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Editor Executivo Digital

O caso CTT e como se assegura o cumprimento do serviço público

4 jan, 18:00

ANÁLISE || A compra de ações dos CTT pelo Estado, ordenada pelo então ministro das Finanças, João Leão, em agosto de 2021, tornou-se o assunto do momento. Mas mais interessante seria discutir até às eleições se o Estado pode e/ou deve ter participações em empresas privadas que prestem serviços públicos

Foi esta notícia do Jornal Económico que deu o tiro de partida para o assunto do momento. O Estado, através da Parpública, uma empresa 100% pública, tinha voltado a entrar no capital dos CTT, poucos anos depois de a empresa ter sido privatizada a 100%. E fê-lo escondendo a operação. Fê-lo de forma quase clandestina. Fê-lo às escondidas do mercado, dos cidadãos. Fê-lo sem escrutínio público. Fê-lo numa atitude muitas vezes vista neste Governo, muitas vezes vista no Partido Socialista. O PS é o Governo, o Governo é o Estado, o Estado não precisa de dar justificações a ninguém.

Não foi 100% assim, na verdade. O PS, ainda em 2020, disse abertamente que estava a negociar com o Partido Comunista Português (PCP) a reentrada do Estado no capital dos CTT e até apontou um valor: teria de ter mais que os 13,2% que o maior acionista da altura. O objetivo era claro: o PS estava a negociar o controlo público dos CTT.

Mas para atalhar caminho, não haja dúvidas: A forma de como toda esta operação foi concretizada já em 2021 é condenável. E tem o demérito de tornar quase impossível qualquer discussão séria sobre se o Estado deve, ou não, estar no capital de empresas que, tendo capital privado, têm obrigações de serviço público.

Mas vamos aos factos conhecidos.

1 - Os CTT foram privatizados durante o Governo liderado por Pedro Passos Coelho, com a presença e a imposição da ‘troika’ em Portugal. A primeira fase ocorreu em 2013, com a venda de 70% do capital; a segunda fase em 2014, com a venda do restante capital. O Estado encaixou mais de 900 milhões de euros pela empresa.

2 – Antes da privatização dos CTT, a empresa já tinha obtido do Banco de Portugal uma autorização para constituir o Banco Postal, hoje Banco CTT. O banco acabaria por ser formalmente constituído em agosto de 2015, já sem o Estado no capital dos CTT.

3 – Em novembro de 2020, como já referido anteriormente, PS e PCP, negociavam o controlo público dos CTT.

 

Os dados novos foram confirmados esta quarta-feira, quando a Parpública emitiu um comunicado onde divulgava um parecer da Unidade Técnica de Acompanhamento e Monitorização do Setor Público Empresarial (UTAM) sobre a entrada do Estado no capital dos CTT e o despacho do então ministro das Finanças sobre a referida operação. O que se ficou a saber foi o seguinte:

 

4 – A 18 de fevereiro de 2021, o secretário de estado do Tesouro, solicitou à UTAM “a emissão de Parecer acerca da operação de aquisição pela Parpública (…) de participação qualificada de até 13% nos CTT – Correios de Portugal, S.A.”

5 – A 22 de fevereiro de 2021, a UTAM concluía que estavam “suficientemente demonstrados o interesse e a viabilidade económica e financeira da operação”.

6 – A 17 de agosto de 2021, o então ministro das Finanças, João Leão, emite um despacho onde autoriza a operação de aquisição de ações dos CTT pela Parpública. Mas impôs regras e limites para que, por exemplo, a operação não fosse conhecida publicamente.

“Atendendo à necessidade de divulgação de informação ao mercado sempre que sejam atingidos patamares de participação qualificada a partir dos 2%, aprovo a aquisição faseada, em bolsa, de ações dos CTT pela Parpública até ao limiar máximo de 1,95% momento em que a estratégia de aquisição deverá ser reavaliada”, lê-se no referido despacho. João Leão define ainda os intervalos de preço a que podem ser compradas as ações e que as ações só poderão ser adquiridas “até ao fim do primeiro semestre de 2022”.

7 – Segundo o comunicado enviado pela Parpública às redações, entre o despacho de agosto de João Leão e outubro de 2021 foram adquiridas pela empresa ações dos CTT representativas de 0,24% do capital.

8 – Também em outubro de 2021, o Parlamento acabaria por chumbar a proposta de Orçamento do Estado para 2022. O PCP votou contra a proposta do Governo.

9 – A 4 de novembro de 2021, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, anuncia eleições para 30 de janeiro de 2022.

10 – A 30 de janeiro de 2022, o PS vence as eleições com maioria absoluta e toma posse a 30 de março de 2022.

11 – É já depois das eleições, mas antes da tomada de posse do novo Governo que, a 28 de fevereiro de 2022, o Governo anuncia que semanas antes, a 6 de janeiro de 2022, antes das eleições e em clima pré-eleitoral, foi assinado o novo contrato de concessão do serviço postal universal, celebrado entre o Estado e os CTT. À data da assinatura e da divulgação do acordo, Pedro Nuno Santos era ministro das Infraestruturas com a tutela dos CTT (foi ministro entre 18 de fevereiro de 2019 e 4 de janeiro de 2023).

 

A leitura da cronologia levanta, desde logo, uma questão: porque não adquiriu a Parpública mais ações dos CTT? Na verdade, com base no despacho de João Leão poderia tê-lo feito até setembro de 2022 e até um limite de 1,95%. Mas não há resposta conhecida. A única certeza é que a compra de ações terminou no mesmo mês em que a proposta de Orçamento para 2022 foi chumbado e escassos meses antes de ter sido alcançado um acordo de prestação de serviço com os CTT.

E a partir daqui só se pode especular. Terá o Governo avançado para esta operação para convencer o PCP a aprovar a proposta de Orçamento? A líder parlamentar do PCP afirmou esta quarta-feira que o partido foi informado da compra de ações dos CTT pela Parpública, mas não a consideraram relevante porque o que se impunha era o controlo público dos CTT. Uma resposta que dá a entender que o PCP só tinha sido informado das ações já compradas, os 0,24%, mas não tinha a informação de que o Governo pretendia atingir o controlo da empresa.

Outra hipótese era o Governo estar a avançar com esta operação para pressionar a administração dos CTT a assinar o novo contrato de concessão. Mas para tal ser plausível, a administração dos CTT teria de saber das intenções do Governo. E se assim fosse levanta-se outra questão: não teria de comunicar essa intenção ao mercado? Mais uma vez não há resposta, da mesma forma que não são conhecidas informações sobre se a Comissão de Mercado dos valores Mobiliários fez ou está a fazer algum tipo de averiguação aos factos agora conhecidos.

Na documentação divulgada pela Parpública há ainda outra informação relevante, onde se relatam as alegações do Governo para justificar a necessidade de o Estado voltar a ter o domínio dos CTT.

No documento da UTAM pode ler-se que a “operação tem origem em iniciativa Governamental transmitida à Parpública” e que a mesma é justificada nos seguintes termos: “a intervenção do Estado através de uma participação no capital social da empresa configura, assim, um meio para influenciar o mais adequado cumprimento dos índices de qualidade exigidos para o serviço postal, designadamente ao nível de regularidade e de prazos de entrega, assegurando também que estes serviços se encontram acessíveis em todos os Concelhos do país (incluindo as Regiões Autónomas)”.

Ou seja, a acreditar nesta justificação, o Governo defende que a qualidade do serviço apenas será conseguida se o Estado tiver uma participação no capital da empresa. Mas foi uma vontade que terá esmorecido porque nada mais aconteceu.

Atualmente a avaliação da qualidade do serviço é feita pelo regulador, a Autoridade Nacional de Comunicações (anacom) e há vários exemplos de que para o regulador a qualidade do serviço não é a melhor. E por ser essa avaliação, a Anacom tem aplicado coimas aos CTT. Mas também é a verdade que os CTT têm contestado estas avaliações e recorrido para tribunal. Por outro lado, até por via da intervenção do Governo, por exemplo com a política das cativações, não é certo que os reguladores tenham capacidade para cumprir na plenitude as suas funções, havendo estudos que mostram mesmo que estão muito limitados.

Como se assegura então que as empresas privadas com obrigações de serviço público cumprem os seus deveres? Essa era a discussão que deveríamos ter e uma campanha eleitoral o momento ideal para saber o que pensa partido sobre o assunto.

Dar mais condições aos reguladores é uma hipótese.

O Estado ter participações acionistas nestas empresas é outra hipótese que não deve ser diabolizada.

A título de exemplo, este artigo da Agência Reuters mostra-nos o que se passa em países como França, Alemanha, Espanha ou Itália. Em França, o Estado francês tem 28,6% da Air France-KLM, já a empresa de distribuição de energia foi nacionalizada em 2023. Na Alemanha, a empresa de telecomunicações, Deutsche Telekom, tem 30% do seu capital nas mãos do Estado. Em Espanha, o Governo prepara-se para comprar 10% da Telefónica. Em Itália, o Estado tem mais de 64% da empresa que presta o serviço postal.

O que pensam os dois maiores partidos portugueses sobre o assunto? Do PSD não se conhece opinião. Do PS pensávamos que sabíamos, mas hoje não se pode ter a certeza.

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