Folhetim de voto: Rio, “o incrível homem camaleão”

11 jan 2022, 06:59

Na coluna diária de análise e opinião à campanha, o jornalista de política Filipe Santos Costa considera que um filme de Woody Allen ajuda a compreender Rui Rio, que é “moderado” e “de centro”, mas concorda com Ventura, com Chicão e com Cotrim conforme debate com cada um deles. Faltam 20 dias para as eleições

Leonard Zelig. Um dos grandes filmes de Woody Allen, de 1983, é um falso documentário sobre uma personagem dos anos 20 que nunca existiu: Zelig, “o incrível homem camaleão”. O protagonista, Leonard Zelig, interpretado por Allen, tem a capacidade, quando interage com outra pessoa, de mimetizar o interlocutor, tanto nas suas caraterísticas físicas como no pensamento e comportamento. Quando está com gordos torna-se gordo, quando está com franceses fala francês, quando está com negros fica negro, face a nazis vira nazi (apesar de ser judeu). A ciência quer estudá-lo, o showbiz tenta aproveitá-lo, a imprensa sensacionalista explora-o até à náusea. As desventuras deste homenzinho que muda conforme o interlocutor resultam num filme hilariante, que é uma das criações mais memoráveis de Woody Allen. Talvez porque, de vez em quando, encontramos alguém assim.

 

Rui Zelig. Concluídos os debates com os três líderes dos partidos à sua direita, Rui Rio apresenta-se como o Zelig da política portuguesa. Perante os presidentes do Chega, do CDS e da Iniciativa Liberal, Rio foi assumindo partes do discurso de cada um deles. 

Quando debate com Ventura, Rio admite a prisão perpétua “mitigada” e promete ser implacável com os “abusos” do rendimento mínimo; quando conversa com Francisco Rodrigues dos Santos, passa a ser favorável à reprivatização da TAP, que nunca tinha defendido antes, deixa brilhar o interlocutor e até sugere o voto no CDS “se não quiserem votar no PSD”; quando tem pela frente João Cotrim de Figueiredo solta a sua veia liberal e privatizadora, mas “mitigada” (como a prisão perpétua).

O fenómeno de “zeliguização” de Rui Rio ficou à vista outra vez ontem, no debate com Cotrim Figueiredo, o último líder de direita que enfrentou. Foi um bom debate, sobre política fiscal, sobre privatizações ou sobre o papel do Estado em áreas como a Saúde e a Educação. Mas foi, sobretudo, um debate sobre as propostas da Iniciativa Liberal, em boa medida graças à habilidade de Cotrim para colocar as suas propostas no centro da discussão.

E, ao escolher o terreno do debate, Cotrim condicionou também o espaço de manobra de Rio. Este não pareceu muito incomodado. Continua a achar que lhe basta a sua “autenticidade”. Pelos vistos, faz parte da sua “autenticidade” conhecer mal os programas dos rivais - continua a descobrir em direto e ao vivo quais são, afinal, as propostas dos seus interlocutores. E, com isso, vai descobrindo que concorda com muitas delas.

Não é só a impreparação de Rio que surpreende. É também esta sua capacidade de se pôr de acordo com muito do que dizem os oponentes - ontem, ao mesmo passo que tentava argumentar com a inconstitucionalidade da taxa única de IRS que a IL propõe, acabou por concordar que esta não será inconstitucional; perante a defesa da privatização da TAP, da RTP e da Caixa Geral de Depósitos, Rio concordou com a primeira (não se sabia disso até ao debate com o CDS), e admitiu as outras duas… se a RTP e a CGD derem prejuízo. 

Na análise ao debate, aqui na CNN Portugal, o Rui Calafate considerou Rio - creio que em tom elogioso - “um pragmático sem dogmas”. Nada contra. Ser pragmático é bom; não ser dogmático também; ter a consistência ideológica e programática da gelatina, talvez não seja assim tão recomendável num candidato a PM.

 

Centro? No mesmo painel de comentário, a Anabela Neves notou esta contradição de Rio: “Afirmou várias vezes a sua costela social-democrata, mas ao mesmo tempo com uma flexibilidade muito grande, e isso significa que pode vestir outra pele qualquer”. Ou seja, o mesmo Rio que desde o início diz que “quer ir ao centro buscar votos” não faz frente a Ventura, diz-se pronto para casar com o CDS mais conservador de sempre, e mostra-se muito próximo do partido mais liberal que alguma vez existiu em Portugal.

“Não foi [um debate] nada ao centro”, concluiu a Anabela Neves. A Mafalda Anjos, no mesmo painel, reforçou esta ideia. “Se a estratégia de Rui Rio era ir ao centro buscar votos, houve muito bom eleitorado do centro que não gostou de ouvir alguns destes consensos e destes entendimentos.”

Há a hipótese de que Rio tenha conseguido vincar a sua moderação no contraste com os interlocutores à sua direita. Começou por insistir bastante na ideia de “moderação”, de não “ir tão longe”, de “fazer devagar”. Mas acabou por se deixar levar. Creio que, para que o contraste resultasse, teria de ser mais vincado, e Rio teria de apresentar melhores razões para o voto útil do que a mera constatação de que o PSD é o único partido deste lado do espectro com dimensão para ambicionar vencer eleições. 

 

Segurança. Volto ao filme de Woody Allen. Quando Zelig é questionado, sob hipnose, sobre a razão por que assume as caraterísticas dos interlocutores, este responde, que isso é “seguro”. É mesmo a única coisa que lhe dá uma sensação de segurança. Calha bem, porque creio que é essa a estratégia de Rui Rio: jogar pelo seguro, sabendo que a sua maior segurança pode ser garantida pelos partidos à sua direita.

Já aqui o escrevi, Rio olha para os partidos que crescem à sua direita - IL e Chega - e vê nesse crescimento mais possibilidades de fazer uma maioria não-socialista no Parlamento e ambicionar ser primeiro-ministro. Rio preferia ter de lidar com mais CDS do que com mais Chega (não disfarça a preocupação por ver o CDS a encolher), mas dança conforme a música. Como escrevi na quinta-feira passada, “Rui Rio já meteu na cabeça que só será primeiro-ministro com o apoio do Chega” e “tudo vai fazendo para que o Chega pareça aceitável aos olhos do eleitorado moderado e de centro”. Daí que não tenha afrontado Ventura e o tente “normalizar”. Daí que se torne um Zelig político ao discutir com Cotrim Figueiredo e com “Chicão”. 

Rio não só sabe que precisará de todos eles, como terá consciência - basta ver as indicações das sondagens - que não está a ser o PSD o motor do crescimento da direita. O líder social-democrata parece confortável com isso. Repito o que escrevi ontem: “É como se Rio contasse mais com os outros partidos do que com o seu para uma eventual maioria de direita, confiante de que o PSD será sempre a força liderante desse espaço.”

 

Pragmatismo. Sim, há nesta opção enormes doses de pragmatismo. Não falo de pragmatismo do ponto de vista programático ou ideológico, mas de pragmatismo tático. E realismo - Rio nem ousa sonhar com uma maioria absoluta do PSD. Desse ponto de vista, talvez tenha os pés mais assentes na terra do que António Costa, que aposta numa maioria absoluta que parece impossível.

Quanto mais se fragmentar a representação partidária no Parlamento, menores as hipóteses de um só partido governar sozinho, como ontem constatava o Ricardo Costa na SIC-N. E concordo com o Ricardo, quando diz que há boas possibilidades de todos os partidos que têm estado nos debates conseguirem eleger pelo menos um deputado. A ser assim, num Parlamento com (pelo menos) onze partidos representados - estou a admitir a eleição de Rui Tavares -, e alguns deles com mais peso do que têm atualmente (refiro-me ao Chega e à IL), a necessidade de negociar maiorias será incontornável.

Desse ponto de vista, Rio tem muito mais caminho feito do que António Costa. O líder do PSD tem feito pontes à sua direita; o secretário-geral do PS tem-nas queimado em relação ao PCP e ao BE.

 

Crescer como? Mas Rio tem um problema: quanto mais deixa brilhar os seus eventuais futuros parceiros, mais compromete as hipóteses de chegar ao poder, pois para isso precisa de ganhar ao PS. Segundo as sondagens, os dois partidos ainda estão longe. Para ultrapassar o PS, o PSD tem de ir buscar mais votos, e não o está a conseguir à direita - pois Rio não dramatiza o voto útil -, e quanto mais namorar a direita, mais compromete o crescimento ao centro.

Dito de outra forma: duvido que os eleitores indecisos do centro apostem num candidato que se diz moderado, mas não faz frente à direita radical, puxa pela direita ultra-conservadora e contemporiza com a direita ultra-liberal.

Quanto a Costa, por muito que apele ao voto útil, ainda não disse que não fará novos acordos à esquerda - apenas que estes se tornaram mais difíceis depois de ter perdido a confiança nesses parceiros após o chumbo do Orçamento. Nem disse, que me lembre, que apenas governará com maioria absoluta. A única garantia dada pelo líder do PS é que sairá de cena se não ganhar as eleições. 

Neste ponto, a maioria absoluta é o argumento final numa bipolarização que Costa se sente confiante para forçar, mas Rio não. Depois, logo se vê. É verdade que Rio se está a mostrar pragmático. Mas Costa também não é alguém que careça de lições de pragmatismo. 

 

Audiências. O debate mais visto até agora foi o de domingo passado entre o secretário-geral do PS e o presidente do CDS, com audiência média de 1,45 milhões de espetadores e 26,6% de share. Até ao momento, este é o ranking de audiências dos frente-a-frentes:

  1. António Costa x Francisco Rodrigues dos Santos (audiência média: 1,45 milhões)
  2. Rui Rio x Catarina Martins (1,41 milhões)
  3. Rui Rio x André Ventura (1,3 milhões)

 

Suspense. Ainda não se sabe se os eleitores que estejam em isolamento no dia 30, por causa da covid, poderão votar. Nem se, nem como. É, conforme escreve o Manuel Carvalho, no editorial do Público, “a barafunda do costume das eleições em pandemia”. E, neste caso, ninguém sai de cara limpa - nem os deputados, que não mudaram as leis enquanto podiam, nem o Governo ou o Presidente da República, que foram incapazes de identificar o problema em tempo útil. Faltam 20 dias para as eleições.

 

Ordem do dia. Esta terça-feira há debate decisivo à esquerda, entre António Costa e Catarina Martins (RTP, 21h). O PAN apresenta o seu programa eleitoral, na Maia, às 12h30. Jerónimo de Sousa também anda pelo Norte: estará com trabalhadores em Matosinhos e com “intelectuais e gente da cultura” no Porto. André Ventura insiste nos jantares-comício, hoje em Santarém. 

 

Frase do dia

“Francisco Rodrigues dos Santos está nestes debates como se estivesse na Guerra de Espanha de 36/39, em que se atiravam padres pelas veredas. É um bocadinho absurdo.”

Ricardo Costa, comentário na SIC-N

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