Faço parte da maior força de elite desta guerra
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Faço parte da maior força de elite desta guerra

DIÁRIOS DA GUERRA OUTUBRO 2022

DEPOIMENTO
Olexandr Berezhnyi
(a partir de uma entrevista de Germano Oliveira e Teresa Abecasis, em Zaporizhzhia)

Em cima daquela mesa velha transformada em altar está um postal de Jesus Cristo, estão também duas nozes, há ainda a imagem de um santo, ao lado vê-se um livro antigo (será um diário?) e depois aquele altar tem ainda flores e uma espécie de confetes, é um pequeno altar no centro de Zaporizhzhia que tem estas coisas em cima e que está diante de um edifício civil atingido por um míssil russo, é um altar em memória da gente que aqui morreu mas também da gente que ficou viva e que tem de lidar com a gente que ficou morta, não sei o que significam aquelas nozes mas devem significar muito para quem as colocou lá, as pessoas sofrem e homenageiam da maneira que podem, e perto da mesa-altar estão carros queimados, o que resta deles depois dos bombardeamentos, que lugar apocalíptico este onde as crianças brincam, estão ali algumas num baloiço, estou a vê-las, o parque infantil está arranjado no meio deste desarranjo doloroso e elas usam-no, é no meio dos destroços que as nossas crianças fazem as coisas que outras crianças fazem no meio de jardins perfeitos, trouxe os jornalistas portugueses aqui para lhes explicar porque faço o que faço aqui perto, fica a 5/10 minutos a pé deste sitio onde os trouxe, há mais sítios danificados como este em Zaporizhzhia e na Ucrânia inteira, sítios outrora normais que agora são os sítios que nos lembram porque lutamos, pelas duas da manhã de 9 de outubro um míssil entrou por este prédio civil adentro como podia ter entrado pelo sítio onde agora estou e luto, sou cofundador do centro Palyanytsya, é uma força de elite.

No início da guerra os russos vieram tão depressa e precisávamos de barreiras antitanques, de cocktails molotov, de coletes à prova de bala, de roupas para os nossos soldados, de repente estava criado no Facebook um grupo de apoio e no dia a seguir, no dia a seguir era 25 de fevereiro, já tínhamos sido atacados, no dia a seguir juntámo-nos todos e éramos tão diferentes, tão utilmente diferentes, tínhamos quem soubesse costurar, soldar, desenrascar, inventar, maravilhar, elite é isto, gente que sabia fazer explosivos artesanais e gente que cruzou conhecimentos para fazer coletes à prova de bala capazes de serem leves e resistentes - e quando faltou material essa gente arranjou maneira de o fazer chegar dos países escandinavos, que gente temos, que gente magnífica, que força de combate -, num instante tínhamos ainda uma produção maciça de sacos-cama, adereços antichuva e coletes de evacuação para os soldados, juntámos drones para doar ao exército, criámos mantas de aquecimento capazes de resistirem a -35ºC, fizemos barreiras antitanques, aconteceu tudo porque gente que no dia anterior a conhecer-se tinha vidas simples decidiu tornar-se parte de uma indústria de guerra improvisada mas inovadora, e quando o exército soube da nossa capacidade de organização e produção pediu todo o apoio possível e que levássemos também o que pudéssemos para as zonas da linha da frente, andei a distribuir material por vários locais nos arredores de Zaporizhzhia, os russos dispararam sobre mim, fugi de minas, fui e vim e fui e vim, era a minha missão e o meu dever e tudo isto aconteceu porque gente normal juntou-se e acreditou naquilo que nos move, este é poder das pessoas simples, é este poder que nos faz resistir e que nos haverá de fazer vencer.

Olexandr vai abrindo portas no centro e revelando cada vez mais facetas do centro de voluntariado: numa sala fazem-se coletes à prova de bala, noutra treinam-se operadores de drone. Lá fora, nas oficinas, preparam-se velas para aquecer quando não há eletricidade e redes de camuflagem

Mas tudo isto, toda esta resistência, toda esta força e todo este poder que advém da nossa união tem consequências: um dos nossos membros viu num grupo de Telegram russo as coordenadas de um sítio que eles queriam atacar em Zaporizhzhia e essas coordenadas eram as do nosso Palyanytsya, os serviços secretos ucranianos também nos alertaram que tinha sido lançado um míssil na direção de um sítio muito perto de nós e, ainda que eu ache que aquele míssil não era para nós porque há aqui na cidade alvos que os russos queriam e querem atacar, tivemos de discutir entre nós o que fazer, se mudávamos de sítio ou se ficávamos, se desistíamos ou insistíamos na nossa luta, e escolhemos ficar e resistir porque mesmo que mudássemos de local os russos iriam descobrir eventualmente em que sítio estaríamos e por isso teríamos de estar sempre a mudar e a mudar e a mudar e decidimos que não, que isso não podia ser, ficámos mas fortificámos o local, se nos atacarem estamos defendidos, não posso contar a natureza da nossa defesa porque a defesa de um sítio como o nosso é sagrada e por isso secreta, nunca se sabe o que os russos leem ou veem, por isso é sagrada e secreta, é essa a natureza da nossa defesa enquanto a natureza da nossa ação é sagrada mas pública, estamos juntos desde o dia 25 de fevereiro, já agora chamo-me Olexandr Berezhnyi e tenho 42 anos, era diretor financeiro de uma cadeia de restaurantes de sushi, a Sushi Master, e faço parte de uma equipa de costureiros, soldadores, operários, engenheiros, especialistas em tudo e especialistas em nada, somos Palyanytsya, Palyanytsya é uma palavra ucraniana que se refere a um tipo específico de pão ucraniano mas é também uma palavra ucraniana que os russos não conseguem pronunciar devidamente, tornou-se uma espécie de palavra-chave para identificar infiltrados, “ora diz lá palyanytsya”, se disser mal então é porque não é dos nossos, palyanytsya era o nome óbvio para a nossa resistência que chegou a ter 500 pessoas mas agora somos menos, está toda a gente muito cansada, esgotada, toda a gente perdeu gente, gente morta ou gente que teve de ir para fora do país, a minha mulher e o meu filho também foram, primeiro para a Polónia e depois para Itália e a seguir para a Alemanha, mas três dias depois de a Alemanha lhes ter dado autorização de residência eles voltaram, tenho-os de volta mas nunca mais terei o meu pai, mataram-no: chorei quando contei isto aos jornalistas, o tradutor que estava com eles aproximou-se, eu falo inglês e ele não precisou de traduzir e por isso só esteve a ouvir, então o tradutor aproximou-se e disse-me que não fazia mal, que eu podia chorar porque ele também tinha chorado de manhã, que chorar não é uma vergonha mas um alívio, somos pessoas simples e é isso que faz de nós fortes nesta guerra.

O grupo de Olexandr Berezhnyi chegou a reunir cerca de 500 pessoas no início da guerra. Continuam a organizar toda a ajuda necessária conforme o momento da guerra. No início do ano, o foco estava virada para fazer velas duradouras e fogos portáteis, costurar sacos-cama e formar operadores de drone. Foto: Teresa Abecasis/CNN

 

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