Gémeas tratadas no Santa Maria: um explicador para perceber melhor o caso

8 dez 2023, 10:30
Hospital Santa Maria (Lusa/Tiago Petinga)

A história que envolve duas gémeas luso-brasileiras foi divulgada pela TVI, do mesmo grupo da CNN Portugal, a 3 de novembro, após três meses de investigação. Um caso difícil de explicar, que levanta muitas dúvidas, mas que resumimos nestas linhas

Duas gémeas luso-brasileiras vieram para Portugal fazer um tratamento para a atrofia muscular espinhal, uma doença neurodegenerativa da qual padecem. Tinham começado um tratamento no Brasil com um medicamento, mas os pais queriam que as filhas recebessem um fármaco que era administrado de forma gratuita, no nosso país, e que é considerado o mais caro do mundo. O tratamento custou mais de quatro milhões de euros ao erário público e a forma célere como decorreu todo o processo, que terá tido influências políticas, tornaram a história notícia. 

O que aconteceu e como aconteceu?

Em 2019, duas gémeas luso-brasileiras vieram a Portugal para receber um tratamento com um medicamento específico, descrito como o mais caro do mundo e que, no nosso país, é feito de forma gratuita.

O medicamento chama-se Zolgensma. É utilizado para o tratamento da atrofia muscular espinhal, uma doença rara, e custa para cada doente dois milhões de euros, o que lhe deu o apelido de medicamento mais caro do mundo. Está no mercado desde outubro de 2021, data em que foi aprovado pela Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed). 

Em 2019, quando as gémeas vieram a Portugal, a sua administração necessitava de uma autorização especial. E as meninas seguiram diretas para o Hospital de Santa Maria para receberem o tratamento. Tinham conseguido uma consulta.

Tendo as gémeas adquirido a nacionalidade portuguesa, estas teriam sempre direito ao tratamento. O que diferencia este caso é tudo o que aconteceu antes, os intervenientes e a celeridade com que todos os processos decorreram.

Foi dada uma autorização especial para o uso de um medicamento milionário aprovada em dois dias.

A obtenção da nacionalidade portuguesa das menores aconteceu “em tempo mais do que recorde”, segundo os especialistas, e foi feita a aquisição de cadeiras de rodas topo de gama num rápido procedimento. Há ainda contactos com o filho do Presidente da República e alegadas ordens dadas – pelo poder político - ao Hospital de Santa Maria para marcarem a consulta das gémeas.

As gémeas vieram para Portugal em dezembro de 2019 e ficaram no país até fevereiro de 2023. O medicamento foi administrado no dia 23 de junho de 2020 a uma das meninas e dia 25 de junho de 2020 à irmã.

Que medicamento é este?

O Zolgensma é um medicamento utilizado para o tratamento da atrofia muscular espinhal. Segundo dados do Infarmed, pelo menos 33 crianças em Portugal já receberam o fármaco descrito como o mais caro do mundo. E entre os medicamentos utilizados para tratar esta doença, este é, de acordo com José Aranda dos Santos, antigo presidente do Infarmed, "o mais cómodo", uma vez que é de utilização única.

No entanto, a farmacêutica que o desenvolveu, a Novartis, viu-se, em 2019, envolta numa polémica por causa do preço - cerca de dois milhões de euros por paciente, o dobro daquele que era considerado até então o remédio mais caro do mundo, o Luxterna -, mas também por causa do processo de licenciamento do fármaco.

Segundo o regulador norte-americano, a Food and Drug Administration, há registo de que quando o Zolgensma começou a ser testado em animais os estudos produziram resultados que foram manipulados, noticiou na altura a BBC. A própria farmacêutica admitiu que tinha conhecimento das discrepâncias nos dados que submeteu ao regulador, mas que adiou a notificação das mesmas até à conclusão de uma investigação interna.

Como é que o caso foi denunciado publicamente?

A notícia de que o Hospital de Santa Maria abriu uma auditoria para perceber como é que duas gémeas que vivem no Brasil receberam em Lisboa um tratamento de quatro milhões de euros foi avançada pelo programa da TVI Exclusivo, com Sandra Felgueiras, que, a 4 de novembro, dava conta da existência de suspeitas de que isso possa ter acontecido por influência do Presidente da República.

A reportagem revelou também que a atribuição deste tratamento motivou um parecer contra de todos os neuropediatras do hospital, que mesmo assim não travou o avanço do processo. Além disso, a mãe das crianças foi filmada a admitir que recorreu a uma “cunha” do Presidente da República.

Questões que levantam dúvidas

Um dos aspetos que levanta dúvidas neste caso prende-se com a aprovação em apenas dois dias para a utilização especial deste medicamento que, à data, ainda não era comercializado em Portugal. O procedimento aqui em análise chama-se Autorização de Utilização Especial (AUE), que em média demora entre duas a três semanas para ser aprovado.

Além disso, o procedimento foi aceite a um sábado, dia 29 de fevereiro, e esta não é uma prática comum, já que o Infarmed se encontra encerrado ao fim de semana. Ainda assim, o Infarmed garantiu à TVI/CNN Portugal que já teve processos a serem tratados mais rapidamente do que no caso das gémeas, sublinhando que existem alguns “tramitados no próprio dia”.

As gémeas luso-brasileiras obtiveram a nacionalidade num tempo recorde. O Ministério da Justiça disse que teve início a 2 de setembro de 2019 e que, nessa mesma data, foram remetidos à Conservatória dos Registos Centrais (Lisboa), tendo sido registado o assento de nascimento no dia 16 de setembro de 2019” - etapa final de reconhecimento da nacionalidade. Ou seja, 14 dias para tudo ficar concluído. Um período bastante inferior ao habitual que vai de dois a quatro meses.

No entanto, segundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros, o agendamento para pedir a nacionalidade foi feito a 16 de abril de 2019, ou seja, antes do diagnóstico da doença. E a ida ao consulado para o pagamento dos emolumentos aconteceu a 23 de julho, algo que segundo o MNE deu início ao processo. Já o advogado da família, fazendo a conta desde a data do agendamento (16 de abril), sublinha que o pedido de nacionalidade demorou seis meses, e teve início muito antes do diagnóstico de atrofia muscular espinhal, garantindo que as gémeas “obtiveram o seu cartão de cidadão cerca de um mês antes do diagnóstico”.

Há dúvidas também sobre a necessidade do tratamento em específico, já que a doença em causa não tem cura. Para além disso, a posição dos neuropediatras do Santa Maria era que "em termos de eficácia, não acrescentava nada" ao tratamento que já estavam a fazer no Brasil.

Daí ser preciso justificar bem a necessidade de aplicar um medicamento tão caro. Os gastos do Hospital de Santa Maria com as gémeas, que já regressaram ao Brasil, já supera os quatro milhões de euros iniciais. A TVI/CNN Portugal teve acesso a todas as faturas, onde se verifica que foram pagas quatro cadeiras elétricas no valor de 58 mil euros para as duas irmãs. Até agora, nenhuma criança com a mesma doença recebeu cadeiras deste tipo e, neste caso, duas delas não foram sequer levantadas.

À CNN Portugal, o advogado da família das gémeas garante que ao hospital Santa Maria foram solicitadas duas cadeiras manuais "para que as crianças possam ter locomoção em ambientes menores" e que as cadeiras, "alegadamente disponíveis desde 01/09/2023" só seriam entregues no hospital "na segunda quinzena de dezembro".

Como surge o nome do Presidente da República e qual o seu papel no processo

Após a divulgação das primeiras notícias, Marcelo Rebelo de Sousa disse que não se recordava de o filho lhe ter comunicado a situação das gémeas. A mãe das gémeas terá confessado que conhecia a nora e o filho do Presidente da República, todos viviam na mesma cidade, São Paulo, e que tinham recorrido a esses conhecimentos para conseguirem o tratamento, com um novo medicamento, em Portugal. 

Mas esta semana, o Presidente da República explicou que, no dia 21 de outubro de 2019, recebeu um e-mail do filho a apresentar a situação das gémeas luso-brasileiras e a questionar “se era possível o tratamento” no Hospital de Santa Maria - que até àquela data não tinha dado resposta à família, já depois de o Hospital Dona Estefânia ter apresentado objeções. 

Esse pedido, no qual era questionado a Marcelo se “é possível saber se há resposta possível ou não há resposta possível sobre a matéria”, foi despachado pelo Presidente da República para a Casa Civil no mesmo dia, interrogando-se: “Será que Maria João Ruela, assessora para assuntos sociais, pode perceber do que se trata?”. Dez dias depois, a Casa Civil remeteu o assunto para o Governo.

Marcelo, que garante que foi “neutral” neste despacho, rejeitou também ter falado com o filho sobre o assunto. 

O que aconteceu depois do assunto sair da Presidência? “Como é que foi? O que se passou a seguir? Por que tramitação saiu? Não tenho a mínima das ideias (...) Não acompanho o que se passa a seguir. Nem é possível acompanhar, nem é desejável acompanhar”, disse o Presidente da República na passada segunda-feira.

O papel do Governo

À época, Marta Temido era ministra da Saúde e já veio a público garantir que “não deu qualquer orientação sobre o tratamento” das gémeas e que “não teve qualquer contacto com o Presidente da República relativamente a este caso”. 

Em entrevista ao Público e à Renascença, referiu que teve necessidade de "refazer o circuito documental" daquilo que eventualmente teria conhecimento sobre o caso e destacou que o pedido de verificação vindo da Presidência da República sobre o processo das gémeas entrou no Ministério da Saúde junto com outros pedidos. "É o circuito normal. Foi normal o que o Ministério fez a esse documento, que vinha do gabinete do primeiro-ministro e que canalizava um documento da Casa Civil da Presidência da República", afirmou.

No entanto, o diretor de Neuropediatria do Hospital de Santa Maria, Levy Gomes, referiu em entrevista à TVI/CNN Portugal que o encaminhamento das gémeas luso-brasileiras não foi “normal”. "Acredito 100% na minha colega”, disse, referindo-se a uma terceira pessoa que estaria envolvida na marcação das consultas. “Ela diz que houve telefonemas da secretária da ministra Marta Temido e escreveu que houve pressões do secretário de Estado."

O secretário de Estado de então era Lacerda Sales. Documentos do processo clínico obtidos pela CNN Portugal, mostram que foi ele quem solicitou ao Santa Maria a primeira consulta das duas crianças. Mas esta não é a única vez em que o nome do ex-governante surge nos documentos clínicos associados a este caso. Há outros dois documentos, uma informação clínica e uma justificação do pedido do medicamento ao Infarmed, onde é referido que a solicitação aos diferentes departamentos foi feita por Lacerda Sales.

O ex-secretário de Estado negou e garantiu que “nenhum secretário de Estado tem poder para marcar e influenciar ou violar a consciência e a autonomia de qualquer médico”. Tendo esta semana assumido que, afinal, não se lembra. “Não posso negar uma coisa de que não me lembro”, afirmou em declarações à SIC Notícias.

Mas segundo adiantou a TVI/CNN Portugal, Lacerda Sales terá mesmo tido reuniões com o filho do Presidente da República, Nuno Rebelo de Sousa. Confrontado com esta informação apurada na quinta-feira, o agora deputado do PS não nega tais contactos, dizendo que as explicações serão dadas "em sede própria".

Entretanto, o primeiro-ministro demissionário confirmou que recebeu uma comunicação da Casa Civil da Presidência da República e que o processo das gémeas seguiu o trâmite habitual: Fazemos o que habitualmente fazemos com esse expediente: há um reencaminhamento para os ministérios competentes em razão da matéria. Ponto final", adiantou.

E a família? O que fizeram os pais das meninas?

O primeiro contacto com a mãe e o pai das gémeas foi com o Hospital Dona Estefânia, a 14 de outubro de 2019. E esta unidade hospitalar foi clara ao sublinhar que não havia condições para administrar o tratamento, destacando que o mesmo “não está incluído no orçamento do hospital e é primeiro inserido numa plataforma informática do Ministério da Saúde para integrar o orçamento deste ministério”. 

O que é certo é que o casal conseguiu a marcação de uma consulta no Hospital de Santa Maria. O advogado da família sublinhou à CNN Portugal que não houve “qualquer intervenção fora da legalidade e, se a houve, a qual refuta, não dependeu de qualquer pedido ou influência sua”. Negando ainda que a família tenha metido uma cunha ou “sequer conheça o filho do Presidente da República". 

A resposta surge depois de a TVI/CNN Portugal terem tido acesso a um vídeo que mostra a mãe das crianças a admitir a existência de uma cunha. “Nós usámos os nossos contactos. Foi aí que entrou o pistolão. Eu conhecia a nora do Presidente, que conhecia o ministro da Saúde, que mandou um e-mail para o hospital e disse: 'E o caso das meninas? Começaram a receber ordens superiores", afirmou.

O caso está a ser investigado?

O Ministério Público já está a investigar este caso desde o início do mês de novembro. Para além disso, corre uma auditoria interna no Santa Maria e uma terceira investigação encontra-se em processo de execução pela Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) para averiguar o cumprimento das "normas aplicáveis à prestação de cuidados a duas crianças gémeas tratadas com o medicamento Zolgensma".

Esta quinta-feira, o IGAS deu mais detalhes sobre o processo, sublinhando que está prevista a recolha de "mais evidências, documentais e testemunhais, junto de decisores, de vários níveis, que tenham tido intervenção no acesso das duas crianças à prestação de cuidados", acrescentou a instituição em comunicado, ainda que sem se referir em concreto a que decisores se refere. "Após esta fase de execução do processo de inspeção é elaborado um projeto de relatório, que é remetido a entidades e pessoas envolvidas, para o exercício do direito ao contraditório."

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