Centenas de professores vinculados admitem deixar a profissão no próximo ano letivo se tiverem de concorrer ao país inteiro

9 jan, 07:00
Escola

Estão entre os cerca de oito mil docentes que vincularam no ano passado, ao abrigo da chamada vinculação dinâmica, e que este ano estão obrigados a concorrer a todo o país. Têm filhos e pais que dependem deles e não concebem a ideia de voltar a dar aulas a centenas de quilómetros de casa. Em última instância, há professores que estão agora no Quadro de Zona Pedagógica 1 (Norte do país) e que podem ir dar aulas para o Algarve já no próximo ano letivo

“Sou professora de Físico-Química desde 2003. Tenho dois filhos, com dois e cinco anos. Faço 160 quilómetros diariamente. Está fora de questão ir para mais longe. Se for o caso, peço exoneração”. “Eu, se ficar longe, desisto, embora me custe muito depois de 21 anos. Como contratada, já ficava perto. Haverá outras coisas para fazer. Já não tenho 20 anos e tenho três filhos pequenos e pais doentes, que nem médico de família têm, a precisar do meu apoio”. Os testemunhos de Tânia e de Liliana são apenas dois das dezenas que Cristiana Oliveira recebe diariamente no grupo de WhatsApp que ajudou a formar e do qual é administradora e que junta apenas professores “filhos” da vinculação dinâmica, lançada no ano passado pelo Governo, com o intuito de acabar com a precariedade da profissão. Só neste grupo, diz Cristiana, são quase mil. A maioria admite deixar o ensino se tiver de ir dar aulas a centenas de quilómetros de casa. 

Cristiana Oliveira, professora de Inglês de 43 anos, é também ela uma professora que arriscou concorrer no último concurso de vinculação, sabendo as regras que a obrigavam a concorrer este ano indiscriminadamente, mas na esperança de que alguém travasse a tempo “esta injustiça”. “A média de idades dos professores que vincularam é de 46 anos… eu tenho 43. Ainda sou uma criança. Não tenho a ilusão de que ia ficar perto de casa, mas achava que ia ter alguma estabilidade”, admite.

Cristiana Oliveira, de 43 anos, confessa-se arrependida de ter concorrido à vinculação dinâmica. 

Cristiana é de Espinho, mas reside em Portimão. Foi dar aulas para o Algarve em 2018, precisamente para deixar de ser saltimbanco. Está agora colocada em Lagoa. É professora de Inglês. Dá aulas de uma disciplina e numa região onde, todos os anos, há falta de professores. Não consegue, por isso, conceber a ideia de ficar colocada para o ano a centenas de quilómetros de casa.  “Tenho um filho de três anos. Adiei a maternidade, precisamente à espera de alguma estabilidade profissional que me impedisse de o deixar para trás ou de ter de andar com ele às costas. Se não ficar no Algarve, o que vou fazer é rescindir. Deixar mesmo de dar aulas, ou mudar para outras funções da Função Pública, se me for permitido”, garante.

Se concorrer, ficar colocada e não aceitar o horário, vai ficar impedida de concorrer durante pelo menos dois anos. Pode apenas concorrer a ofertas de escola e regressa à precariedade que tanto quis ver para trás das costas.

A “ratoeira”

Cristina Mota, do movimento cívico de professores Missão Escola Pública, defende que a penalização tem de ser revista, sob pena de vir engrossar a lista de horários por preencher que todos os anos assola os inícios das aulas.

“Se não ficarem nas zonas em que acreditavam que supostamente iriam ficar, acredito que muitos vão desistir desse horário. Essa penalização tem de ser revista, porque se não vai ser pior a emenda do que o soneto. Já temos tão poucos professores, se tivermos agora algumas centenas a desistirem e a não poderem concorrer nos próximos dois anos, vai ficar muito pior”, alerta.

O movimento Missão Escola Pública já havia classificado a vinculação dinâmica como “uma ratoeira”. Os professores estão seguros de que a vinculação dinâmica tinha como objetivo “colmatar a falta de professores em algumas zonas do país”.

“Quando abriu o concurso, foi lançado um número de vagas em determinados quadros de zona pedagógica (QZP) que era desde logo estranho. Eram QZP onde não costumava haver vagas e, de repente, tinham um número significativo neste concurso. Quando saíram as colocações, a lista de professores ao abrigo da vinculação dinâmica não colocados era enorme. Muitos colegas que vincularam ao abrigo da vinculação dinâmica ficaram sem colocação. Foram sendo absorvidos pelas reservas de recrutamento que continham os horários que não eram permanentes", relembra. 

"Tudo indica que aquelas vagas eram fictícias e que serviram de engodo para os colegas concorrerem, convictos de que, se havia vaga, mesmo que tivessem de concorrer este ano ao país inteiro, ficariam sempre naquele QZP ou ali perto. E é isso que causa indignação. E é isso que nos levou a chamar ratoeira à vinculação dinâmica”, argumenta Cristina Mota.

“Peças de mobiliário”

Lígia Violas e Pedro Calçada, ambos professores de Educação Física, levaram a cabo um inquérito, com respostas recolhidas através das redes sociais, entre 22 de março e 2 de abril. Mais de dois mil professores responderam às questões que colocaram ainda antes do concurso da vinculação dinâmica avançar. Mais de 63% dos docentes que responderam, já diziam que não pretendiam concorrer. Mais de 79% diziam que as alterações ao diploma dos concursos podiam contribuir para abandonar a profissão.

“Sem dúvida nenhuma que o grande problema já era a obrigatoriedade de no ano seguinte concorrer ao país inteiro. Por isso é que tantos admitiam não concorrer e por isso é que um concurso de professores ficou com tantas vagas por preencher. Um dos grandes desconfortos da classe docente tem a ver com esta permanente alteração de regras, o que diminui a estabilidade de saber para onde vamos nos anos seguintes. Se houver previsibilidade, conseguimos traçar um plano e saber com alguma probabilidade de onde poderemos ser colocados”, explica à CNN Portugal Lígia Violas.

“O Ministério da Educação faz dos professores deste país reféns durante anos! Enquanto somos contratados, o Estado garante-nos emprego, não sabemos muito bem onde, mas vai-nos acenando com a cenoura de que, mais tarde, vamos ter uma profissão para o resto da vida. Com esta vinculação dinâmica, o ministro arranjou forma de ter professores vinculados ao Estado e que podem servir em qualquer ponto do país. Estão disponíveis para servir o Ministério da Educação em qualquer ponto do país. É tratar os professores como peças de mobiliário de escola. Temos menos cadeiras no Algarve ou em Lisboa, vamos desviá-las de castelo Branco ou de outro ponto qualquer”, acrescenta.

Lígia Violas sublinha que os docentes em causa “não são jovens acabados de sair da universidade” (“Aliás, se for às escolas, vê poucos jovens acabados de sair da universidade, porque ninguém quer ser professor!). “Trata-se de pessoas com 40 e 50 anos, com filhos, família, casa comprada e uma vida constituída, que têm de deixar para trás por causa destas regras”, descreve.  

“Nós não somos peças de mobiliário ou de equipamentos de escolas. Não podemos ser tratados como mesas, cadeiras, quadros interativos ou computadores!”, reforça.

“Família às costas”

Marta Ribeiro tem 40 anos. Dá aulas de Inglês no 3º ciclo e no secundário. Concorreu à vinculação dinâmica na esperança de alguma estabilidade que tanta falta lhe tinha feito nos 17 anos que já tinha dedicado ao ensino.

“Já andei pelo Algarve, pelo Alentejo, por Lisboa… Sujeitei-me ao que havia. Já casada e mãe, sujeitei-me aos horários que havia. Um ano, fui trabalhar dois meses para Lisboa, tinha a minha filha mais velha seis anos e estava no primeiro ano, e a mais pequena ainda nem um ano tinha. Tive de deixar as minhas filhas com a minha mãe e o meu marido e ir para Lisboa dar aulas. Tive de deixar de amamentar por causa disso”, recorda.

Marta não se arrepende de ter concorrido à vinculação dinâmica, mas lamenta estar na “única profissão em que somos obrigados a percorrer o país todo”. “Precisam de professores no Algarve e no Sul do país e querem obrigar os professores que estão no Norte a ir para o sul.  Querem obrigar pessoas com estabilidade familiar a percorrer o país inteiro. Deixamos de ter a casa as costas e passamos a ter a família às costas”, denuncia.

Com duas filhas pequenas, Marta Ribeiro pondera abandonar a profissão se ficar colocada a uma distância de casa de mais de 60 quilómetros. 

Marta estabeleceu um limite de distância: se ficar a mais de 60 quilómetros de casa, impedida de ir e vir todos os dias e acompanhar o crescimento das filhas, agora com nove e quatro anos, vai deixar o ensino: “Claro que me questiono o que vou fazer, mas certamente trabalho não faltará. Terei de mudar a minha área e estar disposta a procurar profissões que agora não imagino ter.”

“Já vários professores pediram a exoneração este ano. Não é um problema futuro. É um problema de hoje. E virá engrossar a lista da falta de professores”, alerta.

A “desigualdade”

Quando promulgou o diploma do concurso de professores, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, alertou para a situação de desigualdade em que se encontrariam no futuro estes docentes e pediu diálogo entre sindicatos e Governo, para impedir injustiças.

"Na contratação, os professores escolhem as zonas para onde vão concorrer. Se os que vincularem a partir daqui também (que é algo de que se fala mas não parecia claro no DL para muitos) só os que concorreram e vincularam ao abrigo da vinculação dinâmica de 2023 são obrigados a concorrer para trabalhar em qualquer ponto do país", lembra Lígia Violas, que fala em “desigualdade”.

“Isto cria um mal-estar tão grande que mexe com os níveis de motivacionais dos professores e com os níveis de respeito com que olhamos para quem faz estas políticas”, acrescenta.

Marta Ribeiro também diz que esta é mais uma questão que em nada contribui para a valorização da carreira docente: “Precisam de nós e depois pedem-nos sacrifícios e obrigam-nos a estar longe da família e dos nossos filhos?”.

Professores estão a levar a cabo uma sensibilização da opinião pública e dos decisores políticos para esta questão. 

Ao contrário de Marta, Cristiana Oliveira está “muito arrependida” de ter concorrido à vinculação dinâmica. “Se tivesse esperado mais um ano… Tenho a certeza que se continuar como contatada tenho lugar. Aqui no Algarve, ainda hoje, na minha escola, há horários por preencher na minha disciplina. Mas nada me garante que, para o ano, fique colocada neste QZP”, diz.

“O próximo concurso em março e em abril vai ser muito diferente dos outros concursos todos. Por exemplo, um professor vincula em Lisboa, na esperança de aproximar através da mobilidade à sua área de residência, que é Aveiro. Está a dar aulas em Aveiro, mas tem de concorrer ao seu QZP que é Lisboa. A professora que estava a dar aulas no lugar dele em Lisboa é obrigada a ir embora e vai parar ao Algarve. Uma professora que estava no Algarve tem de sair para essa ficar e vai parar a Beja… Se a que ficou no Algarve rescindir, não há volta atrás… A que está em Beja, não pode voltar para o Algarve, porque nem sequer foi avisada que a colega rescindiu… o lugar será preenchido por um contratado ou por uma contratação de escola. Vamos andar a roubar lugares uns aos outros”, acusa.

Cristiana não vê uma luz ao fundo do túnel e preocupa-a esta instabilidade num quadro de falta de retaguarda familiar em que vive. “Tenho uns avós em Espinho, outros em Beja… ainda agora marquei uma aula assistida, por causa do período probatório para o feriado de Portimão e não dei conta que o meu filho não teria escola. Tive de o levar para a aula assistida, porque não tinha a quem o deixar”, recorda. E quando o filho fica doente, tem de ser ela a faltar, porque não tem quem fique com ele: “e um professor em período probatório não pode dar do que 20 faltas num ano letivo”.

Professores estão a levar a cabo uma sensibilização da opinião pública e dos decisores políticos para esta questão. 

A professora de Inglês a dar aulas em Lagoa diz que esta vida não compensa e lembra que “não há nenhum professor que ganhe para pagar duas casas, duas águas, duas luzes ou duas contas de gás”.

Ministro fala em "equidade"

Já tentaram expor todos estes argumentos aos diferentes grupos parlamentares, ao Governo, à Presidência da República… sempre sem sucesso. Estão agora a levar a cabo uma campanha de divulgação nas redes sociais, para sensibilizar a opinião pública e ponderam mesmo apresentar queixa contra o Estado português em Bruxelas.

A CNN Portugal contactou o Ministério da Educação, mas, até ao momento do fecho deste artigo, não obteve qualquer resposta. Entretanto, esta segunda-feira, durante uma visita a uma escola em Matosinhos, o ministro da Educação, João Costa, foi questionado sobre o assunto e alegou necessidade de "equidade no acesso aos concursos" para manter a regra agora contestada. 

"Fizeram uma vinculação temporária ao quadro de zona onde estão e, neste ano, concorrem a nível nacional, para que não ultrapassem o seu colega que está vinculado há mais tempo mais longe, pondo todos estes lugares a concurso", explicou o ministro

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