Amo-te, Mark
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Amo-te, Mark

DIÁRIOS DA GUERRA FEVEREIRO 2022

DEPOIMENTO
Olexander Chayka
(a partir de uma entrevista de Germano Oliveira e Teresa Abecasis, em Kyiv)

aviso: esta reportagem contém descrições e linguagem explícitas

Um homem que nunca vi acabou de me abraçar, eu nem sabia que ele estava ali atrás a ouvir-nos, estamos no McDonald's de Kyiv e é um sítio tão estranho para eu estar a falar com dois jornalistas portugueses sobre o que me aconteceu e mais estranho ainda para eu estar a ser abraçado por este desconhecido que se comoveu comigo e que me deixou comovido com ele e que fez todos à volta ficarem comovidos connosco no McDonald's, que sítio tão improvável para estes gestos tão íntimos e para esta minha história que me dói tanto, eu sou o Olexander Chayka, tenho 33 anos e já não posso ser mais professor de dança, perdi uma parte do meu corpo nesta guerra.

Guerra?, isto não é uma guerra, até na guerra há regras e os russos não têm nenhumas, não imaginam quão horroroso e cruel é mas antes de eu ter descoberto que isto não é uma guerra mas outra coisa qualquer, outra coisa pior qualquer, antes de eu saber disso tive de levar a minha mulher e a irmã dela para Lviv, foi logo a 24 de fevereiro, o dia em que tudo começou, elas estariam em segurança em Lviv enquanto eu estivesse a lutar pela segurança delas, da minha família inteira, dos meus amigos, dos meus alunos, pensei em toda a gente e decidi que não podia ficar sem fazer nada, em nome deles mas também em meu nome, por isso fui voluntariar-me para combater e não podia fazer de outra maneira, eu sabia que podia ser útil, formei-me em economia e fui contabilista antes de ser professor de dança, também percebo de computadores, tinha a certeza de que podia ser útil para o exército e eles acharam o mesmo mas de maneira diferente, não fiquei nos computadores porque fui para o combate, enviaram-me para a linha da frente, para Popasna, na região de Luhansk, aconteceu a 11 de março e fiquei até 6 de abril.

Alto, forte, gracioso, um homem que podia ser modelo de revista. Antes da guerra, tudo em Olexander Chayka era dança

Naquele 6 de abril parecia estar tudo bem porque tínhamos informações de que os russos não iriam atacar aquela zona onde estávamos mas a 6 de abril deixou de ficar tudo bem porque as informações que tínhamos foram informações que não se concretizaram, estávamos nós de um lado, eu e um camarada numa trincheira, e os russos do outro, um tanque deles, dispararam e atingiram a nossa trincheira sem nos acertarem diretamente mas não precisam de nos acertar diretamente para nos fazerem mal, o impacto dos disparos na trincheira projetou-me e a seguir fiquei coberto de terra, estive 40 minutos parcialmente enterrado e absolutamente imóvel, não me conseguia mexer e só depois entendi o que tinha acontecido ao meu corpo, eu já vos tinha dito que não precisam de nos acertar diretamente para nos fazerem mal, alguns estilhaços atingiram o meu camarada num joelho mas ele ainda se conseguia mexer, com muita dificuldade mas ainda conseguia, ele não me queria deixar mas eu disse-lhe para ir, ele tinha de ir, precisávamos de ajuda, eu precisava que me tirassem dali, o tanque continuou a disparar mas depois parou, o meu camarada tinha mesmo de ir, vai, vai, VAI, ele foi, havia gente nossa a cerca de um quilómetro dali, ele chegou até eles e depois eles até mim mas o meu camarada não veio, "desmaiou de dor", vieram seis dos nossos em meu socorro mas só um conseguiu entrar na trincheira para tirar a terra de cima de mim, a trincheira era muito pequena, ele conseguiu tirar-me dali e então ele e os outros cinco viram todos o que eu vi também - a minha perna direita tinha sido gravemente atingida por estilhaços, pensei que ia morrer ali, game over, acabei de dizer isto mesmo aos dois jornalistas portugueses, game over, iria morrer sem dor porque entretanto deixara de a sentir, já não sentia exatamente nada, game over, já só pensava que não ia ter filhos, queria tanto ter tantos, game over, já não podia abrir a minha escola de dança, queria tanto ter tantos alunos, game over, tinha a perna toda partida e a zona lombar ficou muito afetada também, e então voltei a sentir dor, ia e vinha, doía muito e doía nada, 30 minutos depois estava no centro médico mas era um centro médico de primeiros socorros, desmaiei, colocaram-me uma tala na perna e levaram-me para outro centro médico mas sem grandes condições, entretanto amigos meus dos serviços secretos souberam o que tinha acontecido e levaram-me para um hospital mas eu, que já tinha despertado, eu sentia-me a morrer, na verdade queria mesmo morrer, doía tanto, mas tanto tanto tanto, e lembro-me vagamento de alguém me dar a mão, um dos meus amigos dos serviços secretos, e de outro ter posto a minha cabeça entre as pernas dele e de me ter colocado qualquer coisa na boca para eu não me ferrar, lembro-me disso e de uma calma a seguir, uma calma, sabem?, uma calma e adormeci, paz, ou me tiravam a perna ou ela infetava o resto do corpo e morreria disso, decidiram que eu viveria e isso foi decidir pela amputação que eu não escolhi.

descrição
Olexander posa para uma selfie no mês em que esteve na frente de guerra. Foto: cortesia Olexander Chayka. 

Como é que vou voltar a dançar?, como?, lembro-me de pensar só nisso quando percebi o que me tinha acontecido, quando não vi a minha perna, como é que eu vou ensinar os meus miúdos?, como?, como é que lhes vou mostrar as acrobacias e as habilidades e as coreografias?, como?, foi nisto que pensei, vejam lá no que se pensa quando nos acontece isto, mas eu não tive medo, sabem?, não tive, fiz tratamentos e fiz reabilitação, fiz o que devia e a minha mulher encontrou entretanto uma organização, uma organização que tem este nome tão importante, Fundação para o Futuro da Ucrânia, esta fundação ficou muito sensibilizada com o que tinha acontecido a este professor de dança que tinha perdido uma perna a combater pelo nosso país e por isso a fundação decidiu encontrar financiamento para eu ir até aos Estados Unidos ser operado e ter uma prótese adequada, eu perdi a perna e fiquei com a zona lombar muito afetada, é uma situação delicada, na Ucrânia não há próteses destas, a minha mulher e a fundação organizaram tudo, fui de ambulância até à Polónia e dali apanhei um avião para Washington, gostei de ter estado lá, os americanos respeitam muito os seus veteranos e fui abordado por tantos estranhos, estranhos que me agradeciam pelo meu serviço, os americanos combatem guerras há muito tempo, "obrigado pelo seu serviço", ouvi isto repetidamente, é muito comovente, e eu agora consigo andar, sabem?, eu ando, eu caminho, game not over, regressei da América a 11 de novembro e um dia hei de voltar lá mas não para viver, viver é aqui em Kyiv, é onde sempre quis viver e é aqui que o meu filho vai viver comigo e com a mãe, se fosse menina ia chamar-se Olivia mas como já sabemos que é rapaz vai ser Mark, nasce em abril, em abril, já viram?, num abril perdi uma parte de mim e num abril vou ter a melhor parte de mim, eu ando, eu caminho, eu vou ser pai, game definitely not over.

No momento da fotografia e sem que ninguém o pedisse, Olexander arregaçou as calças para mostrar a prótese, colocou-a de lado e olhou fixamente para a câmara. Continua um modelo. Foto: Teresa Abecasis/CNN
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