Bactéria que causa amigdalites e escarlatina já matou nove crianças no Reino Unido. "Não temos nenhum relato da doença com esta gravidade em Portugal"

6 dez 2022, 15:49
Criança doente.

Infeções por estreptococo do grupo A, que causa amigdalite bacteriana e escarlatina, estão a aumentar no Reino Unido e já houve nove mortes em idade pediátrica devido a complicações da infeção. Pediatras explicam à CNN do que se trata, quais os sintomas e porque não há razões para preocupação em Portugal

Na sexta-feira, as autoridades de saúde do Reino Unido emitiram um raro alerta: devido ao aumento do número de infeções por estreptococo do grupo A em crianças, os cuidadores deveriam estar atentos a eventuais sintomas, nomeadamente febre alta, dores de garganta ou erupções cutâneas, de forma a prevenirem casos graves da doença.

A grande maioria das infeções causadas por esta bactéria não leva a doença grave, mas desfechos fatais acontecem, apesar de não serem comuns. Ainda assim, desde setembro, as autoridades de saúde britânicas têm registo de nove mortes por complicações decorrentes da infeção por estreptococo do grupo A - que, normalmente, causa amigdalites ou escarlatina. A morte mais recente é a de uma criança com cinco anos que frequentava uma escola em Belfast, na Irlanda do Norte, mas outras mortes foram reportadas no condado de Hampshire, Inglaterra, ou no País de Gales.

Grande parte dos casos de doença grave tem sido registada em crianças com menos de dez anos e foi igualmente reportado um aumento no número de casos de escarlatina: entre 14 e 20 de novembro, registaram-se no Reino Unido 851 casos, contra uma média de 186 no mesmo período em anos anteriores.

Mas os casos fatais britânicos, apesar de incomuns, não devem, por agora, deixar ansiosos os cuidadores portugueses: "Não temos, felizmente, e que eu saiba, nenhum relato de doença com esta gravidade e invasibilidade em Portugal", diz à CNN Portugal Alberto Caldas Afonso, diretor do Centro Materno Infantil do Norte (CMIN). "É preciso perceber se não havia uma comorbilidade nas crianças que morreram que pudesse justificar uma evolução desta natureza tão atípica de uma forma tão invasiva da doença", acrescenta.  

O pediatra lembra que esta é uma das infeções "mais prevalentes" causada por uma bactéria que existe na nossa comunidade e que causa "doenças que estamos habituados a tratar" com antibióticos.

"Trata-se muito bem com penicilina, com grande eficácia, e o diagnóstico é muito simples: basta passar a zaragatoa na garganta dos meninos, é algo que utilizamos por rotina para perceber se é uma amigdalite bacteriana ou vírica", explica o pediatra. "Esta situação do Reino Unido serve acima de tudo para estarmos atentos, obviamente, mas não conhecendo a situação clínica das crianças, tudo que se diga daqui para a frente é especulativo", atalha Caldas Afonso. 

As autoridades de saúde britânicas admitem que, por trás desta agressividade da bactéria - e uma vez que não foi identificada uma nova cepa - possa estar uma quebra na imunidade provocada por sucessivos confinamentos, mas o pediatra do CMIN diz que é preciso investigar mais. "A covid serve para explicar tudo, quando não sabemos arranjamos sempre o mau da fita", ironiza. "E os casos mais graves são de crianças em idade escolar, não foram aquelas que, mal nasceram, estiveram em confinamento, já tinham frequentado um ambiente de sensibilização", assinala ainda o diretor do CMIN.

Uma das infeções mais prevalentes a partir dos três anos

O pediatra Manuel Ferreira de Magalhães também não acredita que os confinamentos sejam os únicos responsáveis por estes casos mais graves de infeção registados no Reino Unido. "São suposições. Já sabemos que o confinamento associado à pandemia de covid-19 ia ter efeitos no sistema imunitário de toda a gente, o nosso sistema imunitário vai contactando com vírus e bactérias e vai-se treinando, deixando de ter esse contacto perde a capacidade de resposta", explica.

Mas, neste caso específico da infeção por estreptococo do grupo A, Ferreira de Magalhães admite que o aumento de casos de maior gravidade possa estar associado a vários factores, quer das bactérias, quer das crianças: "Já estamos à espera que, de tempos a tempos, exista um aumento no número de casos de infeções por determinado agente, seja vírus ou bactéria", explica. "Há alturas em que existe um número de casos mais concentrado e não conseguimos explicar porquê. Tem a ver com a circulação de bactérias, com a sua agressividade, com as condições do meio ambiente, com a proximidade das crianças", aponta ainda. 

Ferreira de Magalhães lembra também que esta bactéria, "que não é nova", é a típica da amigdalite bacteriana e que, em idade pediátrica, causa frequentemente a escarlatina, que "não é mais do que esta amigdalite mais o exantema, quando a pele fica vermelha, rugosa, como areia". 

"É das infeções bacterianas mais frequentes em idade pediátrica acima dos três anos, algo do dia a dia", garante. "Qualquer infeção pode dar complicações e os casos mais simples podem agravar-se. Existem múltiplas complicações de infeções por esta bactéria e a mais comum é a chamada síndrome do choque tóxico, que não é mais do que uma reação exagerada por via das toxinas da bactéria, que têm atingimento multiorgânico, ou seja, de uma grande parte dos órgãos, levando à falência destes órgãos. É uma situação grave em que existe sempre internamento em unidade de cuidados intensivos e que, por vezes, tem um desfecho fatal. Mas não é a maioria das vezes", sublinha Ferreira de Magalhães, que pede aos pais que não se alarmem com a situação britânica.

"Estes quadros graves, como aconteceram na Inglaterra, são de crianças que ficam gravemente doentes. Os pais conseguem perceber", garante: na evolução para choque tóxico, os mais pequenos ficam apáticos, com dificuldade em respirar e febres altas que não cedem aos antipiréticos. "Não pensem nisto de cada vez que há uma dor de garganta", frisa o especialista.

Já sobre a transmissão da bactéria, é feita por secreções ou saliva, exigindo contacto direto. "Não é tão fácil de se transmitir como o vírus sincicial respiratório, agora tão comum, porque esse fica nas gotículas no ar. Mas as crianças metem a mão na boca, no nariz, tocam nas caras dos outros, nas mãos, são imprevisíveis e difíceis de controlar. Mas têm de continuar a viver", conclui o pediatra. 

Segundo a imprensa britânica, as autoridades de saúde estarão mesmo a equacionar tratar de forma preventiva com antibióticos crianças entre os cinco e os 11 anos que frequentam escolas primárias onde houve casos graves, uma medida "rara", escreve o The Guardian esta segunda-feira, uma vez que o recurso ao tratamento profiláctico com antibiótico pode incentivar a resistência bacteriana.

Manuel Ferreira de Magalhães refere que uma ação como esta, neste momento, está "longínqua da nossa realidade" e poderá fazer sentido apenas em comunidades com transmissão elevada e com sinais de gravidade. "Envolve já uma monitorização importante em termos de saúde pública", esclarece. "Não tenho uma bola de cristal, mas o que está a acontecer em Inglaterra dificilmente se vai ver em Portugal", resume.
 

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