Sobrevivi à batalha de Irpin mas tenho medo agora: sou russa e os loucos assustam-me
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Sobrevivi à batalha de Irpin mas tenho medo agora: sou russa e os loucos assustam-me

DIÁRIOS DA GUERRA  MAIO 2022

DEPOIMENTO ANÓNIMO
Nome não publicado por motivos de segurança
(a partir de uma entrevista de Germano Oliveira, em Irpin)

Adoro a Rússia, adoro, mas vivi quase a vida inteira na Ucrânia, adoro a Ucrânia também, vim para cá quando tinha um ano, nasci há 50 em Sverdlovsk, há quem lhe chame Ecaterimburgo mas eu digo Sverdlovsk, foi assim que se chamou de 1924 em diante até à queda da União Soviética, fica na Rússia, adoro a Rússia, adoro, digo ao jornalista o nome da cidade onde nasci mas peço-lhe que não use o meu nome, ele quer saber porquê, digo-lhe que tenho medo, estou assustada, tenho receio de dizer o que penso e de ser agredida por isso, não sei o que será dos russos se a Ucrânia ganhar esta guerra, não se trata de eu ter "russa" escrito na testa mas é isso que eu sou, sou russa, sou uma russa com um filho ucraniano de um homem ucraniano que acha que eu sou demasiado tendenciosa, demasiado pró-russa, ele sabe que eu acho que o Zelensky é um palhaço, eu digo palhaço e o jornalista repete "palhaço?", sim, palhaço, o Zelensky é estúpido, o Zelensky é viciado em drogas, o Zelensky é palhaço, penso isto tudo e penso mais, o Zelensky é demasiado teimoso, devia ceder, devia dar área aos russos, o Donbass por exemplo, às pessoas que vivem no Donbass devia ser perguntado o que querem, um referendo a sério, um referendo apoiado por todos, as pessoas são livres de determinar por si próprias o que querem, certo?, as pessoas são livres de dizer sob que governo desejam viver, não?, se o Zelensky ceder espero que a Rússia pare a guerra, é isso que quero mais, que a guerra pare, estou a tentar ser o mais objetiva possível, quero ser imparcial, ouço tanto as notícias ucranianas como as notícias russas, subscrevi alguns canais de notícias russos porque quero ter uma imagem real, é claro que os russos se retratam como defensores da liberdade e combatentes contra o nazismo e fascismo, talvez tenham razão, ainda não sei.

Claro que há muitas mentiras de ambos os lados, ainda hoje, hoje é maio, assisti a um vídeo em que os ucranianos acusam os russos de terem explodido a ponte em Romanovka mas eu sei que foi o exército ucraniano que a explodiu, explodiu-a no segundo dia da guerra, 25 de fevereiro, tenho a certeza disso e agora mentem, culpam os russos por tudo, tenho a certeza de que ambos os exércitos participaram na destruição de Irpin, ambos os exércitos atingiram casas dos civis, talvez eles tenham falhado alguns alvos, não sei, não tenho a resposta, talvez alguém estivesse escondido entre as casas ou dentro das casas, se calhar falharam, tenho a certeza de que não posso saber toda a verdade, ninguém pode, eu não posso, ainda tenho muitas perguntas sem resposta, por exemplo: não sei se é uma prática normal para a guerra transformar uma cidade como esta num campo de batalha, Irpin foi isso durante um mês, sim, podem vê-lo, está tudo destruído, dispararam uns contra os outros, russos e ucranianos estavam escondidos entre edifícios civis, isso é normal?, os civis foram encorajados a deixarem a cidade, as autoridades encorajaram-nos a isso mas muitas pessoas, não muitas, cerca de 5% dos civis optaram por ficar, eu fiquei e não me escondi em nenhum abrigo subterrâneo, fiquei no meu apartamento, não aconteceu nada ao meu mas quatro casas no prédio foram atingidas por disparos, havia bombardeamentos e granadas a voar, no início de março deixou de haver energia elétrica, água e gás natural, eu tinha alguma comida armazenada em minha casa e alguns vizinhos e eu cooperámos, tentámos sobreviver, fizemos uma fogueira no chão e cozinhámos comida sobre ela, mas algumas pessoas que eram mais ricas guardaram tudo para elas próprias enquanto as pessoas que por alguma razão eram mais carenciadas tentaram realmente ajudar-se umas às outras e partilhar, são coisas assim que se descobrem na guerra, mas na verdade a minha relação com os meus vizinhos melhorou muito, são tolerantes, não são eles que eu temo, são os loucos que me assustam, se os ucranianos ganharem a guerra receio que haja uma limpeza étnica, tenho medo da limpeza étnica, há pessoas que são simplesmente loucas, há uma nova canção com a letra “que um cadáver de um russo seja um fertilizante para o solo ucraniano”, algo do género, os loucos podem levá-la demasiado a sério, mas se fugir não é para a Rússia que vou, provavelmente será para um país europeu qualquer, não quero voltar para o sistema da União Soviética, talvez Putin seja inteligente mas o seu regime é demasiado totalitário.

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