As coisas que fingimos em nome do amor
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As coisas que fingimos em nome do amor

DIÁRIOS DA GUERRA JUNHO 2022

DEPOIMENTO
Armen Kurginian e Alesia Azarova
(a partir de uma entrevista de Germano Oliveira e Teresa Abecasis, em Kyiv)

Eu queria que eles fossem embora, queria mesmo, mas eu também queria que eles não fossem embora: eu sei, que confusão, é o estado em que se fica quando uma guerra começa, portanto “eles” são a minha mulher e o meu filho, era tão mais fácil enfrentar esta guerra sem ambos cá sendo tão mais difícil enfrentar tudo sozinho, bem, é assim, é 1 de junho e eu faço anos daqui a três dias, sou o Armen, Armen Kurginian, tenho 44 anos,

eu sou a Alesia, Alesia Azarova, tenho 38,

eu e a Alesia somos casados, temos um menino de quatro anos, quando a guerra começou eu quis logo que fossem embora, tinham de ir apesar de eu querer tanto tê-los sempre,

tínhamos de ir, Armen, tínhamos de ir,

eu sei, se vocês fossem embora a minha maior preocupação estava resolvida, a vossa segurança, mas dói tanto, o nosso filho é praticamente um bebé, quero estar com ele todos os dias, participar em tudo, quero estar contigo, Alesia, 

eu sei, eu sei, mas tínhamos de ir, 

se vocês ficassem cá eu estaria sempre aflito, se me acontecer algo estou 100% tranquilo com isso, se vos acontecesse algo é fácil de calcular a percentagem do meu sofrimento, por isso vocês foram, primeiro até Lviv e depois para Alemanha, 

ficámos lá com a minha mãe e os meus avós, fomos em fevereiro e regressámos agora para os anos do Armen, vamos ficar durante umas semanas mas depois temos de regressar, tem de ser, além de ser mais seguro o nosso filho agora tem lá os amigos dele, a escola dele, já joga futebol, não sei se um dia ele será uma estrela da seleção alemã ou da seleção ucraniana, não sei, mas ele anda a portar-se muito mal, ahahahahah, 

falo com a Alesia todos os dias por videochamada mas ele é tão pequenino, quatro anos, e por isso é inquieto como os pequeninos todos, não aguenta ficar ali em frente à câmara, mas eu fico em paz por saber que eles estão em segurança, dá-me paz, paz e outra coisa que não sei descrever, não é depressão, é outra coisa, precisei de um mês para me reencontrar depois de eles terem ido embora, eu sempre fiz caminhadas e alpinismo e estou habituado a estar sozinho, a estar sem gás, a estar sem eletricidade, sem essas coisas, estou habituado a dormir em tendas, não é que eu seja um daqueles survivor men dos filmes, não é isso, não preciso é de muito para estar bem mas ir para as montanhas é uma opção, isto aqui é tirarem-me a minha família à força, ninguém veio aqui arrancá-los fisicamente mas é arrancá-los à mesma, ter tanques e aqueles russos todos à entrada de Kyiv é ter de arrancar a minha família do sítio ao qual pertence, que é comigo, preciso deles e naquele primeiro mês depois de eles terem ido embora foi muito difícil, toda aquela solidão e silêncio, Kyiv cercada, ninguém sabia o que ia acontecer, eu achava que só havia duas maneiras: como nós nunca aceitaríamos um governo-fantoche dominado pelo Kremlin, ou os russos entravam aqui e matavam-nos a todos (e não matariam o meu filho nem a Alesia porque já os tinha posto em segurança) ou então nós ganhávamos, ganhámos, eles foram embora, expulsámos os russos mas só daqui, eles continuam no nosso país, continuam a atacar Kyiv com mísseis, entretanto tornou-se mais seguro estar em Kyiv do que era em março, é óbvio que sim, a cidade tenta regressar ao normal mas este é um normal em guerra, nunca se sabe se de um dia para outro o normal é abatido por um míssil, ainda assim agora em junho é mais seguro para a Alexa e o meu filho estarem aqui, vamos passar o meu aniversário juntos e parte do verão, mas quero que eles partam novamente para a Alemanha, as sirenes de ataques aéreos tocam todos os dias, não quero que o meu filho ouça sirenes todos os dias, mas é tão bom tê-los cá, tão bom, mas eu também já me tinha reencontrado nos últimos meses depois daquele primeiro mês, habituei-me à nova vida em que a minha família é uma videochamada e comecei a ajudar a Alesia no trabalho dela.

Eu tenho uma fundação, chama-se 280 Dias, 280 dias é o tempo que uma gravidez saudável deve demorar. O Armen ajuda-me muito: a fundação já existia antes da guerra mas tornou-se mais urgente agora, há mulheres grávidas transportadas de uma região para outra, não conhecem os médicos, não têm dinheiro, por isso ajudamos no transporte delas, ajudamos com equipamento nos sítios onde elas estão e para onde podem ir, ajudamos os hospitais e as maternidades com o que precisam, algumas destas mulheres também perderam os maridos na guerra, por isso ajudamo-las individualmente a superar tudo, ajudamos como podemos para que toda esta aflição e desorientação possam ser atenuadas. Eu trabalho à distância e o Armen aqui, nesta fase temos cedido sobretudo equipamento de diagnóstico: se já era difícil antes da guerra - há muita pobreza na Ucrânia -, se já era difícil antes da guerra imaginem agora, imaginem o que é ser uma mulher grávida a fugir de um sítio qualquer ocupado. Nós vamos enfrentar um grande problema demográfico depois desta guerra - muitas mulheres que fugiram para o estrangeiro com os seus filhos nunca vão regressar, são crianças que este país perdeu para sempre, temos de lutar por cada criança que esteja por nascer. Armen, quais são os números?

Há dez anos nasciam 500 mil crianças por ano, no ano passado foram 230 mil, este ano, já com a guerra em curso, estima-se que vão ser 160 mil, as previsões atualizadas até 2030 são que haverá 0,9 crianças por família, antes da guerra eram 1,6,

por isso é novo dever ajudar todas as grávidas, dar-lhes apoio emocional, vitaminas, equipamentos, transporte, todos os cuidados possíveis, temos de lutar por todas as crianças. Há tantas mulheres, demasiadas mulheres, a terem prematuramente os seus filhos em regiões como Kharkiv e Zaporizhizhia: os nascimentos prematuros aumentaram 50% nos sítios onde as batalhas foram mais intensas ou próximas da fronteira com a Rússia, imaginem o stress destas mulheres, o medo delas pelos seus filhos nascidos antes do tempo em sítios que são bombardeados, há hospitais bombardeados, imaginem o que é ter um filho prematuro nessas condições, o pânico de perdê-los - o meu filho nasceu prematuramente e foi por isso que decidimos criar esta fundação. E sabem em que dia o meu filho faz anos?, é a 24 de fevereiro, 24 de fevereiro, entendem?, sabem o que fiz nesse dia?, o meu pai acordou-me a dizer que a guerra tinha começado e eu comecei a chorar, não pela guerra, vejam lá, mas porque era o aniversário do meu filho, vejam as coisas que nos acontecem, chorei e chorei e depois fingi, enchemos balões pela casa, abrimos o bolo, quisemos festejar o aniversário como se nada tivesse acontecido só que nenhum dos amigos dele do infantário apareceu e o meu filho perguntou porquê?, porquê, mãe?, porquê?

Alesia e Armen viveram a maior parte do ano passado separados. Nos últimos dias do ano, voltaram a reunir a família para assinalar a passagem de ano. Apenas por uns dias. Mãe e filho regressaram à Alemanha no início de janeiro. Foto: Teresa Abecasis/CNN
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