Fomos para a guerra com uma arma que não mata ninguém
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Fomos para a guerra com uma arma que não mata ninguém

DIÁRIOS DA GUERRA AGOSTO 2022

DEPOIMENTO
Helen Yanko e Trek Thunder Kelly
(a partir de uma entrevista de Germano Oliveira e Teresa Abecasis, em Irpin)

Os pintores são pessoas emocionais, sabem?, claro que sabem, eu pintava os carros e chorava, eu pintava e chorava, e depois apareceu aquela mulher, ela até nos ofereceu dinheiro e tudo, tive de ir atrás dela- ah, esperem, tenho de me apresentar primeiro, chamo-me Helen Yanko, tenho 33 anos, sou pintora, 

eu sou o Trek Thunder Kelly, americano, 53 anos, aqui há uns meses conheci uma familiar da Helen num restaurante em Roma, 

a irmã do meu marido fugiu para o estrangeiro quando a guerra começou e ela conheceu o Trek num restaurante, eles falaram e durante aquele encontro o Trek perguntou-lhe se ela conhecia pintores na Ucrânia,

sim, sim, aquele encontro e aquela conversa deram-me uma ideia, decidi que iria à Ucrânia usar a arte contra a guerra, eu sou artista, pinto murais, pensei então num projeto em torno dos girassóis, os girassóis são o símbolo ucraniano da esperança e do renascimento, 

e os girassóis são também um símbolo da memória dos nossos militares mortos desde 2014, é um símbolo oficial, Trek,

pensei então nos girassóis e achei que devíamos fazer uma intervenção pública, que devíamos provar que das ruínas da guerra pode nascer beleza, que é possível pegar nas cinzas da destruição humana e nesse mesmo local começar a reconstruir o futuro, 

depois de o Trek ter conhecido a irmã do meu marido ele mandou-me uma mensagem no Instagram a perguntar se eu conhecia pintores na Ucrânia, eu respondi que iria procurar mas não sabia de que tipo de pintores é que ele precisava, se eram muralistas ou artistas digitais,

eu queria mesmo ter uma intervenção pública, transformar um local que fosse símbolo de destruição num local que passasse a ser símbolo de esperança, falámos sobre as possibilidades que tínhamos e surgiu a hipótese do cemitério de carros de Irpin, quem passa por Irpin vai passar quase de certeza por um local onde estão vários carros em cima uns dos outros, carros baleados, carros pisados por tanques, carros partidos, carros queimados, carros mortos, estão ali empilhados uns em cima dos outros, uns ao lado dos outros, amontoados, tristes, tragicamente tristes, são uma memória permanente das consequências da guerra, das devastadores consequências da guerra, portanto pareceu-nos que seria o local perfeito para fazer uma intervenção forte, simbólica, poderosa, comovente, inspiradora, aquele cemitério é um dos vestígios mais visíveis da desgraça que aconteceu em Irpin, foi ocupada pelos russos, 

eu fui falando com o Trek relativamente aos diferentes locais que estavam destruídos onde podíamos pintar murais, trocámos mensagens nas redes sociais, fui procurando pintores, e assim de repente ele vem para a Ucrânia, encontramo-nos e fomos juntos para Irpin.

  • O "cemitério" de automóveis de Irpin. Foto Teresa Abecasis/CNN
    O "cemitério" de automóveis de Irpin. Foto Teresa Abecasis/CNN
  • "Os girassóis são o símbolo ucraniano da esperança e do renascimento", diz Trek. Foto Teresa Abecasis/CNN
    "Os girassóis são o símbolo ucraniano da esperança e do renascimento", diz Trek. Foto Teresa Abecasis/CNN
  • "Os girassóis são também um símbolo da memória dos nossos militares mortos desde 2014", completa Helen. Foto Teresa Abecasis/CNN
    "Os girassóis são também um símbolo da memória dos nossos militares mortos desde 2014", completa Helen. Foto Teresa Abecasis/CNN
  • O cemitério fica a meio de uma estrada. Muita gente para para ver. E fotografar.. Foto Teresa Abecasis/CNN
    O cemitério fica a meio de uma estrada. Muita gente para para ver. E fotografar.. Foto Teresa Abecasis/CNN
  • Esta foi a primeira carrinha pintada por Trek. Foto teresa Abecasis / CNN
    Esta foi a primeira carrinha pintada por Trek. Foto teresa Abecasis / CNN
  • #flowersforhope é a hashtag do movimento. Foto Teresa Abecasis/CNN
    #flowersforhope é a hashtag do movimento. Foto Teresa Abecasis/CNN

A Helen é maravilhosa, ela e a família dela, e portanto no dia 12 agosto fomos até ao cemitério de carros de Irpin, a tinta que tínhamos encomendado ainda não tinha chegado mas as drogarias locais resolveram-nos o problema, o primeiro sítio que pintei é uma carrinha com a porta de correr de trás toda partida, se vocês forem a Irpin veem logo qual é, é uma carrinha que tem as vísceras à mostra, pintei a porta esquerda da frente com um pequeno girassol e depois pintei dois enormes girassóis na parte da retaguarda da carrinha que não estava destruída, 

os primeiros carros que pintei estão ali ao fundo, foi tão duro, já vos disse como é: os pintores são pessoas emocionais e eu na minha cabeça tinha simplesmente o horror que sofreu a gente a quem estes carros pertenciam, para mim isto também foi um passo para o renascimento, é preciso continuar a seguir em frente, a viver e a tornar este mundo um mundo de arte poderosa que inspire outras pessoas, mas foi tão complicado começar a pintar, foi tecnicamente difícil porque isto não é uma tela e foi emocionalmente difícil porque isto é um local cheio de sofrimento, naquele carro ali, por exemplo, até ficou louça e tu vês que as pessoas estavam a tentar levar consigo esses objetos, nestes carros iam pessoas e tu não sabes o destino delas, por isso ao longo de todo o processo de pintar estes carros sofri muito, pintava e chorava, pintava e chorava, 

o cemitério de carros fica no meio de uma estrada onde passa muita gente e de repente tínhamos todo o tipo de gente a pintar connosco, famílias com crianças pequenas, há um grupo de músicos que parou para filmar e fizeram um vídeo para a banda deles, tanta gente passou por ali enquanto estávamos a pintar girassóis naqueles carros que lembram o pior da humanidade mas que nós transformámos em símbolos do mais humano que há em nós, esperança, esperança, #flowersforhope, é a hashtag do movimento, e ter toda aquela gente a aparecer aleatoriamente ali foi tão importante e emotivo, é fundamental que as pessoas sejam parte da arte em vez de ficarem só a ver a arte, #flowersforhope,

até os militares das Forças Armadas da Ucrânia pararam, vieram ter connosco e agradeceram muito pelo nosso trabalho, que este renascimento os inspirava para a vitória, por isso: a vida não pára - nós continuamos a viver com esta dor, é uma dor que ficará para sempre, mas temos de ser como estes girassóis, como estas sementes, temos de estar unidos, cada um tem a sua própria frente de batalha nesta guerra e luta com as armas de que dispõe, a minha arma é esta, um pincel - muitas pessoas que sobreviveram a isto, que sobreviveram à ocupação em Irpin, vieram e agradeceram-nos, #flowersforhope, uma vez chegou uma senhora aqui e, como vos disse, ela até nos ofereceu dinheiro, disse “aceitem” e fugiu, eu fui a correr atrás dela e perguntei “posso a abraçá-la?”, sim, pude, e depois ela disse-me que tinha sobrevivido à ocupação, que o nosso trabalho mexia muito com ela e disse-me mais, “lá no céu eles veem a beleza do que vocês estão a fazer aqui”.

Helen Yanko em Irpin
Helen Yanko voltou a pintar a tempo inteiro depois da guerra começar e já não quer voltar para um escritório. Foto: Teresa Abecasis/CNN
Trek Thunder Kelly em Irpin
Trek veio dos Estados Unidos para a Ucrânia para usar a arte como arma contra a guerra. Foto: cortesia de Trek Thunder Kelly
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