Brasil: como um “punhado de imbecis” criou uma “baderna aos olhos do mundo” em nome de “um ex-presidente que se escafedeu”

9 jan 2023, 07:35

Análise internacional não perdoa motins no Brasil. Nem o silêncio de Bolsonaro.

“Amanhã retomamos no Palácio do Planalto. Democracia sempre. Boa noite”. Lula da Silva despedia-se assim deste domingo, no Twitter, já passava das três da manhã em Lisboa. O Presidente do Brasil apressava-se a declarar a normalidade, depois do “ataque aos três poderes” à tarde. “Aproveitaram o silêncio de domingo, quando ainda estamos montando o governo, para fazerem o que fizeram”, escrevera horas antes Lula, Presidente que ali mesmo tomara posse uma semana antes.

 

A madrugada não trouxe registo de mais caos em Brasília. De madrugada, o juiz Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) afastou por 90 dias o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, por ter ignorado "todos os apelos das autoridades para a realização de um plano de segurança" à altura das ameaças; o juiz determinou também o fim, no espaço de 24 horas, dos acampamentos de apoiantes de Bolsonaro em frente aos quartéis militares em várias cidades do Brasil e a imediata desobstrução de todas as vias públicas onde o trânsito tenha sido interrompido por bolsonaristas que não aceitam o resultado das eleições presidenciais de outubro.

O domingo deixara imagens nunca vistas em Brasília, com a invasão e vandalização por apoiantes do ex-Presidente Jair Bolsonaro das sedes dos “três poderes”: o Palácio do Planalto (poder executivo), o palácio do Supremo Tribunal Federal (poder judicial) e o palácio do Congresso Nacional (poder legislativo). Perante a impavidez da polícia (que Lula qualificou de “incompetência, má vontade ou má-fé”), foi decidida a intervenção federal para repor a ordem. A Polícia Militar conseguiria recuperar o controlo das três sedes e desocupar a Praça dos Três Poderes, na capital brasileira. Houve centenas de detenções.

A invasão começou pelas três da tarde em Brasília (seis da tarde em Portugal). A imprensa brasileira primeiro descreveu o que acontecia. Depois escreveu a sua opinião.

Como o 4.º poder vê o assalto aos 3 poderes no Brasil

“Punhado de idiotas”. É assim que o editorial do jornal Folha de São Paulo qualifica, em título, os “imbecis criminosos” que atacaram as sedes do poder em Brasília, frisando que eles não contam “com o apoio da imensa maioria da sociedade brasileira” nem têm “respaldo político entre as forças legitimamente eleitas”. Os “celerados” e “arruaceiros”, que “apenas manifestam covardia, estupidez e espírito de manada”, “vociferam em nome de si mesmos e, quando muito, de um ex-presidente que se escafedeu em silêncio para o exterior”.

A Folha de São Paulo menoriza a dimensão e a representatividade daqueles que fizeram o motim em Brasília. Mas não reduz a importância de caçar os responsáveis – “os líderes da malta devem ser identificados, investigados e punidos”, assim como “eventuais financiadores e apoiadores instalados”. Importante é também “demonstrar à população que a normalidade democrática está e será preservada, a despeito de rosnados de minorias raivosas que imitam os derrotados do Capitólio americano”.

Só há uma explicação para a “estarrecedora facilidade” com que os “baderneiros” invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília na tarde de domingo, “no maior ataque à democracia brasileira desde o fim da ditadura militar”, escreve por sua vez o jornal Estado de São Paulo. E essa explicação é a “leniência das chamadas autoridades para identificar e punir os golpistas desde os primeiros crimes que cometeram após a confirmação da vitória do presidente Lula da Silva”. Porque “não foram poucas as oportunidades para que agentes do Estado fizessem valer as leis e a Constituição do País. Cada um desses agentes, no limite de sua responsabilidade, há de responder pela prevaricação perante a Justiça”, escreve o Estadão.

É que esta “malta de bolsonaristas” só conseguiu tomar de assalto as sedes dos três poderes “porque conta com aliados muito poderosos, a começar pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, o maior responsável pela intentona”, acusa o jornal. O “País não assistiria atónito àquelas cenas de violência na capital federal caso os golpistas não tivessem recebido apoio político, material e financeiro para fazer o que fizeram”.

“Que haja amalucados no País capazes de conceber uma urdidura dessa natureza já é lamentável por si só. Mas ainda pior é saber que eles contam com o apoio, expresso ou tácito, de autoridades e líderes políticos”, prossegue o Estadão, que responsabiliza também os militares: “as Forças Armadas jamais emitiram uma ordem firme para desmantelar os acampamentos golpistas que foram montados em frente a quartéis País afora. Esse silêncio acalentou os delírios golpistas dos bolsonaristas.”

Foi uma “baderna aos olhos do mundo”, apelida a CNN Brasil, que salienta a repercussão internacional dos acontecimentos. A própria CNN norte-americana esteve em cobertura permanente. “Durante anos, o Presidente Jair Bolsonaro tem atacado os sistemas eleitorais do Brasil”, recuperou o New York Times

É “a crise mais grave desde o fim da ditadura militar há 38 anos”, escreve em editorial o espanhol El Pais, que atribui os acontecimentos “não só à incapacidade de Bolsonaro de aceitar a derrota, mas também ao veneno de uma vociferante ultradireita que, tanto nos Estados Unidos como no Brasil e em outros países, não é capaz de aceitar as regras do jogo democrático e procura por todos os meios, incluindo a força bruta, ficar com o poder.” 

Também o norte-americano Washington Post escreve sobre os motins: “As cenas de fumo e violência tornaram-se tanto chocantes como previsíveis, a trágica realização da profecia que Bolsonaro repetidamente verbalizou para  mobilizar a sua base e aterrorizar os seus adversários. Se eu for afastado do poder, sugeriu ele várias vezes, seguir-se-á a violência”.

Citando analistas e politólogos, o Post realça outra arma recente de Bolsonaro: o silêncio que mantém desde as eleições. Fez uma curtas declarações, barricou-se no palácio antes da tomada de posse e viajou. Enquanto isso, apoiantes seus manifestaram-se, fecharam estradas, acamparam frente a quartéis militares, atacaram instalações da polícia. “O seu silêncio foi terrível”, afirma Jairo Nicolau, cientista político da Fundação Getúlio Vargas, ao Washington Post. “Ele sinalizou a uma parte dos seus seguidores que são mais ideológicos que eles os apoia, que eles estão a fazer o que o seu chefão não pode fazer. O seu silêncio foi a chispa principal que acendeu os protestos que estão agora a acontecer”.

O Estadão escreve no mesmo sentido: “Acoitado na Flórida, incapaz de se curvar ao princípio mais comezinho da democracia – a transferência pacífica de poder –, Bolsonaro jamais emitiu uma palavra que pudesse ser entendida por seus radicais como uma ordem de desmobilização e respeito à Constituição e à supremacia da vontade popular. Ao contrário: desde a derrota, o ex-presidente abusou de meias palavras e insinuações para açular seus camisas pardas em uma escalada de violência que culminou na tentativa de golpe ocorrida em Brasília.”

Neste domingo de amotinados, Jair Bolsonaro quebraria o silêncio… seis horas depois do início da invasão. No Twitter, escreveu que “manifestações” como esta “fogem à regra”.  

 

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