“Uma vítima seguiu o padre abusador em vários países e queria ir ter com ele para o confrontar. Mas desaconselhámos. Podia ser traumático”

22 mar 2023, 07:01
Daniel Sampaio. Foto: DR

Daniel Sampaio, da comissão que investigou os abusos sexuais na Igreja, relata o que estão a sentir as vítimas, explica o que mais o marcou ao longo de todo o processo e adianta que o Ministério da Saúde se prepara para lançar uma rede de apoio psicológico

O relatório sobre os abusos da Igreja foi conhecido há mais de um mês, mas nada em concreto foi feito pela Igreja até agora em relação às vítimas, e já disse que entre estas vítimas há pessoas que estão num sofrimento como nunca viu. Que risco correm estas vítimas do ponto de vista da saúde mental?

São situações de grande sofrimento, sobretudo de depressão e de ansiedade. Há muitas manifestações de ansiedade, fobias, ataques de pânico, insónia. Há manifestações depressivas, de tristeza profunda e de risco de suicídio, ideias de suicídio.

No vosso relatório são referidas sete situações de suicídio relacionadas com os abusos sexuais. Portanto, quando falamos de risco para estas vítimas que fizeram estas denúncias, estamos a falar também a este nível. Há risco destas vítimas cometerem suicídio?

Sim. Nós temos de dizer que o suicídio é sempre multideterminado. Nós não podemos dizer que a pessoa se suicidou por um acontecimento X ou Y. O que se sabe é que as pessoas que foram vítimas de abuso sexual têm muito mais probabilidade de tentativa de suicídio e de suicídio. Há um recente estudo, de 2022, que estudou as vítimas de abuso sexual durante 50 anos e que verificou o grande risco psiquiátrico que estas vítimas têm e onde assinalou mais uma vez o risco de suicídio. 

Isto justifica outra resposta da Igreja mais imediata do que aquela que está a acontecer? 

Sim. O que me impressiona é que já passou mais de um mês de termos feito a entrega do nosso relatório em que propomos 16 medidas concretas, entre muitas outras sugestões. Há duas medidas fundamentais, que são a criação de uma comissão para continuar o nosso trabalho, com a maioria de membros fora da Igreja, e uma estrutura de apoio psicológico e psiquiátrico às vítimas no Serviço Nacional de Saúde.

É preciso que as pessoas percebam que, neste momento, as vítimas não têm a quem recorrer, porque a Comissão Independente terminou os seus trabalhos, nós tínhamos um telefone de ajuda, onde as pessoas podiam fazer o seu testemunho, e tínhamos um e-mail, nós conservámos o e-mail para que as vítimas possam continuar a testemunhar e exprimir aquilo que sentem, mas a linha telefónica desapareceu e toda esta discussão, que é uma discussão importante sobre o relatório, evidentemente tem algum risco, que é a vítima sentir que não está a ter apoio para o seu problema.  Ou seja, o problema foi levantado, foi diagnosticado, era preciso imediatamente garantir o apoio para essas vítimas, isso não foi feito. Há, no entanto, uma disponibilidade do Ministério da Saúde para trabalhar nesse sentido.

Qual o projeto do Ministério da Saúde para apoiar as vítimas?

O Ministério da Saúde já começou a trabalhar neste assunto, portanto já tive a ocasião de falar com o responsável do Programa Nacional de Saúde Mental, e estamos a estruturar uma resposta a nível do Serviço Nacional de Saúde, que não é fácil. Primeiro porque as consultas têm de ser anonimizadas. Temos de criar um mecanismo em que a vítima possa, por exemplo, telefonar ou utilizar um e-mail e a partir daí, de uma forma discreta, ser marcada uma consulta.

Acresce que há muita dificuldade nas consultas de psiquiatria no Serviço Nacional de Saúde, eu estou consciente disso, mas vamos conseguir articular. Agora, eu acho que essa responsabilidade devia ser da Igreja, a Igreja é que devia ter tomado a iniciativa em cooperação com o Ministério da Saúde, e estranho até que essa cooperação não tenha sido já proposta pela Igreja, porque é preciso perceber que as comissões diocesanas têm um papel muito importante de escuta, têm um papel de prevenção que pode ser importante junto das pessoas que a elas se dirigem, mas não podem ser estruturas de tratamento. Isso está mais demonstrado quando nós criamos estruturas de tratamento ligadas a uma administração, a uma instituição que está com problemas, as vítimas não querem ir a essa instituição. Há exemplos na história muito importantes sobre isso.

Tem de ser alguém que esteja fora da equação.

Exatamente, tem de ser alguém que esteja, por exemplo, no Serviço Nacional de Saúde. Ou uma entidade que seja neutra com experiência no assunto, como por exemplo a Associação de Apoio à Vítima, que possa então dar uma resposta estruturada e anónima. Isto é, garantindo o anonimato das vítimas, porque é muito importante percebermos que as vítimas só testemunham se não for o nome revelado. Temos de ter muito cuidado com toda a revelação dos nomes das vítimas.

"Se sentirem sintomas muito intensos, como ansiedade ou ideias de suicídio, devem dirigir-se imediatamente a uma urgência de psiquiatria"

Quando diz que o Ministério da Saúde já está a trabalhar para articular este apoio, consegue dar um prazo para que isso esteja a funcionar? 

Não posso dizer um prazo, mas a minha ideia é que isso possa ser rapidamente feito. Há pessoas já a trabalhar nisso e, portanto, vamos ter resposta. Agora, friso mais uma vez, era importante que a Igreja cooperasse com o Ministério da Saúde nesta questão. 

E para as vítimas, o que é que lhes pode aconselhar a fazer para lidarem com tudo isto?

Basicamente, se sentirem sintomas muito intensos, particularmente de depressão, ansiedade ou ideias de suicídio, devem dirigir-se imediatamente a uma urgência de psiquiatria. Nós temos urgências de psiquiatria em todos os distritos, em Portugal Continental e nas regiões autónomas. Se esses sintomas forem muito intensos, devem dirigir-se a uma urgência, porque encontrarão lá um psiquiatra que pode, do ponto de vista da emergência, ter uma resposta adequada. Depois devem procurar tratamento no Serviço Nacional de Saúde, que está a ser estruturado, nas vítimas que já têm psicólogo ou psiquiatra, devem contatar o seu técnico e dizer o que é que estão a sentir neste momento. E podem ainda continuar a fazer um depoimento para o nosso e-mail, geral@darvozaosilencio.org, que está disponível para nós, pelo menos, vermos o testemunho e de alguma forma podemos ajudar e dar algum apoio, embora a comissão já não exista propriamente.

"Nestes casos usam as crenças divinas para proteger o abuso sexual"

Ao longo da sua carreira lidou com várias vítimas de abuso. O que é que estas vítimas de abuso na Igreja Católica têm de diferente em relação a todas as outras? 

Eu, ao longo da minha carreira, lidei com várias vítimas de abuso sexual. Lidei particularmente com uma patologia que é a anorexia nervosa, que é sobretudo uma doença das raparigas, das meninas, onde há muitos abusos sexuais. O que me pareceu diferente neste problema são as crenças divinas que protegem o abuso sexual. É verdade que o abuso sexual é muito frequente nas famílias, nos clubes desportivos, em organizações de jovens: isso é tudo verdade. Mas agora estamos a tratar dos abusos da Igreja, e o abuso da Igreja tem uma característica específica muito importante que é a de estar sempre envolvido em crenças espirituais. 

Há frases ditas às vítimas como: 'Eu faço isto porque Deus diz para eu fazer isto', 'isto é uma manifestação de amor para contigo, porque Jesus Cristo prega o amor', 'o Padre é a voz de Deus e eu estou aqui porque Deus sabe que eu estou aqui e estou-te a amar', 'se não fizeres aquilo que eu digo vais parar ao inferno'. Este tipo de mensagens, que foram constantemente ditas às vítimas, envolvem o abuso sexual em características que para mim são particularmente alarmantes.

Está, entretanto, a ser criada uma associação de vítimas. O mediatismo da questão está a ajudar as vítimas?

Estas vítimas falaram a familiares, falaram a padres e falaram a bispos, mas a sua queixa nunca foi validada. Pela primeira vez, ao fim de décadas, tiveram um grupo de pessoas que as ouviu com atenção e que as validou e foi extremamente importante esse processo. Também o facto do assunto ter sido trazido para a luz do dia é uma boa medida e a comunicação social teve um papel muito importante nisso, porque tornou este assunto um assunto importante. Ninguém falava deste assunto. Este assunto estava ocultado no espaço público e agora está completamente desocultado. Isso vai ter uma consequência benéfica importantíssima. Em primeiro lugar, porque vai ser altamente dissuasor para o abusador. O abusador sabe que agora tem os olhos postos em si. Depois, se houver educação sexual, que há, mas devia haver mais, as crianças vão defender-se muito melhor desta situação. Agora, há um risco, que é a ausência de medidas, como eu já tive a ocasião de dizer.

Alguma vítima falou consigo no sentido de se fazer queixa ao Ministério Público?

Todas esperam que se faça queixa ao Ministério Público. O que aconteceu foi que poucas vítimas, salvo erro, apenas duas vítimas falaram na questão da indemnização. Mas essa questão vai surgir.

Mas as queixas que estão no Ministério Público foram enviadas pela comissão. Não foram as próprias vítimas que o fizeram, pois não?

As vítimas o que dizem é que esperam que seja feita Justiça e que o abusador seja castigado. Este é o pedido das vítimas. E algumas vítimas dizem mais, dizem que gostavam de estar perante o padre abusador, para que o abusador, olhos nos olhos, peça perdão.

Há muitas vítimas a referir esse desejo?

Algumas vítimas referiram isso. O que é uma situação traumática e não aconselhamos. Houve, inclusivamente, uma vítima que seguiu o padre abusador em vários países onde ele esteve. E que sabe que o abusador está, neste momento, na Alemanha e queria ir à Alemanha confrontá-lo. Nós achámos que isso não era bom do ponto de vista psicológico para a vítima e desaconselhámos. Podia ser traumático. 

Esse abusador vive, neste momento, fora de Portugal, por opção própria?

Não, não, foi transferido. Nós temos transferência de padres de vários países e de continentes. Nós temos transferência de padres, por exemplo, dos Açores para os Estados Unidos. 

Essa tem sido uma das formas de encobrir a situação de abuso na Igreja? 

Claro, foi uma das formas usadas pela Igreja para ocultar a situação. A Igreja detetava o problema a partir de uma queixa e o que fazia, de uma forma que nós podemos dizer sistemática, era transferir o padre. Transferências do norte para o sul, do continente para as regiões autónomas e transferência para outros países e outros continentes.

Esse sacerdote que foi para a Alemanha, foi um dos casos encobertos?

Sei que foi ocultado e o padre foi transferido.

Esteve com 20 vítimas presencialmente?

Aproximadamente, sim.

Qual foi o testemunho que mais o marcou?

Houve uma situação que foi uma pessoa que está bastante bem do ponto de vista da sua vida, tem a sua vida organizada, não teve dificuldades na organização da sua vida psíquica, mas chorou profundamente quando revelou o seu abuso. Isso tocou-me muito, porque parecia que ia fazer um testemunho por uma questão cívica - foi assim que ele disse - por achar que era seu dever testemunhar e denunciar o abusador. Foi assim que começámos a conversa, ele tinha muitos elementos sobre o abusador, que já faleceu, mas quando reviveu a situação, reviveu de uma forma que me impressionou muito. 

E depois, outro caso, de uma pessoa que a partir do abuso sexual na infância se desorganizou na adolescência e a partir daí entrou num período de toxicodependência, depressão, de grande doença psiquiátrica, que seguramente está relacionado com o abuso sexual. 

Acha que a Igreja vai mudar depois deste relatório?

Eu acho que depois deste relatório nada ficará na mesma, não ficará na mesma na sociedade portuguesa. O relatório teve um profundo impacto em vários setores da nossa sociedade e, portanto, acho que esta questão vai continuar a ser discutida e vão ser tomadas medidas preventivas pelo Governo, pelo Ministério da Educação, pelo Ministério da Segurança Social. Tenho muita esperança disso. Em relação à Igreja, é uma instituição que tem forças muito contraditórias, eu espero que os movimentos dos católicos, que estão neste momento a organizar-se, possam ajudar na renovação que é tão necessária. Eu não sou uma pessoa religiosa, mas tenho um profundo respeito pela Igreja e sei como psiquiatra e professor de psiquiatria durante muitos anos, o papel, por exemplo, importantíssimo que a Igreja tem. Nós precisamos de uma Igreja que seja uma força social forte, mas ao mesmo tempo seja uma força renovada.

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