perdido imunidade por termos andado protegidos na pandemia, essa ideia não está suportada em qualquer evidência científica, podemos é ter um esquecimento natural das nossas defesas face ao vírus da gripe, ou seja, demoramos mais tempo a reconhecer [o vírus]. Não é um défice imunitário, é uma resposta normal quando há falta de contacto com o vírus”, continua o médico de Saúde Pública.

Manuel Carmo Gomes aponta ainda o clima como um potencial fator nesta equação: uma vez que o crescimento dos casos de gripe e, posteriormente, de mortalidade começou a fazer-se sentir a norte, o especialista crê que o tempo frio possa ter alguma influência. “Talvez haja uma associação ao frio e a uma maior vulnerabilidade. O frio enfraquece a mucosa da orofaringe”, explica. “O excesso de mortalidade começou mais cedo no norte, dá a ideia que o excesso começou numa zona mais fria e veio por aí abaixo”, diz.

Médicos apelam à vacinação

Filipe Froes diz que a menor cobertura vacinal é um fator importante neste cenário crítico causado pelo H1N1. E, em parte, aponta o dedo “a alguma fadiga pandémica”, que tem resultado numa “menor taxa de cobertura vacinal na população de risco” e diz que basta olhar para os números: “Temos 2.2 milhões de pessoas vacinadas, antes da pandemia eram mais de três milhões”. “Um em cada quatro idosos com mais de 75 anos não está vacinado”, alerta.

“A cobertura vacinal para a gripe este ano ficou aquém do desejado, cerca de 61% ao passo que no ano passado foi 81%. Temos aqui, com certeza, muitos vulneráveis que não estão protegidos para a doença”, alerta Gustavo Tato Borges.

Uma vez que o vírus da gripe irá continuar a circular nas próximas semanas, os médicos apelam a que os mais idosos e os mais vulneráveis sejam vacinados, podendo dirigir-se a farmácias para o fazer. 

“Ainda vão a tempo”, diz Gustavo Tato Borges. E Manuel Carmo Gomes destaca o “bom match” que há entre a vacina que está no mercado e o subtipo em circulação que é predominante, algo que o próprio INSA refere no seu mais recente relatório, onde afirma que a maioria dos vírus do subtipo A(H1) “caracterizados até ao momento (73%), apresentam características genéticas semelhantes ao vírus contemplado na vacina contra a gripe da época 2023/2024”.

Utentes com poucas ou nenhumas alternativas às urgências

Os casos de gripe A causados pelo subtipo H1N1 estão a encher os serviços de urgência e também os cuidados intensivos de alguns hospitais. E, para os três especialistas, o que está a falhar é a falta de literacia em saúde e a falta de opções de acesso. 

“O que está a falhar, e muito, e é um problema antigo, que é a falta de literacia básica em saúde. As crianças na escola deviam aprender, como se fez uma campanha contra o tabaco, como se deve fazer quando se tem sintomas gripais”, atira Manuel Carmo Gomes.

Já Gustavo Tato Borges aponta, sobretudo, o dedo à falta de opções, lembrando que há mais de um milhão e 700 mil utentes sem médico de família atribuído e, por isso, a “única porta de acesso que têm ao SNS é através das urgências”. Ainda assim, apela a que liguem para a Linha SNS24, “uma ajuda preciosa” que diz que “não é perfeita”, mas que ajuda a fazer “uma triagem” dos casos que são de urgência, de avaliação em centro de saúde ou que podem ser resolvidos apenas com “descanso, hidratação, paracetamol e ibuprofeno”.

O médico de Saúde Pública destaca ainda que “a grande maioria não terá necessidade de ir às urgências” e apela às pessoas para terem “calma quando olham para os seus sintomas”, devendo procurar um médico em casos de febre há mais de quatro dias, algo que também Filipe Froes recomenda.

O pneumologista também apela a uma maior avaliação dos sintomas antes de uma deslocação às urgências, mas reconhece que o caos que muitos hospitais vivem à boleia deste vírus respiratório deve-se também ao facto de as equipas estarem a trabalhar “na reserva” e ainda no rescaldo do cansaço da pandemia.

Filipe Froes rejeita que os portugueses não tenham aprendido nada na pandemia e defende: “Não podemos repreender, temos de apostar na demagogia”. Por isso, recomenda o regresso do uso de máscara por parte dos mais vulneráveis, de quem tem sintomas respiratórios e de todos que estejam em locais fechados, mal arejados e em unidades de saúde. “Numa sala de espera de um hospital não pode haver uma pessoa sem máscara, nem profissionais de saúde”.

O regresso do uso de máscaras já foi também recomendado pela Ordem dos Médicos.

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