Eu, ucraniana, tive de ir pela Rússia para me salvar e ao meu filho
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Eu, ucraniana, tive de ir pela Rússia para me salvar e ao meu filho

DIÁRIOS DA GUERRA SETEMBRO 2022

DEPOIMENTO
Teryana Menglebey
(a partir de uma entrevista de Germano Oliveira e Teresa Abecasis, em Dnipro)

Imaginem, para fugir dos russos tive de ir à Rússia, não é contraditório como parece, explico já, a guerra é tão imprevisível até na maneira como fugimos, tive de sair da Ucrânia via Rússia para voltar a entrar na Ucrânia, eu explico já-já mas deixem-me dar contexto antes, é importante para entender não só a minha fuga mas quem eu sou, chamo-me Teryana Menglebey, tenho 41 anos, venho de Svatove, se pesquisarem no Google pode aparecer-vos Svatovo, Svatovo é a maneira russa de se dizer a minha casa, Svatove é a maneira ucraniana, há mais casos assim, Kyiv é em ucraniano e Kiev em russo, Lviv e Lvov idem, Kharkiv e Kharkov, portanto Svatove fica em  Luhansk, em russo diz-se Lugansk, se pesquisaram no Google por Svatove é provável que vos apareça também Kreminna nos resultados, são 50 quilómetros de uma à outra e estrada que as liga é uma obsessão dos russos, eles precisam dela para acederam a outras vias rodoviárias fundamentais, são 50 quilómetros de que o exército ucraniano também não podia abdicar sem luta, eu aguentei até ao limite, sabem?, até ao limite, foi sempre insuportável desde 24 de fevereiro, explosões e bombardeamentos constantes, mas foi ficando pior, é sempre possível ficar pior na guerra, eu trabalhava numa empresa de abastecimento de água, o meu pai era diretor lá e recusou-se a colaborar com os russos quando eles entraram na cidade, ele fugiu durante 24 horas mas depois foi capturado.

Depois de prenderem o meu pai agrediram-no, pontapearam-lhe a cabeça, torturaram-no, o meu pai tem 65 anos - 65 anos, entendem? -, ele continuou a recusar colaborar com eles, puseram-lhe um saco na cabeça, é impossível viver sob ocupação, estamos aterrorizados o tempo inteiro, eles não nos tratavam como gente mas como escravos, aguentei até ao limite, sabem, até ao limite, mas eu sabia que vinha aí uma batalha ainda maior, eu tinha de sair dali com o meu filho, para os homens é quase impossível sair, há lei marcial, é um território ocupado, mas eu e o meu filho tínhamos de ir, o meu filho tem oito anos - oito anos, entendem? -, não o podia deixar ali, nem pensar, é sempre possível encontrar gente que tira mulheres e crianças dali, no meu caso foi um taxista, mas é preciso correr riscos, corremos, tivemos de ir pela fronteira russa, é o caminho que quem nos tira dali faz, as pessoas encontram caminhos para estas coisas, a fronteira russa fica mais ou menos a duas horas, o taxista foi para ali e depois veio para aqui, Ucrânia, casa, entendem o que aconteceu?, para fugir dos russos tive de à Rússia primeiro, não sei se é irónico ou trágico, depois deixaram-me num centro de refugiados em Dnipro, é aqui que estou e onde me encontraram estes jornalistas portugueses, já pensei em ir para a Polónia, não sei, mas isto é confortável e não é, não está ocupado por russos mas está ocupado por esta dor toda, já viram quantas famílias estão aqui?, isto aqui é uma espécie de ginásio com várias salas grandes, são cerca de 100 metros quadrados por sala, parece muito, não parece?, mas são cerca de 30 pessoas por divisão mais os pertences de cada um e os beliches onde dormimos, o edifício inteiro cheira a sono, aquele cheiro dos quartos quando as pessoas acordam de manhã, cheira tanto a sono, estamos tão dormentes, tão perdidos, tão à espera, tiraram-nos as nossas vidas, vejam-me, estou aqui de pijama e chinelos a contar a minha intimidade, o meu sofrimento, a minha agonia, eu vim para aqui só com uma mala, uma mala, as coisas todas que agora possuo cabem numa mala, já chega, deixem-me limpar as lágrimas, chega, não sei o que se passa com a minha família em Svatove, as comunicações estão cortadas, eu sabia que vinha aí uma grande batalha e veio mesmo.

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