Manifestações como a que se diz contra a islamização da Europa "não acontecem inocentemente". E "não podemos deixar que um pequeno foco de incêndio se alastre"

2 fev, 22:00
Rua do Benformoso, Mouraria (Foto: Rodrigo Cabrita)

Têm dezenas de milhares de seguidores em várias contas de múltiplas redes sociais. A partir de lá, mobilizam os seus membros e propagam conteúdos contra imigrantes e outras minorias

Acreditam que existe uma elite que opera na sombra para substituir etnicamente a população portuguesa através da imigração e querem mobilizar-se durante as eleições. As táticas e a comunicação não são novas, mas a manifestação “Contra a Islamização da Europa” na zona da Mouraria, em Lisboa, organizada pelo grupo 1143 do neonazi Mário Machado, é vista pela polícia portuguesa como “um elevado risco”. Para os especialistas, há dúvidas quanto à capacidade de mobilização destes grupos, uma vez que o aparecimento do Chega funcionou como “uma espécie eucalipto político para toda a ala nacionalista”, mas defendem que é preciso atuar antes que um "pequeno foco de incêndio se alastre".

“Ao contrário do que aconteceu no princípio do século, o grupo 1143, liderado por Mário Machado, não está a demonstrar ter a capacidade de se ligar com outros movimentos. Apesar de chegarem a muitas pessoas nas redes sociais, tirando o que aconteceu em 2005, dificilmente estes grupos conseguem mobilizar mais de 100 pessoas”, explica Riccardo Marchi, especialista em movimentos de extrema-direita.

É preciso mesmo recuar a 2005, quando cerca de 400 membros de várias organizações de extrema-direita se juntaram no Martim Moniz para pedir o repatriamento de imigrantes depois de um pretenso “arrastão” na praia de Carcavelos. O responsável foi exatamente o mesmo. Mário Machado, então dirigente da Frente Nacional, defendia que a “imigração e a criminalidade andam quase sempre de mãos dadas” e prometia que essa ação era “só o começo”.

Entre suásticas, camisas negras, cabeças rapadas e cartazes com as palavras de ordem como “imigração igual a colonização”, a manifestação que percorreu as ruas do Martim Moniz até ao Rossio foi organizada na internet. “Mário Machado tinha uma boa capacidade organizativa e capacidade de criar redes com outras organizações”, afirma Riccardo Marchi, que recorda que o líder neonazi era responsável por um fórum bastante popular entre militantes nacionalistas.

Mas os fóruns caíram em desuso. Atualmente, o grupo responsável pela organização da manifestação utiliza o Twitter e o Telegram como as principais plataformas para propagar a sua ideologia. E, para isso, contam com uma vasta rede de contas que difundem diferentes conteúdos, mas sempre com a mensagem de que os portugueses são alvo do racismo. Algumas destas contas têm dezenas de milhares de seguidores e centenas de partilhas.

“Estes grupos dominam as novas tecnologias e as redes sociais. Além disso, quando os grupos têm problemas numa das redes, não hesitam em saltar para outra para continuar a alastrar informação e fazer convocatórias”, explica João Henriques, Investigador do Observatório de Relações Exteriores da UAL e Vice-Presidente do Observatório do Mundo Islâmico em Portugal.

Um dos conteúdos partilhados recentemente, mostra membros do grupo a fazer “uma ação de solidariedade” junto de uma família “em situação de extrema vulnerabilidade financeira” na região do Porto. Este tipo de ações, não é novidade entre estes grupos e é, na verdade, inspirada pelas ações de grupos semelhantes em França, Itália e Bélgica que, entretanto, já entraram em decadência, refere Riccardo Marchi.

É precisamente isso que aponta o Relatório do Projeto Global contra o Ódio e o Extremismo (GPAHE, na sigla em inglês), que faz o retrato dos grupos de extrema-direita em Portugal. Existe uma grande influência internacional nos grupos definidos como extremistas, com particular destaque para organizações neofascistas francesas e italianas, bem como grupos supremacistas brancos. Uma das principais teses defendidas por todos estes grupos é a teoria da “Grande Substituição”, que alega existir um plano de “elites globalistas” para “substituir” a população portuguesa nativa por uma estrangeira.

“Estão a aproveitar-se da chegada de muitas comunidades a Portugal. Os paquistaneses são muçulmanos, mas uma grande parte da população indiana não é. Eles não estão contra o Islão, para eles são todos muçulmanos, querem é evitar pessoas com uma cor de pele mais escura”, defende João Henriques.

O estudo do GPAHE identifica também muitos destes elementos no partido Chega. O documento considera que, liderado por André Ventura, o Chega “tem trabalhado para envenenar” o discurso político nacional com alguns dos temas favoritos destes grupos, como o ódio aos emigrantes, medidas anti-LGBTQ+ e, em particular, ataques à comunidade cigana. Para Riccardo Marchi, este facto leva a que este partido venha a sufocar outros partidos mais extremos de matriz nacionalista, como o grupo ligado a Mário Machado.

“O Chega acaba por funcionar um pouco como um eucalipto para toda área nacionalista. Quando apareceu, partidos nacionalistas como o Partido Nacional Renovador tiveram uma queda eleitoral enorme. Toda as atenções dos média recaem sobre o Chega”, refere o especialista.

De acordo com GPAHE, a juventude do Chega acaba não só por ter ligações diretas a Mário Machado e a outros grupos de extrema-direita identificados pelas autoridades, como também é apontada como mais extremista que o Chega em si. É o caso de Carlos Tasanis, candidato a conselheiro regional da zona sul da jota do Chega na “Lista Futuro”, que pertenceu ao grupo neonazi Nova Ordem Social fundado por Mário Machado. Também Manuel Rezende, antigo candidato a conselheiro regional da zona Norte, tem ligações ao grupo Escudo Identitário. O Chega acabou por afastar estes dois membros, mas vários líderes regionais partilham publicações ligadas às páginas de Machado.

Para os especialistas, esta situação não acontece no vácuo. João Henriques defende que, devido ao aproximar de um grande número de eleições, muitos destes grupos estão a ser mobilizados. “Estas manifestações não acontecem inocentemente. Neste momento, há um movimento a nível europeu para que o Parlamento Europeu passe a ser dominado pela extrema-direita”, considera o investigador, que acredita que estas manifestações não só vão continuar como correm o risco de se multiplicar.

A Polícia de Segurança Pública considerou existir “um risco elevado para a ordem e segurança públicas” na manifestação devido às “vulnerabilidades graves associadas às características sociais e físicas do espaço” que existem na Mouraria. Por isso, a Câmara de Lisboa decidiu não autorizar a manifestação na zona do Martim Moniz. Em resposta, os promotores da manifestação apresentaram uma ação para tentar travar esta suspensão e anunciaram uma “ação de protesto” para o mesmo dia, em Lisboa, às 18:00, no Largo Camões, isto depois de o Tribunal administrativo de Lisboa já ter confirmado a proibição da primeira manifestação.

O Grupo 1143 apelou aos seguidores para estarem atentos às redes-sociais, onde o "local será noticiado ". Mário Machado defende que Portugal é "o único sítio em que foi proibido" algum protesto semelhante a este: "Mas que liberdade de expressão é esta? Vão ter de levar connosco. É com muito pesar que constatamos que, 50 anos depois do 25 de Abril, a liberdade de expressão ainda não chegou a Portugal”.

À CNN Portugal, a PSP garante que prossegue com os trabalhos de "recolha de informação e avaliação de risco" do protesto e garante que o facto de a localização da ação ser ainda incerta é mais uma dificuldade. "Obriga-nos a maior esforço de pesquisa", frisa fonte oficial da polícia.

Para o antigo presidente do Observatório de Segurança Criminalidade Organizada e Terrorismo José Manuel Anes, esta manifestação é perigosa por ter sido criada por “um grupo inorgânico” que não tem uma estrutura e uma organização oficial. Apesar de Mário Machado ser uma figura bem conhecida das autoridades portuguesas, “continua motivado pelo ódio aos estrangeiros” e requer uma atenção especial por parte das autoridades e dos serviços de segurança.

“Nós não podemos deixar que um pequeno foco de incêndio se alastre. Estas situações podem gerar a reação de alguém, o que pode levar a uma resposta. Pode mesmo morrer alguém. É preciso uma ação pronta dos serviços de informações e da polícia portuguesa”, afirma José Manuel Anes.

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