A história de uma guerra "invisível" que fez mais de 600 mil mortos e na qual a fome foi usada como "arma"

29 jan 2023, 18:00
Tigray, Etiópia

Seiscentos mil mortos em apenas dois anos, num território com seis milhões de habitantes. Um banho de sangue na região do Tigré, norte da Etiópia, fez deste conflito um dos mais mortíferos dos últimos anos. Uma guerra brutal que constituiu uma das piores crises humanitárias da história recente e que pode ter terminado exatamente da mesma forma que começou: praticamente invisível aos olhos da comunidade internacional

A mais recente estimativa sobre o número de mortos provocado pela guerra do Tigré foi divulgada pelo mediador da União Africana para o conflito e ex-presidente da Nigéria, Olusegun Obasanjo, ao Financial Times, a 15 de janeiro. Obasanjo falou em cerca de 600 mil mortos, salientando que, a partir de 2 de novembro do ano passado, dia em que foi assinado o acordo de paz entre o governo etíope e a Frente Popular de Libertação do Tigré, terão sido evitadas cerca de mil mortes por dia.

São números impressionantes, tendo em conta as cifras registadas noutros conflitos – de acordo com estimativas das Nações Unidas, a guerra da Síria fez cerca de 350 mil mortos em dez anos e a guerra do Iémen fez 377 mil mortos em sete anos.

Ainda assim, e apesar de a região do Tigré ter sofrido bloqueios por longos períodos de tempo que tornaram particularmente difícil a realização de uma investigação independente, a mortandade brutal anunciada por Obasanjo é corroborada por especialistas que se debruçaram sobre o conflito. É o caso de Tim Vanden Bempt, académico na Universidade de Ghent, na Bélgica, e membro de um grupo de investigadores que denunciou as atrocidades cometidas no território. O especialista acredita que os números anunciados por Obasanjo não estarão muito longe da realidade: por um lado, tendo em conta os relatórios feitos no terreno, o número de civis mortos pode situar-se entre os 300 mil e os 400 mil e, por outro, há dados não oficiais que indicam que o número de mortos em batalha pode estar entre os 200 e os 300 mil mortos.

De resto, não foi por falta de alertas, tanto de peritos como de organizações internacionais, que se chegou a números tão devastadores. Logo quando começou o conflito, em novembro de 2020, as Nações Unidas mostraram preocupação com o cenário de grande instabilidade que se estava a desenhar num país com cerca de 120 milhões de habitantes e cerca de 80 grupos étnicos, que figura entre as nações mais pobres do mundo.

"A estabilidade da Etiópia é importante para toda a região Centro-Africana. Insto a que a escalada de tensões termine e seja possível chegar a uma resolução pacífica", afirmava o português António Guterres, secretário-geral da ONU, poucos dias depois da guerra brotar na nação africana. 

A guerra começou em novembro de 2020 como o culminar de um ambiente de grandes tensões políticas e administrativas, que foi escalando desde que Abyi Ahmed chegou ao poder, em 2018. Abyi Ahmed ordenou uma ofensiva contra os separatistas da Frente Popular de Libertação do Tigré, enviando o exército federal para a região. Em resposta, o grupo de rebeldes atacou a base principal do exército em Mekelle. Começava assim o conflito armado, que se intensificou depois com a entrada das forças militares da Eritreia a apoiarem o governo federal.

Não foi preciso muito tempo para que a região do Tigré, que vivia num sistema praticamente no limite da autossuficiência, visse o setor da agricultura profundamente arrasado pelos combates. Apenas seis meses depois do início do conflito, o índice internacional que avalia a fome no mundo, conhecido como IPC, estimava que 5,5 milhões de pessoas no país já estivessem numa situação de emergência e 350 mil já se encontrassem mesmo numa situação de fome. As taxas de desnutrição atingiram 40% em crianças menores de 5 anos e o nível de insegurança alimentar chegou a 89% da população total, segundo dados do Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas (PAM). O geógrafo Jan Nyssen, da Universidade de Ghent, alertou para a situação dramática no país, afirmando que se estava a usar a fome como "arma de guerra".

Por outro lado, o território ficou praticamente isolado durante longos períodos de tempo, com comunicações cortadas e camiões retidos na fronteira, incluindo os veículos que levavam ajuda humanitária. Além da privação de alimentos, escasseavam também medicamentos essenciais. A taxa de mortalidade no país recuava aos níveis de 1950. 

Entretanto, esta tragédia humanitária era ocultada pelo governo etíope, com várias medidas que limitavam a liberdade de imprensa. Abyi Ahmed impôs restrições no acesso da imprensa ao território e poucos foram os jornalistas que arriscaram infringir as proibições governamentais. Uma das guerras mais brutais da história recente desenrolava-se longe e intensificava-se de forma praticamente "invisível" para o resto do mundo.

Além do bloqueio que isolou a região, os bombardeamentos e massacres eram constantes e brutais, de acordo com os relatórios dos peritos independentes da Universidade de Ghent. Organizações como a Amnistia Internaiconal e a Human Rights Watch consideraram que foram usadas táticas de limpeza étnica e, embora não tenha havido consenso por parte dos investigadores, alguns académicos chegaram mesmo a falar em genocídio.

Cinco meses de tréguas deram alguma paz ao civis do Tigré, entre março e agosto do ano passado, mas o desespero voltou e em força. A catástrofe humanitária acabaria por se estender por dois anos, com milhões de mulheres e crianças afetadas. 

Só em novembro do ano passado, na África do Sul, o acordo de paz foi conseguido e depois de vários dias de conversações entre as delegações de ambas as partes. Foi numa conferência de imprensa em Pretória que o mediador das negociações Olusegun Obasanjo aunciou o fim das hostilidades e apresentou o documento de oito páginas que selava o fim do conflito. O ex-presidente da Nigéria adiantava ainda que o governo de Abiy Ahmed e os rebeldes do Tigré tinham chegado também a acordo para um "desarmamento ordenado, suave e coordenado", juntamente com o "restabelecimento da lei e da ordem", o "restabelecimento dos serviços" e o "acesso sem entraves aos fornecimentos humanitários".

África

Mais África

Patrocinados