Com a ilusão de que têm um exército invencível
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Com a ilusão de que têm um exército invencível

DIÁRIOS DA GUERRA FEVEREIRO 2023

Dois jornalistas portugueses entram num centro de refugiados em Lviv, trata-se do Jornalista 1 e do Jornalista 2, a guerra começou há uma semana e aquele centro está cheio de gente aflita - são crianças e são mulheres e são idosos, é gente que vem da Ucrânia inteira, gente que come e dorme uma ou duas noites neste centro a caminho da Polónia -, o Jornalista 1 e o Jornalista 2 são guiados pela Yevgeniya, a Yevgeniya Mudrak é voluntária, entretanto o telefone do Jornalista 1 começa a tocar, é um telefonema de Portugal: o irmão do Jornalista 2 ligou porque tem uma notícia-catástrofe e quer saber se o irmão dele está num sítio adequado para ouvi-la, o Jornalista 1 avisa que não, que estão num centro de refugiados que é um centro que já tem dor suficiente e não se deve trazer mais dor para ali; o irmão do Jornalista 2 entende e pede ao Jornalista 1 para tirar o Jornalista 2 dali, dali do centro mas também dali da Ucrânia - a notícia-catástrofe é uma morte, morreu uma pessoa, morreu A pessoa, é preciso regressar imediatamente a Portugal, mas o Jornalista 1 repara que não sabe onde tem a mochila e é na mochila que tem o passaporte, eu sou o Germano, bom dia boa tarde boa noite, esta é a história do Jornalista 1 e 2,

eu sou a Teresa, quando cheguei a Kyiv no fim de dezembro parte de mim não se sentia num país em guerra, à minha volta não via soldados, via vontade de viver, uma vontade que não consigo descrever, não é aquela vontade dos adolescentes que não sabem ainda o que é tentar viver e trabalhar e pagar as contas e arrumar a casa e cozinhar e ter responsabilidades e no fim de tudo ainda pensar em viver, é outra coisa, em Kyiv vi pessoas que querem fazer tudo ao mesmo tempo, trabalhar, pagar as contas, dançar, desenhar nas cinzas, apanhar os vidros partidos e gritar aos russos que ninguém quer saber deles, que eles não os vão conquistar mesmo que os encham de mísseis, mesmo que para isso tenham de viver e trabalhar e dançar no meio dos vidros partidos e dos prédios rasgados por mísseis, eles diziam-nos em Kyiv Não nos vão conquistar, diziam-nos todos isso em Kyiv - os velhos, os novos, as crianças, as mulheres, os homens, todos ao mesmo tempo -, diziam-nos Nós não aceitamos viver em terror, Nós já não nos vamos esconder num bunker, Nós já não aceitamos outro desfecho que não a vitória, Vitória ou morte, diziam-nos todos, e iam trabalhar e esperavam pelo autocarro na paragem e enchiam os restaurantes e brindavam - para eles tentar viver normalmente é em si um ato de resistência contra os russos mas os ucranianos sofrem todos de uma maneira muito igual porque todos conhecem alguém que perdeu gente nesta guerra, a morte está em todo o lado mas eles resistem, vivem, têm de viver,

o Jornalista 1 precisa do passaporte para sair rapidamente da Ucrânia com o Jornalista 2, que ainda não sabe nada do que se está a passar, o Jornalista 1 pede ajuda à Yevgeniya e diz-lhe tudo, pede-lhe ajuda, tinham-se conhecido naquele mesmo dia e estão a ter aquela conversa tão íntima, a Yevgeniya fica com lágrimas, chora-se muito facilmente quando se está na guerra, às vezes chora-se em privado às vezes diante de todos, chora-se muito facilmente na guerra porque tudo acontece muito facilmente na guerra, chora-se e ri-se e mata-se e salva-se com muita facilidade, a Yevgeniya, a Yevgeniya que está ali para ajudar refugiados, a Yevgeniya decide que vai ajudar aqueles dois não refugiados e por isso monta uma operação de busca pela mochila que tem o passaporte dentro, chama o namorado para ajudar; pelo meio o Jornalista 1 liga ao Yuriy, a mãe do Yuriy Leskiv viveu com o marido em Portugal durante cinco anos e regressou a Lviv quando o homem morreu, mas retomando: o Jornalista 1 liga ao Yuriy, que leva ambos os jornalistas para casa da mãe, nesse momento o Jornalista 1 e 2 têm em privado a conversa do fim do mundo, o Jornalista 2 cai ao chão com a notícia, cai literalmente ao chão, entretanto o Jornalista 1 recupera a sua mochila e o respetivo passaporte porque a equipa de busca foi perfeita; são 19:00 e o recolher obrigatório vai começar duas horas depois, há pouco tempo para sair da Ucrânia e o Yuriy decide levar os jornalistas à fronteira, é uma hora para ir e outra para vir e ele arrisca ter de ficar num sítio qualquer porque pode não regressar a tempo de cumprir o recolher obrigatório, ainda assim leva os jornalistas, o Yuriy só conhecia aqueles jornalistas há um dia e já estava a fazer aquelas coisas íntimas por eles, na guerra acontece tudo muito facilmente, e a caminho da fronteira o Yuriy começa a chorar e diz que quando o pai dele morreu em Portugal teve de ir buscar o corpo dele, guiou da Ucrânia até Lisboa e voltou, o Yuriy tem quase dois metros e um penteado mais ou menos à mohawk, é tão forte ver um gigante daqueles a chorar, o Yuriy explica a seguir que entende muito bem a dor do Jornalista 2 e que por isso é um dever ajudar a que ele chegue a tempo ao funeral, o Jornalista 1 ouve isto tudo e interroga-se sobre que povo é este que está em guerra e que por isso tem de se concentrar em ajudar o seu próprio povo, que povo é este que está em guerra e que por isso tem de ter o próprio povo como prioridade, que povo é este que no meio disto tudo se comove com o drama particular de dois estrangeiros e não os pretere, não os abandona, salva-os, torna-os prioritários, eu sou o Germano e naquele dia o Yuriy deixou-me, a mim e ao Jornalista 2, onde era preciso estar para chegarmos a tempo do funeral em Portugal e enquanto isso o Yuriy voltou para onde a guerra acontece, mas que povo é este?,

quando eu, Teresa, e o Germano estávamos a almoçar num restaurante em Kyiv a 31 de dezembro de 2022 tocou novamente um alarme de mísseis, estão sempre a tocar, mas o almoço não foi interrompido, os donos do restaurante não deixaram: passaram-nos para uma sala interior, uma espécie de bunker, e deram-nos uns copos de vodka, não sei bem para quê mas talvez para sublinhar que os mísseis que podiam passar por cima da nossa cabeça mas não iriam de forma nenhuma atrapalhar o nosso almoço, talvez a guerra também seja isso, beber mais um copo quando chegam os mísseis, os ucranianos fazem questão de ter normalidade, seja lá o que a normalidade for dentro de uma guerra, e por isso os russos não têm o dever de interromper um almoço com os seus mísseis, mísseis que voltaram mais tarde nessa madrugada de passagem de ano: estávamos num prédio no centro de Kyiv, a cidade inteira estendida à nossa frente, o prédio era todo envidraçado, janelas enormes, vimos as antiaéreas a funcionar, parecia o fogo de artifício de noite de passagem de ano mas este fogo de artifício era do género que mata, eram explosões de luz no céu escuro que iam aparecendo em sítios diferentes, vimos tudo e ouvimos um estrondo, os estrondos repetiram-se, e naquele mesmo instante havia festas de ano novo pela cidade, os ucranianos festejavam-se a si próprios, por isso este trabalho que publicamos agora em fevereiro na CNN Portugal não é uma reportagem de guerra, é uma reportagem sobre pessoas que escolhem viver todos os dias da sua vida sem medo de serem livres, sem medo do custo que manter essa liberdade tem porque o que nos define não é o que os outros nos fazem, é como nós escolhemos viver - estas pessoas escolheram ser fogo de artifício mas este fogo de artifício é do género que salva,

foi com uma força parecida com esta que Lena Mukhina sobreviveu há mais de 80 anos, a Lena e a gente dela, a Lena escreveu uns diários de guerra entre 1941 e 42 durante o cerco de Leninegrado, é um relato muito íntimo e cru, violento também, sobre um período em que os nazis quiseram entrar pela União Soviética adentro, o livro chama-se “O Diário de Lena: a história real de uma adolescente durante a Segunda Guerra” e serviu de inspiração para o conceito mas também para o desfecho desta reportagem que a CNN Portugal publica sobre um ano de guerra na Ucrânia: há um momento nos diários da Lena, uma passagem muito simples, até ingénua na forma mas tão certeira, que explica o que a determinação de um povo agredido consegue diante da agressão mal calculada de um invasor externo, foi num tempo em que os russos eram os agredidos: 

“Com a ilusão de que têm um exército invencível, os nazis estão a atacar a União Soviética. Mas os nossos inimigos calcularam mal. Mesmo que o exército deles esteja mais bem armado que o nosso, ainda assim vamos derrotá-los porque falta união ao exército nazi: os soldados deles são obrigados a lutar contra a sua vontade, estão exaustos, estão preocupados com as suas famílias, não querem lutar contra a União Soviética. Os soldados, os pilotos, os condutores de tanques e outros estão ansiosos por se renderem. Eles não têm mais forças para lutar, nem física nem mentalmente”.

 

 

FIM
(dos primeiros 12 meses de guerra)

 

 

REPORTAGEM
Germano Oliveira e Teresa Abecasis, na Ucrânia

FIXER Andrii Kovalenko

TRADUÇÃO Tania Oliynyk

WEB DEVELOPMENT Jorge Martins 

WEB DESIGN Nuno Moreira

COORDENAÇÃO EDITORIAL Pedro Santos Guerreiro

DIRETOR Nuno Santos

 

 

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