As cinco crianças mais tristes que já vi
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As cinco crianças mais tristes que já vi

DIÁRIOS DA GUERRA NOVEMBRO 2022

DEPOIMENTO
Olena Zhuk
(a partir de uma entrevista de Germano Oliveira e Teresa Abecasis, em Zaporizhzhia)

Aquelas cinco crianças, não imaginam como aquilo me doeu e não são sequer as minhas crianças, respiro fundo, ai aquelas crianças, ai delas e ai de nós, sinto-me tão envelhecida, é estranho olhar para as fotografias, as minhas e as dos outros, parece que estamos todos 10 anos mais velhos e nem um ano passou, quando digo “nisto” é nesta guerra que iremos vencer, tenho a certeza disso, temos todos, vitória vitória vitória, mas sinto-me exausta, tanto tanto mas tanto, exausta não é vencida nem quebrada, exausta é exausta e é só isso, não confundam as coisas que eu não as confundo de certeza mas temos o direito à exaustão, sentimo-nos todos assim e não é só por fora, não é só por fora que estamos mais velhos e exaustos mas por dentro também: ver o que o que nós vimos, sentir o que nós sentimos, perder o que nós perdemos, viver continuamente nesta aflição dos mísseis, é inadjetivável o pânico permanente de um dia acontecer-nos isto que está aqui atrás de mim, um míssil russo partiu este prédio ao meio, é tão inesperado como os prédios ficam depois de serem feridos pelos bombardeamentos, uma parte deles desaparece simplesmente, este prédio foi rasgado ao meio mas as duas partes, a da esquerda e a da direita, as duas partes ficaram de pé, existem como se não tivessem perdido uma parte delas, daqui consigo ver uma cozinha praticamente intacta, aquele microondas ali, veem?, onde está a família que o usava?, não sei, vejo um quarto daqui que tem um armário de madeira com um espelho grande numa das portas, que pessoa é que aquele espelho refletia?, estará viva?, estará onde?, podia ser a minha casa, tememos sempre que haverá de ser a nossa casa quando a nossa casa não foi a atingida, são capazes de entender o que isto nos faz?, o impacto que tem nas nossas vidas?, estou tão mais velha por dentro e por fora, chamo-me Olena Zhuk, sou diretora do conselho regional de Zaporizhzhia, tenho 37 anos.

Em Zaporizhzhia, como um pouco por toda a Ucrânia, há prédios habitados que foram partidos ao meio pelos mísseis

Nunca mais serei a pessoa que fui, a guerra quebra-nos para sempre, atinge algo muito profundo dentro de nós, a nossa essência, vamos vencer os russos, vamos vamos vamos vamos vamos vamos vamos vamos, mas é o que Zelensky diz, nunca mais seremos quem fomos mesmo que a guerra acabasse agora neste instante - que fique claro que nós vamos reconstruir o país inteiro, ai vamos vamos vamos vamos vamos vamos, vamos reconstruir casas, vamos reconstruir o nosso potencial industrial, vamos reconstruir as nossas empresas, vamos fazer tudo o que é fisicamente possível, que não haja qualquer dúvida sobre isso, mas a partir do momento em que acordamos um dia às quatro da manhã com mísseis a atacar tudo o que nos é sagrado, a partir do momento em que tudo à volta começa a explodir, a partir do momento em que as nossas pessoas morrem, a partir do momento em que cada pessoa está em pânico com o que pode acontecer a si própria mas sobretudo às crianças, ai as nossas crianças, o que se faz às crianças deste país?, mataram-nos 1500 crianças nesta guerra, não dá para recuperar disto, podem dar-nos o dinheiro que quiserem, as armas, os tanques, podem obrigar os russos a pagarem pelo que nos destruíram, podem condená-los a todos, prendê-los, castigá-los, mas não nos podem pagar com nada, com nada, com nada, estamos mais fortes mas mais vazios, a linha da frente fica a 25 quilómetros deste sítio onde estou, Mariupol fica a 60, 60 quilómetros, o que são 60 quilómetros?, 60 quilómetros e parece que Mariupol fica no além, de um dia para o outro deixámos de saber o que se passa lá, as pessoas têm água, têm eletricidade?, têm comida?, tem aquecimento?, nos primeiros três meses de guerra chorei e chorei e chorei, eu fiquei aqui em Zaporizhzhia com a minha filha e daqui não saio apesar de a frente estar tão próxima, é um dever ficar aqui a ajudar quem foge, recebemos 320 mil pessoas e cá estaremos para ajudar mais, portanto quando nos acontece tudo isto o nosso dever é pegar na exaustão e ganhar esta guerra, é o preço da liberdade, eu não estou aqui para me preparar para o pior, quero lá saber se a frente da guerra está a 25 quilómetros daqui, vamos vencer, vamos vamos vamos vamos vamos vamos, para mim é melhor estar aqui do que não estar, este é o meu dever, ajudar, proteger a minha filha de nove anos e ajudar quem consegue fugir dos territórios ocupados aqui à volta ou de qualquer território, nada nos pode destruir mas há tanto que nos pode magoar, sabem?, é novembro e depois de todos estes meses de guerra ainda somos devastados por tanto quando pensámos que já aconteceu tudo, há dias apareceram cinco crianças no meu prédio, estão a morar num apartamento ao lado do meu, sabem o que lhes aconteceu?, sabem?, a mais nova tem um ano e a mais velha 12, num dia a mãe morreu em Mikhailovka, é uma pequena vila aqui na região de Zaporizhzhia, e a seguir morreu o pai, por isso o irmão da mãe, o irmão da mãe tem 20 anos, por isso o irmão da mãe foi buscar as cinco crianças e vai cuidar delas, já nada nos pode destruir.

Olena Zhuk nunca pensou em fugir da guerra, mas sabe que nunca mais vai ser a mesma. Foto: Teresa Abecasis/CNN

 

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