Estreia este sábado um novo espetáculo da Companhia Maior, projeto criado há 14 anos. Os intérpretes têm todos mais de 60 anos (alguns têm muito mais do que isso), mas dançam, representam, saltam e acocoram. E, sobretudo, recusam-se a ficar parados. Pela sua saúde e pela sua felicidade
"Eu julgava que não envelhecia, mas envelheci. E depois percebi que a Companhia Maior é o único sítio onde eu não me sinto velha. De facto, aqui não há esse olhar de novo e velho. E isso faz toda a diferença. Eu zango-me muito quando dizem que somos velhos, não somos, somos pessoas a fazer um percurso de vida. Não baixamos os braços."
Estas são as palavras de Cristina Gonçalves, de 78 anos. Cristina foi professora de Inglês e de Alemão durante 40 anos mas, apesar de gostar muito de dar aulas, a sua grande paixão sempre foi a dança. "Eu era mudada de terra para terra e, onde chegava, dançava. Dançava o que havia para dançar, fosse danças de salão ou folclore. Era-me absolutamente necessário dançar. E depois percebi que isso também era uma arma muito importante para lidar na escola e conseguir conquistar os miúdos." Quando, finalmente, se efetivou na Parede, criou um projeto de dança com os alunos das escolas, para incentivar os jovens a exprimirem-se de forma diferente. E continuou sempre a frequentar workshops para aprender como levar o teatro e a dança para outras disciplinas. Foi tudo isto que pôs no currículo quando, em 2010, se candidatou a mais um workshop no CCB - Centro Cultural de Belém, este orientado para pessoas com mais de 60 anos. Nessa altura, Cristina estava a terminar a sua carreira como professora. "Reformei-me, não queria, mas teve de ser." Mas nem teve tempo para pensar nisso. Poucos dias depois, entrou para a Companhia Maior.
Nascida há 14 anos, a Companhia Maior é um projeto de criação no âmbito das artes performativas, desenvolvido com artistas seniores. Os intérpretes têm formações e percursos diversos, alguns foram artistas profissionais, mas todos tiveram algum tipo de experiência ou ligação às artes. Aqui têm oportunidade de desenvolver uma atividade regular - com workhops ao longo do ano e, normalmente, uma criação anual, sempre com um encenador diferente, explorando a cada vez novas linguagens. Tiago Rodrigues, Clara Andermatt, Mónica Calle, Tim Etchells e Joana Craveiro são alguns dos criadores que já trabalharam com o grupo. Alguns dos elementos mantêm-se desde o início. Novos elementos vão aparecendo. Também há despedidas, sempre tristes. A cada espetáculo vê-se o tempo a passar pelos corpos em cima do palco.
"Há 14 anos não tinha cabelos brancos. E é verdade que já não consigo dançar como dançava. Mas há sempre outra maneira de fazer o que se gosta. Cada um vai até onde pode, mas todos aqui gostamos muito do que estamos a fazer." Cristina tem uma neta de 11 anos que veio mudar a sua vida e se transformou no seu maior hobby, tem um cão que lhe faz muita companhia, tem amigos e mantém com eles o projeto De Outra Maneira, que é uma forma de se manter atenta ao mundo e de não se conformar. Mas o mais importante nestes anos em que se recusa a envelhecer tem sido a Companhia Maior. "A minha médica diz que a adrenalina que ganho aqui me cura, funciona como um anti-inflamatório", conta. "Tem sido viciante. Tivemos anos maravilhosos, em que tudo corria bem. Tivemos anos em que tudo corria muito mal mas era tão bom o que estávamos a fazer. Isto dá muito trabalho, mas não quero desistir, só se fisicamente não puder. Tem sido mesmo a maior aventura da minha vida, e olhe que eu já tive algumas."
"Quanto menos fazemos, menos conseguimos fazer"
Desde o início, a premissa era que esta seria uma companhia profissional, onde os intérpretes assinam um contrato, recebem um pagamento, assumem responsabilidades. Tudo é feito com o maior profissionalismo. É claro que existem consultas médicas e é preciso faltar a um ensaio ou outro, de vez em quando. É óbvio que estamos perante intérpretes mais velhos e, por isso, não se poderá exigir deles o mesmo que se exigiria de um elenco novo. Os ensaios decorrem num ritmo adaptado a quem já não consegue ficar três horas de pé ou demora mais tempo a trocar de roupa. "Há dias em que estão mais cansados, há dias em que a concentração é mais difícil, há muitas peculiaridades", admite a coreógrafa Aldara Bizarro, que começou a trabalhar com a companhia durante a pandemia. "Na altura, criámos um grupo de WhatsApp e fazia com eles umas sessões de dança através do Zoom. A ideia era, por um lado, eles trabalharem o corpo e, por outro, não se sentirem tão isolados", explica.
No último ano, Aldara Bizarro tem estado a trabalhar na nova criação da Companhia Maior, "Agora Nascíamos Outra Vez", que se estreia este sábado na Fundação Calouste Gulbenkian no âmbito do programa "Isto é PARTIS & Art for Change". A proposta de Paula Varanda, diretora da companhia, era fazer um espetáculo sobre o futuro. "Não perguntamos às pessoas mais velhas: quais são os teus planos para o futuro? Perguntamos só até uma certa idade. Mas apercebi-me a trabalhar com esta companhia que as pessoas têm planos para o futuro. E isso é muito interessante", conta a coreógrafa.
"Criámos um futuro nosso. Eles claramente não queriam um futuro distópico. Podem ser muito negativos no presente, mas ao projetarem-se a eles e às suas famílias e amigos no futuro são muito positivos. Então, chegámos a uma utopia, a ideia de uma praia e trabalhámos a partir daí", antecipa Aldara Bizarro. Patrícia Portela escreveu o texto, Noiserv fez a música original, o espaço cénico é de Fernando Brízio e Diogo Dias João, e o design de luz de Daniel Worm.
Um dos movimentos que os intérpretes mais fizeram durante o processo de criação foi acocorar. "É um dos movimentos que se perde mais cedo no corpo, e eu queria provar que se conseguia recuperar. Quando começámos, só dois ou três é que conseguiam, e agora conseguem todos. O acocorar está muito relacionado com a infância, o brincar, ou com as tarefas - é por isso que as mulheres conseguem acocorar melhor", explica a coreógrafa. "Também trabalhámos o salto, que é outro movimento que perdemos. A vida torna-se séria e deixamos de brincar e saltar. Mas não saltamos no espetáculo, só nos aquecimentos."
"No espetáculo temos, por um lado, essa projeção do que é que é um futuro imaginado por nós e, por outro, a recuperação de uma coisa perdida. Eu projeto-me no futuro mas vou buscar outra que tinha desaparecido para levá-la comigo." Aldara Bizarro recorda a avó que, aos 90 anos, ainda subia escadas e queria fazer tudo sozinha, sem ajudas: "A minha avó dizia: se eu deixo de fazer, deixo de fazer para sempre. E eu dizia muito isso a estes intérpretes: quanto menos fazemos, menos conseguimos fazer."
"A vida para mim é maravilhosa"
Michel é dos que só deixará de fazer quando não conseguir de todo fazer. Conhecido sobretudo pelo acordeão e pelo sapateado, Michel, francês que se estabeleceu em Lisboa em 1979, é bailarino, coreógrafo, ator e músico. Foi professor na Escola de Dança do Conservatório Nacional e autor de diversos espetáculos que fundem a música, a dança e o teatro. "A companhia faz parte do meu projeto de vida, que não é só isso, tenho outras coisas, até ter a capacidade física e intelectual vou continuar a fazer o que gosto", diz.
Atualmente, com 75 anos, trocou o antigo e pesado acordeão por um modelo mais leve e, além de pertencer à Companhia Maior desde a sua criação, continua a dar aulas de sapateado e tem um projeto musical intitulado Cadernos de Viagens. "Temos um novo trabalho já editado online, são 14 temas. Eu sou compositor e músico, a música é o prato forte do meu dia a dia", sublinha.
Foi Michel que trouxe para esta praia imaginada a canção "La Mer", de Charles Trenet, que acaba por ser um dos momentos mais bonitos do espetáculo. O melhor de pertencer à Companhia Maior é a oportunidade de fazer coisas novas: "Cada vez que vem um novo encenador é uma descoberta, um desafio, sempre diferente. A companhia é um prazer, tem de ser, se não não estávamos aqui, não há fronteiras entre o trabalho e o prazer." E conclui: "Somos privilegiados - olhamos para o mundo como está e nós, estamos aqui, somos privilegiadíssimos."
"Também me canso, mas sei gerir os meus momentos de vazio, é importante, faço meditação, principalmente respiração - é preciso saber parar, faz parte do dia, relaxar, e depois tudo passa." Esse é o seu principal segredo para se manter saudável: "Está tudo ligado, não há cabeça separada do corpo. A consciência do ser é muito importante, a atitude, os gestos, tudo tem de fazer sentido." Michel tem um telemóvel antigo, sem WhatsApp nem outras aplicações, apenas "com o mínimo necessário", e tem um computador em casa que usa sobretudo para trabalhar. Procura desligar-se do mundo virtual para estar cada vez mais ligado ao que é realmente importante. "Tem de se manter a calma e a tranquilidade."
Kimberley Ribeiro, a quem todos chamam apenas Kim, acabou de fazer 72 anos. Tem o cabelo branco apanhado em duas tranças e um corpo esguio que se move de forma ligeira e delicada. Se não soubéssemos já, facilmente adivinharíamos que é bailarina. Nasceu nos Estados Unidos e foi bailarina da Companhia Boston Dance Theatre. Após uma segunda digressão pela Europa decidiu radicar-se em Lisboa onde integrou a Companhia “Verde Gaio” e, depois, a Companhia Nacional de Bailado, desde a sua fundação em 1977, onde desenvolveu a maior parte da sua carreira profissional como bailarina, ensaiadora e tour manager. Até ao dia em que foi obrigada a reformar-se. "Fiquei triste quando tive de sair da companhia, mas pensei logo que ia continuar a fazer outras coisas", diz. Parar não era opção.
"A carreira de bailarina termina cedo em termos de técnica, uma pessoa deixa de conseguir fazer alguns dos movimentos, mas não estamos impossibilitados de fazer outras coisas e somos criativos. E isso é algo que a idade e a liberdade te dão: podes fazer o que quiseres", garante. "Juntei-me com outras colegas que estavam aposentadas ou sem trabalhar, da Gulbenkian e Companhia Nacional de Bailado, e formámos a companhia Nossas Danças, que é folclore estilizado. Já temos dois programas disponíveis. São todos colegas da dança, toda a gente tem uma coisa em comum: gostar de estar no palco e tentar retribuir aquilo que aprendemos ao longo da vida. Continuamos apenas por gosto."
Além desse projeto, Kim está com a Companhia Maior desde a sua fundação e também tem feito trabalhos em publicidade e moda. "As minhas colegas do Verde Gaio foram as primeiras a convidar-me a fazer passarela, na altura riram-se de mim porque eu não sabia desfilar. Mas entretanto aprendi. E também faço trabalhos de cabelos ou maquilhagem", explica. E, como se não bastasse tudo isto, ainda faz zumba duas vezes por semana e alongamentos mais duas vezes por semana. "Sei que se não me mexer vou parar rapidamente", justifica. E esse é o conselho que dá: "Tentem encontrar aquilo que gostam de fazer. Todas as pessoas, mas especialmente as que entram na terceira idade, têm de ter uma disciplina, não pode ser só falar e sentar. Se se começa a ficar sentado, vai-se ficar sentado para sempre, até à cadeira de rodas."
Quando era mais nova, Kim não tinha assim tantos cuidados. "Nunca ouvi o meu corpo quando era jovem, nunca prestei atenção", admite. Mas, entretanto, percebeu que tinha de ter mais cuidado. "A pandemia também ajudou, porque eu estava habituada a estar sempre fora de casa e tive de ficar em casa. Aprendi outra maneira de organizar a minha vida. Faço jardinagem, não sou grande cozinheira, mas aprendi certas coisas e mudei a minha dieta. Estou sempre à procura do que é bom para mim." Descobriu que nunca é tarde para fazer amigos e procura passar tempo com eles. O seu dia a dia é tão ocupado que mal tem tempo para olhar para o telemóvel: "O que é bom. Vou só lá ver quem é que faz anos hoje." E conclui: "A vida para mim é maravilhosa, sim."