Uma jovem mulher foi sacrificada e congelada durante 500 anos. Os cientistas acabam de revelar o seu rosto

CNN , Ashley Strickland
19 nov 2023, 17:00
Oscar Nilsson dedicou 400 horas à reconstrução em 3D da "Donzela de Gelo", uma múmia de 500 anos de uma jovem mulher inca encontrada nos Andes peruanos há 28 anos. Dagmara Socha

Os rituais eram realizados para apaziguar divindades e lugares sagrados e proteger a comunidade de desastres como secas, erupções vulcânicas e terremotos, segundo os investigadores

Há 500 anos, uma adolescente que fazia parte da cultura Inca foi sacrificada e enterrada perto do cume de Ampato, um vulcão adormecido na Cordilheira dos Andes. Desde a descoberta dos seus restos mortais congelados, incrivelmente bem preservados, em 1995, passou a ser conhecida por muitos nomes - a "Donzela de Gelo", "Juanita" e a "Senhora de Ampato" - mas pouco se sabia sobre quem realmente era.

Agora, o artista sueco Oscar Nilsson e uma equipa de investigadores do Centro de Estudos Andinos da Universidade de Varsóvia, na Polónia, e da Universidade Católica de Santa Maria, do Peru, colaboraram para criar uma reconstrução em 3D do rosto de Juanita.

A reconstrução, revelada a 24 de outubro, faz parte de uma exposição no Museu dos Santuários Andinos no Peru chamada "Capacocha, seguindo as Divindades Incas". A exposição inclui as últimas pesquisas sobre Juanita e a sua vida, bem como os achados de outras múmias incas descobertas ao longo dos picos dos Andes peruanos.

"Durante muitos anos, as múmias foram tratadas como objetos de museu", afirmou Dagmara Socha, bioarqueóloga do Centro de Estudos Andinos da Universidade de Varsóvia e curadora da exposição. "Através da investigação científica e da reconstrução facial, pretendemos restaurar a sua identidade. Uma reconstrução bem feita permite-nos mostrar as pessoas que estiveram por detrás da história que queremos contar."

Encontrar Juanita

O Império Inca, que durou entre 1200 e 1533, estendia-se por 4.023 quilómetros através do que é hoje o Peru e o Chile. Um dos rituais mais importantes para os Incas era o capacocha, disse Socha, que envolvia sacrifícios humanos com ofertas de bens de prestígio, como cerâmica, metais preciosos, tecidos e conchas.

Os rituais eram realizados para apaziguar divindades e lugares sagrados e proteger a comunidade de desastres como secas, erupções vulcânicas e terremotos, segundo os investigadores. Os picos dos Andes eram considerados lugares sagrados, e as crianças e mulheres jovens, consideradas belas e puras, eram escolhidas para os rituais de sacrifício. Pensava-se que os seus sacrifícios trariam honra aos seus pais e uma vida após a morte de felicidade.

Uma vez sacrificadas, as crianças e as jovens eram consideradas "mediadoras" entre os humanos e as divindades. Acreditava-se que as crianças se reuniam com os seus antepassados, que se pensava estarem a observar dos altos picos dos Andes, explicaram os investigadores.

Johan Reinhard e o assistente Miguel Zarate encontraram Juanita quando subiram o Ampato em setembro de 1995. Eles chegaram ao cume, 6.312 metros acima do nível do mar, apenas para descobrir que parte do seu cume havia desmoronado, expondo um local de enterro inca e o seu conteúdo cerca de 70 metros abaixo.

Reinhard e Zarate avistaram um embrulho de pano e, ao levantá-lo, deram por si a olhar para o rosto da "Donzela de Gelo". Cuidadosamente, eles trouxeram "Juanita" para baixo, onde ela é mantida até hoje numa câmara ajustada a menos 20 graus Celsius, no Museu dos Santuários Andinos da Universidade Católica de Santa María, onde os visitantes do museu podem vê-la em exposição.

Estudos revelaram que "Juanita" era uma rapariga saudável entre os 13 e os 15 anos quando morreu devido a uma pancada na cabeça.

Réplicas dos artefactos enterrados com a "Donzela de Gelo" estão em exposição e os visitantes podem tocar-lhes para sentir o seu peso e textura. Dagmara Socha

Foi enterrada com roupas cerimoniais, objetos de cerâmica, figuras femininas de ouro e prata, uma concha de Spondylus, alimentos, sacos de tecido e cerâmica. Os objetos de cerâmica estavam decorados com figuras geométricas, que ainda estão a ser estudadas e podem ter feito parte de um sistema de comunicação inca.

Face a face

Em 2018, Socha e uma equipa de arqueólogos e cientistas iniciaram um projeto de cinco anos para investigar "Juanita", bem como outros restos e objetos encontrados nos vulcões Ampato, Misti e Pichu Pichu, cobertos de neve.

Durante o seu trabalho, a equipa descobriu que algumas das crianças e mulheres mascaram folhas de coca e beberam ayahuasca (chá com potencial alucinógenio) nas semanas anteriores às suas mortes. Os resultados sugerem que as plantas alucinogénias e os estimulantes psicotrópicos podem ter sido utilizados para reduzir a ansiedade antes das suas mortes.

A equipa realizou tomografias de "Juanita" em março de 2022 e utilizou os resultados para criar um modelo 3D do seu crânio que Nilsson pôde utilizar para orientar a sua reconstrução.

Foram utilizadas tomografias do corpo e do crânio de "Juanita", combinadas com pesquisas sobre a sua idade, tez e outras características, para criar imagens digitais. Nilsson utilizou marcadores de profundidade de tecido com base nas medidas do crânio para imaginar as proporções do rosto, que incluíam maçãs do rosto altas.

Marcadores de profundidade de tecido e tomografias computorizadas ajudaram Oscar Nilsson a reconstruir o rosto da "Donzela do Gelo". Oscar Nilsson

O seu processo de dar vida ao rosto de "Juanita" demorou meio ano, tendo passado 400 horas a trabalhar no modelo.

Conhecido pelo seu trabalho na recriação de rostos do passado, Nilsson utilizou uma técnica de reconstrução forense que se baseou numa variedade de análises científicas para fazer com que "Juanita" parecesse o mais realista possível.

"É um trabalho fantástico que tenho, mas também sinto uma grande responsabilidade em tornar a reconstrução tão exacta quanto possível", assumiu Nilsson. "Mas é o melhor trabalho que posso imaginar. Espero que possam conhecer uma pessoa do passado e criar uma ligação emocional à história e à sua narrativa, que é tão única e notável."

As reproduções do toucado e do xaile que ela usava foram tingidas naturalmente e feitas de lã de alpaca pelo Centro Textiles Tradicionales em Chinchero e Cusco, no Peru.

Os visitantes da exposição podem também conhecer os resultados da investigação, ver artefactos dos enterros e segurar réplicas dos mesmos. Podem até seguir os passos de "Juanita" desde Cusco, a capital do Império Inca, passando por ranchos, ou tambos, onde a caravana descansava antes do sacrifício, e até aos picos.

"Usando óculos de realidade virtual, os visitantes podem fazer uma peregrinação virtual nas pegadas do capacocha, seguindo os restos das estradas incas até aos tambos - as últimas paragens - nas encostas de Chachani, Misti e Pichu Pichu", indicou Socha.

Para os investigadores que passaram anos a estudar "Juanita", o árduo processo de trazê-la de volta à vida valeu a pena.

"O rosto dá-nos a impressão hiper-realista de estarmos a olhar para uma pessoa viva", observou Socha.

"Foi para mim um momento muito emotivo, depois de trabalhar tantos anos com estas múmias, poder finalmente olhar para o seu rosto."

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