Como disparar uma glock
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Como disparar uma glock

DIÁRIOS DA GUERRA JANEIRO 2023

DEPOIMENTO
Andrii Kovalenko
(a partir de uma entrevista de Germano Oliveira e Teresa Abecasis, em Kyiv, Bucha e Zaporizhzhia)

O desejo de ano novo de um dos meus filhos é que o Putin morra, guys, que o Putin morra, foda-se, o meu puto devia estar a jogar consolas e essas coisas e quer que o Putin morra, guys, e depois descubro aquilo sobre o meu outro filho, mas que caralho?, desculpem, eu não sou uma pessoa muito emocional, não sou, mas é a guerra, a guerra a guerra e a guerra, e são os meus filhos, guys, os meus filhos, foda-se, desculpem.

Sou o Andrii Kovalenko, a minha mãe é bielorrussa e o meu pai ucraniano, tenho 36 anos e estou tão cansado e tão chocado, tenho dois filhos, um de oito anos e outro de 13, estou casado desde os 19 anos e no início da guerra fiz o que pude, quando os russos estavam ali à entrada de Kyiv meti a minha família no carro e violei todas a regras de trânsito que possam imaginar, acelerei e acelerei e acelerei e não sei que mais, foda-se, guys, eu digo guys muitas vezes e digo palavrões e conduzo bastante depressa, não me julguem por isso, os tanques dos russos estavam à entrada de Kyiv e começaram os bombardeamentos, eu tinha de tirar a minha família dali e fiz o que outras famílias fizeram, peguei na minha mulher e nos meus filhos e levei-os à fronteira, a Lviv, eles seguiram para a Polónia e eu regressei para Kyiv, senti-me tão só, não imaginam, os russos à entrada da minha cidade e a minha família longe, casei-me cedo, tinha 19 anos, eu e a minha mulher estivemos sempre juntos, desaprendi de estar sozinho nestes anos todos e tive de reaprender isto subitamente com uma guerra literalmente à porta da minha casa, casa?, qual casa, isto já não é casa, casa é onde ela e os meus putos estão, isto é outra coisa qualquer, quando se fica assim só começamos a pensar em coisas, coisas más, se os russos entrarem por aqui dentro vamos morrer todos porque nós não nos vamos entregar e vamos morrer todos mas sozinhos com as nossas famílias lá longe, quando a guerra acabar hei de fazer terapia, preciso mesmo, custou tanto, tanto tanto tanto.

Desde o início da guerra que Andrii não pára: a sua missão agora é mostrar o país a outros jornalistas. Foto: cortesia de Andrii Kovalenko.

 

Foda-se, guys, não sei o que teria sido de mim sem o trabalho, o trabalho que o exército quis que eu fizesse que é também o trabalho que eu gosto de fazer, quando fui ao centro militar depois de a guerra ter começado disseram que não precisavam de mim com uma arma na mão mas que precisavam que eu deixasse os jornalistas estrangeiros armarem-se de histórias, é preciso que o mundo veja o que se passa na Ucrânia e para isso precisamos de jornalistas aqui, jornalistas que por sua vez precisam de quem os conduza e de quem lhes traduza entrevistas, é esse o meu trabalho, sou fixer, sou um intermediador, um facilitador, eu era jornalista antes da guerra e agora sou fixer, é o que me salvou, guys, trabalho desde o dia 1 da guerra até hoje, ocupei-me de trabalho, distraí-me com trabalho, fiz tudo pelo trabalho, foi assim que consegui enfrentar a minha casa vazia, guys, e entretanto conheci dois jornalistas portugueses no início de março, comecei a trabalhar com eles e eles disseram-me que iam ficar no hotel tal e eu “guys, não é preciso, fiquem comigo, fiquem na minha casa, guys”, eles disseram que sim mas que seria só temporariamente, mas entretanto passou um mês e estivemos esse mês juntos, de dia trabalhávamos e à noite falávamos sobre as coisas todas, não imaginam quão importantes eles se tornaram para mim, fui com eles e depois com outros jornalistas a todos os sítios, estive em Kherson, em Kharkiv, em Bakhmut, em Donetsk, em Odessa, em Zaporizhzhia, em Mykolaiv, estive em todo o sítio, trabalhei com gente de todo o mundo e do vosso país, jornalistas da Lusa, da RTP, do Expresso, da CNN Portugal, do Observador, às vezes digo em português “pastéis de Belém foda-se caralho” e os portugueses riem-se muito, adoro pastéis de nata e um deles contou-me a história desses pastéis de Belém, por isso rimo-nos, tem de ser, é uma forma de atenuar circunstancialmente todo o horror, vi tanto, eu estive em Bucha naquele dia, sabem, naquele dia em que o mundo foi ver a Bucha como os russos a deixaram, cadáveres no chão, gente morta e mutilada, carros com “há aqui crianças” pintado nas portas mas todos baleados, amassados, destruídos, quando cheguei a casa nem para a minha mulher liguei, casa é onde ela e os meus putos estão mas naquele momento eu nem sabia em que mundo estava, sentei-me no sofá e chorei, eu não sou uma pessoa muito emocional, guys, não sou mas foda-se, porque é que os russos fizeram aquilo?, guerra é soldados contra soldados não aquilo, guys, hei de fazer terapia depois da guerra, agora não tenho tempo.

Entretanto a minha mulher voltou da Polónia, ela é dentista, conseguiu arranjar um bom emprego com um bom salário lá e os meus filhos adaptaram-se bem mas eles quiserem regressar, queriam estar comigo, a casa deles é também onde eu estou, guys, foda-se, desculpem a emoção, um dia a minha mulher ligou-me e disse Andrii que se fodam as bombas, ela também diz palavrões, Andrii que se fodam as bombas, Andrii esse é o nosso país, Andrii quero estar aí, Andrii o nosso lugar é contigo, e então ela pegou nos meus putos e vieram todos, guys, fiquei tão feliz, decidimos que eles iam ficar em Zhytomyr, é relativamente perto de Kyiv e lá temos um gerador, é a casa da minha mãe, eles não ficam às escuras, estão mais seguros do que aqui, como sabem Kyiv tem tido ataques aéreos cada vez mais frequentes, temos blackouts, o nosso apartamento na cidade fica sem luz pelo menos durante quatro horas por dia, eu não os quero sem luz e a ouvir permanentemente os alarmes de ataques aéreos, quero o mais normal possível para eles, o normal é ótimo, eu não me importo de ter esta vida, não me importo, não me importo de não ter luz desde que também não tenha russos aqui, foda-se, ontem foi a noite de ano novo e eu fui passar a festa com eles a Zhytomyr, adormeci às 21:00 e acordei às 02:00, vejam lá, em vez de me divertir com eles eu adormeci, eles deixaram, eles perceberam, durmo tão mal desde que a guerra começou, hei de fazer terapia depois, hei de pois, quando acordei às 02:00 escrevi aos dois jornalistas da CNN Portugal com quem estou a trabalhar agora a perguntar se eles estavam bem, se têm cumprido a regra das duas paredes que lhes ensinei: quando nos refugiamos durante o aviso de ataque aéreo tem de haver pelo menos duas paredes entre nós e o exterior, no caso deles a parede de fora do hotel e a parede do WC, a casa de banho é um lugar seguro em tempos de guerra, eles estavam bem, às 07:00 fui buscá-los ao hotel deles e estamos agora a caminho de Zaporizhzhia, fica a 15-20 quilómetros da linha da frente, estou aqui com eles e eles sabem em que estado estou, disse-lhes há dias que falei com a minha mulher e pedi-lhe que voltasse com os putos para a Polónia, isto está a ficar perigoso outra vez, eu acho que vou ser chamado para a linha da frente - vem aí uma nova mobilização e tenho a certeza de que desta vez eles precisam de mim com uma arma na mão, falei com a minha mulher e tivemos uma conversa muito intensa, guys, sabem o que é que ela me disse?, ela disse-me que casa é onde eu estou com eles e que ela e eles não querem outra casa, que se fodam as bombas, disse ela, guys, que se fodam as bombas, disse ela, vão ficar comigo mas eu tenho medo, foda-se, só os estúpidos é que não têm medo, mas acredito em cada uma das palavras do Zelenski no discurso de ano novo dele, acredito tanto que quis que os jornalistas da CNN Portugal ouvissem o discurso, decidi traduzir-lhes tudo enquanto vamos para Zaporizhzhia, são oito horas de viagem e por isso há tempo para tudo, emocionei-me quando o Zelenski disse “não podemos esquecer, não podemos perdoar, mas podemos ganhar”, eu não sou uma pessoa emocional, guys, mas caralho, o meu filho de oito anos disse-me que o desejo de ano novo dele é que o Putin morra, guys, o meu filho tem a idade de brincar, por isso brinca, meu filho, brinca, foda-se, o meu filho de oito anos anda a desejar a morte de pessoas, mesmo que seja esta pessoa-Putin isto é arrasador, fiquei tão triste, guys, e sabem o que é que eu descobri no outro dia?, sabem?, fui ver o histórico do browser do meu puto de 13 anos, eu sabia que não devia fazer isto, que devia respeitar a privacidade dele, mas fui e ele tinha estas três pesquisas no Google, “como disparar uma glock”, “como usar uma espingarda”, “o que é uma arma pneumática”, foda-se, guys, eu fui falar com ele, Que se passa, filho?, e ele disse-me que está a preparar-se para ir combater, o meu filho tem 13 anos, foda-se.

Na viagem para Zaporizhzhia, Andrii traduz o discurso de Zelensky de Ano Novo e revela o cansaço de um ano de guerra
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