A ameaça do hooliganismo volta a assustar-nos a todos?

24 mar 2023, 09:08
Hooligans na Europa (AP Photo/Olivier Matthys, File)

Desde o fim do confinamento e a reabertura das bancadas, praticamente todos os meses há casos graves de violência entre adeptos. Em alguns países, como por exemplo a França, tem sido recorrente, aliás. Será que estamos a viver o regresso em força do hooliganismo? E o que estamos a fazer contra isso? Enjaular adeptos continua a ser a melhor solução para lidar com a violência? Responsáveis de entidades públicas, de forças de segurança e de associações internacionais de adeptos falaram com o Maisfutebol para tentar perceber o que a covid-19 fez aos nossos estádios e o que se passa afinal no futebol europeu.

Os incidentes da semana passada em Nápoles, que deixaram a cidade do sul de Itália a ferro e fogo, reclamaram atenção para um fenómeno que já não passava despercebido aos mais atentos: a violência no futebol, sobretudo nos jogos europeus, parece estar a aumentar.

Os casos que foram notícia no último ano e meio, aliás, são vários.

Começaram logo naquele que foi um dos primeiros jogos de portas abertas: a final da Liga dos Campeões, no Porto. Ao longo dos dias, registaram-se vários focos de problemas.

Continuaram durante o Euro 2020, que se jogou um mês depois, em vários países, tendo atingido o momento mais grave na final entre Inglaterra e Itália, no Estádio de Wembley: cerca de 600 adeptos ingleses envolveram-se em confrontos com a polícia.

As férias de verão não acalmaram os adeptos. Basta ver que em menos de dois meses quatro jogos em França tiveram invasões de campo: uma invasão a cada quinze dias, portanto.

As autoridades francesas, aliás, detiveram em três meses 176 adeptos, por violência em jogos domésticos e internacionais. O caso mais grave aconteceu no Paris FC-Lyon, que foi interrompido e as duas equipas eliminadas da Taça após pancadaria e invasão de campo.

Na Bélgica, por outro lado, as forças policiais elaboraram em apenas seis meses, logo após a reabertura dos estádios, um total de 640 boletins de ocorrência por desacatos com adeptos.

Já em Portugal, a Polícia de Segurança Pública revelou durante o seminário Estádios de Sítio que o número de ocorrências duplicou de 2019 para 2021, considerando nesta análise o futebol profissional, o futebol amador e o futebol jovem.

No entanto, é sobretudo nos jogos europeus, os quais implicam viagens internacionais, que mais se tem notado a violência, e a violência grave associada a grupos radicais.

«Nas conversas que temos tido com congéneres internacionais, depois do retorno à normalidade após a covid-19, houve um regresso em cheio de alguns grupos mais identificados com a cultura casual», diz ao Maisfutebol Rodrigo Cavaleiro, presidente da Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto.

«A perceção é que há um recrudescimento do fenómeno do hooliganismo em alguns grupos e com a visita deste tipo de grupos a outros países há um aumento da violência. Diria que é um comportamento que respeita uma forma de estar nas viagens internacionais: o descontrolo total nas deslocações. É uma provocação quase intrínseca à sua forma de estar na sociedade.»

Um pós-pandemia que já se adivinhava difícil para as forças policiais

Ricardo Conceição, comissário da PSP, refere também ao Maisfutebol que «realmente, o pós-pandemia tem sido marcado por um gradual aumento de incidentes».

Um aumento gradual que ainda não chegou ao ponto mais alto, mesmo quando comparado com o período de supostamente maior descontrolo logo após a reabertura dos estádios.

«Nas competições europeias, de 1 de julho a 28 de fevereiro, o total parcial já tem um número de incidentes superior ao que aconteceu em toda a época transacta.»

É certo que a maioria destes incidentes está relacionado com posse ou deflagradação de pirotecnia, mas Ricardo Conceição adverte que «o fenómeno de violência premeditada também tem vido a aumentar», sendo que no caso português a PSP já interveio em situações de confrontos combinados entre grupos radicais e em situações de violência iminente.

Vale a pena lembrar, a esse propósito, quando a polícia intercetou adeptos do Marselha à procura de conflitos no centro de Lisboa, quando deteve confrontos entre apoiantes do Sporting e do Besiktas ou quando travou à força casuals do Borussia Dortmund que procuravam confusão no Bairro Alto e se viraram depois contra a própria polícia.

Isto já para não falar nos casos mais mediáticos, como os confrontos recentes antes do Benfica-Brugge, a visita do Estrela Vermelha a Braga que acabou em tiros para o ar ou o caos provocado por adeptos do Hadjuk Split que viajaram incógnitos para Guimarães.

«Apesar de tudo, ainda estamos num cantinho à beira mar plantado. Já tivemos alguns casos em Braga, em Lisboa e no Porto, mas ainda estamos um pouco à parte. Nada que se possa comparar com outros países europeus», garante Rodrigo Cavaleiro, presidente da APCVD.

Há, de facto, clubes internacionais que têm estado recorrentemente associados a problemas de violência no último ano e meio. O Eintracht Frankfurt, por exemplo. Ou o Marselha. Mas também o Feyenoord, o Nápoles, o Anderlecht e o West Ham.

Isto para além, claro, de países onde o hooliganismo está fortemente implantado, mas que é difícil ter dados confiáveis do fenómeno. Por exemplo, a Polónia. Ou a Sérvia.

Ainda em 2021, aliás, o Inglaterra-Hungria de apuramento para o Mundial 2022 teve dezenas de húngaros em confrontos com a polícia: a Hungria, de resto, já tinha sido castigada com um jogo à porta fechada devido a problemas no jogo também com a Inglaterra em casa.

Jogou, por isso, sem adeptos nas bancadas com a Albânia, voltou a envolver-se em problemas e na viagem seguinte, a tal deslocação a Inglaterra, foi reincidente na violência.

Mas como é que este fenómeno pode estar relacionado com a covid-19?

O francês Thibaut Delaunay, chefe da Divisão Nacional de Luta contra o Hooliganismo, indicou num relatório a que o Le Figaro teve acesso que está totalmente relacionado.

«A composição dos grupos de adeptos mudou e radicalizou-se. Mais grupos dissidentes e ultraviolentos têm surgido. São hooligans mais duros, que desde a pandemia fazem musculação dentro de casa e consomem cocaína ou anfetaminas antes de se envolverem em lutas pelo poder», pode ler-se no relatório citado pelo Le Figaro.

O comissário Ricardo Conceição diz que a PSP não dispõe de dados que lhe permitam fazer uma associação como esta, entre a covid-19 e o aumento da violência. Mas há algo que sabe.

«O que é certo é que de um modo geral, e isso assistiu-se por toda a Europa e até em reuniões com a UEFA, é tido como consensual o aumento de tensão e a intolerância ao cumprimentos de regras e imposições. A UEFA fez um estudo sobre esse fenómeno e tem sido marcante o aumento da tensão por parte dos adeptos.»

Uma opinião diferente tem Ronan Evain, presidente da Football Supporters Europe.

Para o francês que chefia a maior associação de adeptos do futebol europeu, é impossível dizer com toda a segurança que os casos associados ao hooliganismo estão a crescer.

«Uma coisa que mudou significativamente desde que os adeptos regressam aos estádios tem a ver com os clubes e as autoridades, que não estão a conseguir dar uma boa resposta às exigências de organização de um jogo», referiu Ronan Evain ao Maisfutebol.

«Não sei se isso teve influência no número de incidentes, mas sei que os clubes têm investido pouco na segurança e estão a ter dificuldades em recrutar segurança privada, porque pagam mal a estas pessoas e todas as semanas há menos seguranças dispostos a fazer este trabalho.»

Esta é, de resto, uma crítica feita por vários quadrantes: cada vez é mais difícil aos clubes terem segurança privada nos jogos, porque investem pouco nesse aspeto.

«Isto é um problema sistémico, um problema crucial, profundo, que percorre toda a Europa. É um trabalho difícil e que ninguém o quer fazer mais. Os clubes têm de investir na segurança dos jogos que organizam e não o estão a fazer. Eles investem em CCTV e em tecnologia, mas sem pessoas, sem presença humana, a tecnologia não serve de nada, porque não evita os episódios de violência. Claro que a primeira responsabilidade é dos adeptos, da pessoa que infringe a lei e comete um crime. Mas há que olhar para o quadro completo.»

Ronan Evain junta-se ainda ao coro de críticas que acusa as autoridades públicas, entre elas as forças de segurança, de terem baixado o nível de vigilância e a capacidade de reflexos em relação aos grupos mais perigosos, sobretudo após a tranquilidade que foi o confinamento.

«A operação organizativa foi uma catástrofe em Nápoles, por exemplo. Houve uma decisão das autoridades italianas de proibir os adeptos do Eintracht de assistir ao jogo em Nápoles, o que levou a uma desorganização total da polícia italiana, que não se preparou nem estava minimamente alerta para o que veio a acontecer depois com a deslocação dos adeptos.»

Trágica final da Champions em Paris indica o outro caminho

Ora a crítica às entidades públicas é uma corrente que atravessa alguns setores da sociedade e que encontrou uma voz forte por na comissão liderada por Tiago Brandão Rodrigues, que fez o relatório independente de análise à quase-tragédia da final da Champions de Paris.

Embora o relatório tenha culpabilizado em primeiro lugar a UEFA, pela ausência de medidas rigorosas de proteção dos adeptos, também os poderes públicos foram visados na avaliação.

Para esta corrente de opinião, o hooliganismo britânico dos anos oitenta já não tem a mesma configuração na Europa: a sociedade europeia desapareceu, o futebol mudou completamente e o hooliganismo é diferente. Por isso torna-se necessário ratificar uma nova convenção europeia para a violência dos espectadores, tal como foi feito em 1985.

Acima de tudo defendem é que necessário ter uma abordagem diferente e diminuir a tendência para receber os adeptos com violência, porque é essa violência que potencia os confrontos mais graves. Cidades como Berlim, Paris, Londres ou Lisboa recebem todos os fins de semana milhares de turistas e têm de estar preparadas para receber milhares de adeptos sem precisar de os enjaular e despertar nessas pessoas os piores instintos.

O relatório de Tiago Brandão Rodrigues fala com insistência na necessidade de proporcionar aos adeptos que viajam para o estrangeiro uma experiência imersiva, que é o que procuram.

Para já, e enquanto essa revolução não acontece, as forças policiais garantem que estão a aumentar a capacidade de cooperar no controlo dos adeptos mais violentos e o comissário Ricardo Conceição adianta como é hoje em dia realizado o intercâmbio de informações.

«Do ponto de vista da cooperação internacional, é algo em que apostamos muito através do Ponto Nacional de Informações Despotivos, que é o responsável por fazer a troca de informações com os nossos homólogos estrangeiros», sublinha.

«Por exemplo, assim que saiu o resultado do último sorteio da Liga dos Campeões e da Liga Europa, começou de imediato a troca de informação com o homólogo italiano, já que neste caso os dois jogos com equipas portuguesas são frente a adversários italianos, através de partilha e troca de informações e intercâmbio de efetivos policiais. Muito provavelmente teremos policias italianos a cooperar com a PSP.»

Resta descobrir se isso chega para travar esta ameaça.

CASOS DE VIOLÊNCIA RECENTES

Nápoles-Eintracht-Frankfurt

15 de março de 2023 (Nápoles)

Um jogo de caos e violência que deixou a cidade de Nápoles em estado de sítio. Os problemas começaram, aliás, na Alemanha, onde vários adeptos italianos foram atacados por adversários. Nove pessoas, todas alemãs, acabaram detidas. Em Itália, no segundo jogo, os adeptos do Eintracht estavam proibidos de entrar no estádio, mas apareceram em massa. Um autocarro com alemães foi atacado, depois houve confrontos generalizados entre ultras dos dois clubes, e também com a polícia, houve carros destruídos, edifícios danificados e vários feridos, um grupo de adeptos do Eintracht barricou-se num hotel, enfim. Foi até criado pela autarquia de Nápoles um gabinete de crise para restabelecer a ordem. No fim, oito adeptos detidos, 470 identificados e seis polícias feridos.

Benfica-Club Brugge

8 de março de 2023 (Lisboa)

A véspera da goleada do Benfica que garantiu o apuramento para os quartos de final da Liga dos Campeões ficou marcada por várias desordens em Lisboa. Antes de mais, houve confrontos entre adeptos dos dois clubes junto ao Estádio da Luz. Mais tarde, nessa mesma madrugada, houve distúrbios provocados por outros adeptos belgas no Cais Sodré. Dois apoiantes do Club Brugge foram transportados ao hospital e quatro acabaram detidos pela polícia.

Sp. Braga-Fiorentina

17 de fevereiro de 2023 (Braga)

A missão de acompanhamento dos adeptos da Fiorentina para o Municipal de Braga ficou marcada por confrontos e distúrbios generalizados, que obrigaram a polícia a intervir. Os cerca de mil adeptos italianos viraram-se então contra os agentes da PSP, através do arremesso de artigos pirotécnicos, pedras, garrafas, paus e até cintos. A polícia foi obrigada a disparar balas de borracha, tendo-se registado ferimentos em dois agentes e a detenção de seis adeptos.

Marselha-Eintracht Frankfurt

13 de setembro de 2022 (Marselha)

Cerca de três mil adeptos do Eintracht Frankfurt viajaram para Marselha, o que tornou a cidade um barril de pólvora. Logo na véspera houve confrontos entre as claques dos dois clubes e durante o jogo os franceses lançaram fogo de artifício e vários engenhos pirotécnicos na direção dos alemães, o que obrigou a uma forte intervenção policial. Depois disso 17 adeptos foram detidos, um alemão foi hospitalizado e um francês acusado de tentativa de homicídio.

Nice-Colónia

8 de setembro de 2022 (Nice)

O jogo da Liga Conferência ficou marcado por imagens de extrema violência no Allianz Riviera, em Nice, quando uma cerca de uma centena de adeptos encapuçados do Colónia invadiram o setor reservado aos apoiantes da equipa da casa. A partir daí geraram-se confrontos muito feios, que obrigaram a intervenção policial e retardaram o início do jogo em praticamente uma hora. Um adepto caiu da arquibancada e teve de receber assistência hospitalar.

Anderlecht-Young Boys

24 de agosto de 2022 (Bruxelas)

O centro de Bruxelas foi palco de violentos confrontos entre dezenas de adeptos, na véspera do confronto relativo à segunda mão do play-off de apuramento para a fase de grupos da Liga Conferência. Um café no centro histórico da capital belga foi saqueado por cerca de 30 indivíduos encapuzados e 23 pessoas, entre adeptos dos dois clubes, foram detidos. A rixa foi uma resposta, segundo a polícia belga, à violência contra 40 adeptos do Anderlecht na Suíça.

V. Guimarães-Hadjuk Split

9 de agosto de 2022 (Guimarães)

A segunda mão da terceira pré-eliminatória de acesso à Liga Conferência ficou marcada pelo caos espalhado por adeptos do Hadjuk Split em Guimarães. Os indivíduos viajaram para Portugal de autocarro e surpreenderam a polícia. Na noite antes do jogo arremessaram tochas, partiram esplanadas e provocaram um motim no centro de Guimarães. A PSP deteve 154 dessas pessoas, dos quais 122 croatas, 23 portugueses e nove de outras nacionalidades.

Real Madrid-Liverpool

28 de maio de 2022 (Paris)

Um dos ambientes mais feios da história das finais da Liga dos Campeões. Milhares de adeptos não conseguiam entrar no Stade de France, em Paris, o início do jogo foi retardado meia hora e o governo francês foi rápido a atribuir as culpas aos apoiantes do Liverpool, que teria aparecido com 35 mil bilhetes falsos. Tudo mentira, concluiu uma investigação independente. O governo e a polícia franceses não prepararam bem a operação e milhares de adeptos ingleses foram empurrados para uma armadilha: foram agredidos, assaltados e impedidos de entrar. Agora a UEFA promete reembolsar esses adeptos, supostamente para os recompensar.

Roma-Feyenoord

24 de maio de 2022 (Tirana)

O jogo dizia respeito à final da Liga Conferência e realizava-se em Tirana, capital da Albânia. Na noite anterior à partida, que a Roma de José Mourinho haveria de vencer, adeptos italianos e neerlandeses envolveram-se em cenas de pancadaria generalizada no centro da cidade, o que obrigou à intervenção da polícia. Foram até disparados tiros para o ar. Dez polícias ficaram feridos na sequência da intervenção e cerca de 60 adeptos das duas equipas foram detidos.

Eintracht Frankfurt-Glasgow Rangers

18 de maio de 2022 (Sevilha)

A final da Liga Europa trouxe confrontos entre adeptos dos dois clubes, quando um grupo de cerca de duzentos apoiantes do Eintracht Frankfurt começaram a agredir rivais escoceses no centro da cidade de Sevilha. Já no dia jogo verificaram-se novos confrontos e uma batalha campal, com agressões, arremesso de cadeiras e destruição do espaço público por parte de ambas a claques. A polícia espanhola foi obrigada a intervir e deteve cinco alemães.

Marselha-Feyenoord

5 de maio de 2022 (Marselha)

A véspera do duelo das meias-finais da Liga Conferência, no Vélodrome, foi palco de confrontos violentos entre adeptos do Marselha e do Feyenoord. Nas imagens era possível ver os apoiantes das duas equipas envolvidos em cenas de pancadaria, deixando um rasto de destruição. A polícia deteve 20 pessoas, sendo que a maioria são adeptos franceses que atacaram os neerlandeses que se encontravam nas esplanadas da zona portuária da cidade.

Eintracht Frankfurt-West Ham

5 de maio de 2022 (Frankfurt)

O confronto das meias-finais da Liga Europa estava carregado de tensão, depois dos confrontos violentos do ano anterior, quando West Ham e Eintracht se encontraram em Sevilha para defrontar Sevilha e Betis, respetivamente. Em Londres, jornalistas alemães foram agredidos, em Frankfurt um grupo de homens mascarados chegou em dois minibus, parou frente a um bar cheio de adeptos do West Ham e agrediram os ingleses. Um deles foi hospitalizado.

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