"Os bispos que ocultaram deviam fazer um exame de consciência e resignar imediatamente"

22 mar 2023, 07:00
Daniel Sampaio. Foto: DR

Em entrevista à CNN Portugal/TVI, Daniel Sampaio, que integrou a comissão que recolheu os testemunhos de abusos sexuais na Igreja, fala da divisão que há entre os bispos e garante que há um braço de ferro entre quem quer a renovação e quem quer manter tudo na mesma

Já disse que os bispos sabiam de muitos dos casos de abusos sexuais de menores que foram denunciados à Comissão. Porque é que a Comissão não fez uma lista de bispos encobridores, tal como fez de padres abusadores?

Nós cumprimos o que nos foi pedido. O que nos foi pedido pela Conferência Episcopal, e é muito importante acertar isso, foi uma lista de todos os padres abusadores revelados pelas vítimas entre 1950 e 2022.  Foi esse o pedido. E nós cumprimos esse pedido. E depois há todo o outro aspeto, que é o de nós não querermos perseguir ninguém. Portanto, neste momento de transformação da Igreja não denunciamos nenhum nome de vítima, nem nenhum padre abusador. E não iremos denunciar os bispos.  

Mas não seria importante?

O que é importante é que cada bispo que o ocultou faça um exame de consciência e reflita: 'Eu posso continuar nesta função ou não?' Porque nós temos relatos impressionantes de vítimas que foram ter com os bispos e que lhes disseram 'façam alguma coisa' e os bispos não tomaram nenhuma atitude.

A Comissão confrontou os bispos com isso? 

Dissemos várias vezes aos bispos que isso se passava, não confrontámos um a um; dissemos que esse problema existia. 

E o que é que vos foi dito pelos bispos quando os confrontaram com essa situação?

Que a situação estava a ser estudada. Portanto não nos foi dito nada de concreto.  Eu penso que a Igreja está numa transformação e, na minha análise, há neste momento forças que querem mudar a Igreja e forças que querem manter uma Igreja não renovada, como eu lhe tenho chamado.

Quando fala do exame de consciência que alguns bispos deveriam fazer perante esta situação e perante o facto de terem ocultado abusos, acha, portanto, que, de acordo com esse exame de consciência, eles deveriam tomar a decisão de sair?

Acho que os bispos que ocultaram deviam fazer um exame de consciência e resignar imediatamente. O problema agora está diagnosticado e sabe-se que houve bispos que ocultaram, esses deveriam resignar. Mas há mais: há a possibilidade de os arcebispos tomarem uma medida em relação aos bispos que foram ocultadores.  Ou seja, há leis internas da Igreja que permitem a atuação sobre essa questão. Dentro da hierarquia há a possibilidade de tomar medidas sobre os bispos ocultadores. Isso é muito importante porque a manterem-se pessoas nesta posição de ocultação, a Igreja que ocultou durante tanto tempo este fenómeno está a fazer uma segunda ocultação, e essa segunda ocultação é muitíssimo grave para as vítimas.

Não quer pôr aqui nomes, mas têm sido públicos alguns casos de suspeitas. Há testemunhas até a dar conta desses casos. A TVI já revelou casos que implicam D. José Ordelas e outros meios de comunicação também já adiantaram suspeitas de ocultação em relação ao Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente. Estas suspeitas por si só seriam suficientes para estes dois bispos resignarem?

Se fizessem o tal exame de consciência, eu acho que sim. Se acharem que isso corresponde à verdade.É claro que é preciso dizer que nós excluímos 10% dos testemunhos. E validámos 512. Quando se discute um problema desta dimensão e desta delicadeza, pode haver sempre acusações falsas. Agora, o que eu acho é que os bispos que sabem que ocultaram, deviam tomar a posição de resignarem e serem substituídos por novos bispos que não tivessem nada a ver com essa questão. 

"O senhor Cardeal-Patriarca de Lisboa não tem sido feliz nas suas declarações"

Quando refere que os bispos encobriram está a falar de todos ou de alguns?

De alguns bispos no ativo. 

Como classifica o papel, em todo este processo, do Cardeal-Patriarca, D. Manuel Clemente, que acaba por ser a cara da Igreja nacional?

Acho que o senhor Cardeal-Patriarca de Lisboa não tem sido feliz nas suas declarações. Tenho por ele muito respeito pessoal, cheguei a trabalhar com ele na Fundação Gulbenkian, mas acho que provavelmente não considerou a importância das suas palavras e devia, na minha opinião, ter refletido mais antes de dizer, por exemplo, que a indemnização é insultuosa para as vítimas. A indemnização é um direito das vítimas. E há exemplos na Igreja, em vários locais, em que as dioceses indemnizaram as vítimas e até tiveram dificuldades financeiras por causa disso. E, portanto, a indemnização nunca pode ser insultuosa para as vítimas. Tem de ser provado, mas é um direito que as vítimas têm e que a Igreja deve garantir.

É evidente que quando se fala no Cardeal-Patriarca, D. Manuel Clemente, ou no presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas, pelos cargos que ocupam, assumem uma importância acrescida. No entanto, foram mais lentos a reagir e a suspender padres na lista dos abusadores do que outros bispos.  

Há umas dioceses que suspenderam muito rapidamente, como Angra e Évora. Outras têm vindo a suspender muito lentamente. Isso tem a ver, muito provavelmente, com aquilo que o sr. Bispo pensa sobre toda esta questão.

Porque o que se passa, e essa é a parte que é importante acentuar, é que não há uma estratégia concertada em relação aos padres abusadores. Há grandes diferenças e isso inquieta as vítimas.

Por outro lado, não há uma estratégia concertada de apoio psiquiátrico e psicológico às vítimas. São emitidas frases muito contraditórias, como por exemplo “tudo pode ser feito através das comissões diocesanas, através de uma bolsa de psicólogos e psiquiatras nas comissões diocesanas”. Mas por outro lado é dito que é preciso criar uma comissão independente, para coordenar tudo. Quem ouve e quem está interessado neste assunto, percebe que não há um equilíbrio nas posições da Igreja. Isso do ponto de vista das vítimas é terrível.

"Há bispos que têm mais empatia e mais preocupação com as vítimas do que outros"

Essa falta de equilíbrio tem a ver com opiniões diferentes que os bispos têm em relação ao tema dos abusos sexuais? 

Claro que sim. Ao longo do nosso relatório tivemos a ocasião de entrevistar todos os bispos. E é muito evidente que há sensibilidades diferentes para este problema. Há bispos que acharam que foi uma ótima ideia criar a comissão independente e há bispos que acharam que não era importante. Há bispos que acharam que nós fizemos um excelente trabalho e há bispos que acharam que nós fizemos demasiado ruído e que podíamos ter feito de outra forma. Portanto, quando se passa à prática, essas diversas sensibilidades vêm ao de cima. Não tem sido possível criar um conjunto de medidas que seja de acordo com todos os bispos. Isso traduz-se por uma ausência de resposta. 

Mas pode deduzir-se que a suspensão dos padres abusadores de forma mais rápida ou menos rápida teve na base essa diferença de opinião dos bispos? Acha que os bispos de Évora e de Angra, por exemplo, são mais abertos a falar deste tema?

Não queria individualizar, mas o que eu posso dizer é que há bispos que têm mais empatia e mais preocupação com as vítimas do que outros. Quando o grupo de historiadores foi ver os arquivos da Igreja também encontrou diferentes resistências e diferentes sensibilidades. Houve bispos que abriram imediatamente os arquivos e houve bispos que dificultaram, exigindo uma autorização do Vaticano para abrirem os arquivos.

A ida aos arquivos secretos das várias dioceses foi útil para este trabalho?

Foi muitíssimo útil. Mas houve claramente pouco tempo. A equipa de investigadores fez um trabalho notável, com muitas horas de trabalho e muitas horas de reunião com os senhores bispos ou em quem os bispos delegaram para tratar do problema. Por isso, quando se diz que é apenas uma lista de nomes, isso não corresponde à verdade. Houve reuniões de trabalho sobre os nomes, entre a equipa de historiadores e os bispos ou os seus delegados. As reuniões foram muito importantes, mas os investigadores só tiveram autorização em junho. E o relatório tinha um prazo muito estrito para terminar, que era o nosso compromisso. 

A investigação nos arquivos precisava de mais tempo?

Seria preciso uma investigação histórica mais demorada. Aliás, acho que era de continuar. A Igreja devia solicitar ao mesmo grupo de investigação histórica que continuasse o seu trabalho junto aos arquivos. Seria mais uma medida contra a ocultação por parte da Igreja. 

Algumas dioceses têm-se escudado na justificação de que é preciso investigar mais, que é preciso saber mais e ter mais detalhes para tomar alguma decisão em relação a alguns padres. Compreende essa posição? 

Não, não compreendo e aqui entra a minha experiência de psiquiatra e de professor de psiquiatria. As pessoas que cometem um abuso sexual têm tendência a repeti-lo. Estas pessoas não são doentes mentais, no sentido clássico do termo, são pessoas que muitas vezes estão muito bem inseridas na comunidade e fazem relevantes serviços.

É o que se passa em relação a muitos dos sacerdotes da lista de abusadores?

Alguns destes padres alegadamente abusadores foram excelentes padres do ponto de vista comunitário, porque essa é uma forma de se insinuarem junto das vítimas, de lhes prestar relevantes serviços. Mas é evidente que se trata de uma perturbação da personalidade e, sobretudo, da sua sexualidade que não para só porque decide parar. Nós não defendemos a acusação de ninguém sem provas, defendemos o afastamento temporário. Aliás, tem havido muita confusão entre o que é suspensão e afastamento, parece que é uma pena e a ideia não é essa. A ideia é que possam ser afastados, porque se continuarem em funções continuam em contato com crianças e jovens. E pôr uma pessoa que é abusador sexual em contato com crianças e jovens é um perigo, porque essa pessoa tem estímulos, recebe um alerta sexual, perante a imagem de uma criança ou a presença de uma criança. Portanto, essas pessoas devem ser afastadas do contato com crianças e jovens e podem ter na Igreja outras funções administrativas importantes. Enquanto se faz uma investigação aprofundada para saber se essa pessoa pode ser acusada ou não. O afastamento não é uma acusação, é a defesa das vítimas mais uma vez que deve ser o centro da nossa intervenção. 

E faz sentido, por exemplo, situações como as que foram tomadas pela Diocese do Porto de não suspender todos os padres suspeitos, mas só alguns. Com que base é que se pode tomar esta decisão?

Acho a decisão estranha, porque a decisão devia ser a de que se há suspeita a pessoa deve ser afastada.

Algumas dioceses demoraram mais tempo a decidir e a afastar os padres e nem todos os que estão na lista estão suspensos. O que pensa sobre isso? 

O tempo corre depressa. Continuamos a ter pessoas suspeitas de abuso sexual na sua atividade. Isso a mim preocupa muito, em primeiro lugar, pelas vítimas e em segundo lugar, como técnico de psiquiatria, porque sei que essas pessoas só podem melhorar se tiverem uma intervenção intensiva do ponto de vista psicológico e psiquiátrico. Essas pessoas não decidem não ser abusadoras, isso não é assim. Portanto, há risco. A decisão correta é afastar e vamos ver se há base para as podermos suspender ou não. Essa é que devia ser a ideia correta, como aliás foi sugerido por um grupo de católicos que pôs um prazo para que esse afastamento fosse imediato.

Está a falar da necessidade de haver ajuda no sentido de disponibilizar um tratamento também para os padres abusadores? 

Sim, sim, para esses padres, se o quiserem, é claro. Para o tratamento em saúde mental é preciso haver uma disponibilidade pessoal. Não é a mesma coisa que fazer uma fratura de perna, não conseguir andar e estar cheios de dores - aí qualquer pessoa aceita ser tratada. No campo da saúde mental, a vontade própria é muito importante, sobretudo quando se trata de perturbações da personalidade, porque estas pessoas têm uma capacidade de trabalhar muitas vezes acima da média. Agora têm uma parte escondida da sua personalidade e têm de aceitar que a têm para poderem ser tratadas.

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