Análises, exames, TAC e ressonâncias só porque sim. Há quem procure constantemente doenças - e isso também tem riscos

3 jun 2023, 08:00
Médica (Pexels)

Fazer um check-up médico pode ajudar a despistar precocemente doenças, mas os especialistas dizem que a realização de exames e análises sem qualquer sintoma é muitas vezes desnecessária e pode até trazer riscos. Em alguns tipos de cancro pode mesmo levar a tratamentos demasiado prematuros - mas isso não invalida a importância do diagnóstico precoce

O ditado popular diz que “mais vale prevenir do que remediar” e há quem siga esta ideia à risca quando o assunto é a saúde. Os check-ups médicos, ainda caros, mas cada vez de mais fácil acesso, ganham destaque e são procurados por pessoas sem sintomas, que querem uma visão geral do seu estado de saúde, despistando o quanto antes eventuais doenças. Mas estes check-ups nem sempre são necessários e podem até causar mossas, sobretudo na presença de falsos positivos. Em alguns casos, como o cancro, podem mesmo levar a tratamentos demasiado prematuros.

“Fazer análises não faz mal nenhum à saúde”, começa por dizer Dulce Costa, médica de Medicina Geral e Familiar, defendendo que as que são anualmente pedidas nas consultas com o médico assistente podem ser suficientes em casos onde não há queixas, sintomas ou qualquer potencial risco hereditário. No entanto, adianta-se a dizer que “hoje em dia há muita gente que pede um check-up" e, "sinceramente, não faz muito sentido assim do nada": "O exagero não é o caminho”.

Os exames que fazem parte de um check-up médico podem variar consoante o local onde se realizam, sendo comum em unidades privadas ou até como parte do plano do seguro de saúde, seja pessoal ou empresarial. Uma pesquisa online permite perceber que, com um check-up, é possível, por exemplo, fazer um hemograma completo, uma análise à urina, uma análise à glicémia, tiroide, colesterol e triglicéridos, a medição da tensão arterial, a avaliação do Índice de Massa Corporal, a avaliação do coração e pulmões (podendo, aqui, incluir a realização de eletrocardiograma, ecocardiograma, raio-x, testes de esforço e testes de função pulmonar), a medicação da função renal e da função hepática (ambas por análises sanguíneas, numa primeira fase, podendo haver exames complementares posteriores) e a análise dos níveis de vitaminas e minerais. Em alguns casos, há ainda a inclusão de colonoscopia, endoscopia alta, mamografia e análise à presença de sangue nas fezes. Mas há check-ups ainda mais completos. Os mais básicos podem custar pouco mais de 100 euros, mas há outros que ultrapassam os 1.000 euros.

Mas todas as pessoas precisam de fazer todos estes exames e análises? Não. E todas as doenças beneficiam de um diagnóstico assim tão precoce? Também não. 

Luís Rosa, diretor clínico da Affidea Portugal e consultor em Radiologia de Intervenção, explica que “a pesquisa de doença quando a pessoa não tem qualquer sintomatologia está provada como eficaz em algumas patologias, como os cancros da mama, colorretal, colo do útero e pulmão, este por TAC”. Nestes casos, diz, “há uma vasta literatura em que há vantagem, salvam-se vidas pela realização do screening”, no entanto, apressa-se em dizer que “o assunto é muito polémico dentro da comunidade médica e mesmo perante o público em geral”, pois “não há uma regulamentação sobre a realização de check-ups, há um intuito comercial que não é, na maior parte das vezes, fundamentado numa base clínica e científica que justifique a realização de exames”.

Não há justificação nenhuma, a não ser comercial, para a realização de programas de check-up alargados à população geral”, diz o médico, acrescentando que se deve atuar “em função dos fatores de risco” e, com isso, “otimizar um conjunto de exames” específicos e não vastos.

Da mesma opinião é Robert H. Shmerling, médico e docente na Harvard Medical School, que diz que “a importância do diagnóstico precoce e do tratamento precoce é clara para certas condições”, podendo salvar vidas, mas para outras “é exagerada” e pode mesmo fazer com que a pessoa fique preocupada e stressada e comece uma longa procura (leia-se, ronda de exames) por uma patologia, que pode até nem existir. “Só porque podemos testar centenas de doenças não significa que devemos [fazê-lo]”, diz.

Segundo Isabel Aguilar, especialista espanhola em Medicina Preventiva e Saúde Pública e professora na Universidade de Saragoça, que escreve no El País, “as evidências dizem-nos que se não tiver sintomas, se se sentir bem e não tiver um historial pessoal ou familiar de interesse, e isto significa, por exemplo, que não tem um familiar próximo que teve cancro ou um ataque cardíaco em tenra idade, fazer exames regulares não funciona”, até porque, “não reduzem a mortalidade por cancro ou doenças cardiovasculares”. 

Riscos de procurar doenças só porque sim

Que as pessoas devem prestar atenção à sua saúde e cuidar dela diariamente, não restam dúvidas, mas passar dessa vigilância passiva, com uma ida anual ao médico, para a realização de uma série de exames por conta própria, só para ter (ou tentar ter) a certeza de que nada de errado se passa, ganha outra dimensão.

A procura por uma saúde perfeita e os exames realizados para tal - assim como os resultados e as dúvidas que surgem - trazem um conjunto de situações que pode causar danos à saúde. E tudo começa com falsos positivos ou exames inconclusivos que requerem outros exames, outras análises, outras avaliações.

“Qualquer screening corre o risco de falsos positivos. Faz com que doentes que não são doentes sejam compelidos a realizar outros exames, alguns mais invasivos e que complicam mais a situação. Mas para instituições mais comerciais é conveniente”, atira Luís Rosa. O médico dá o exemplo da TAC de baixa dose de radiação, “uma técnica usada para despiste precoce do cancro do pulmão” e que hoje em dia apresenta “menos falsos positivos”, mas que, “durante muitos anos, houve dúvidas quanto à eficácia do screening do pulmão”, tendo levado a exames complementares, algumas vezes, desnecessários. 

“Quase todos nós, sobretudo as pessoas mais velhas, temos pequenos nódulos pulmonares por primoinfecção tuberculosa, prevalente nos anos 1950 a 1970 em Portugal. Muitos portugueses têm pequenos nódulos que são apanhados [na TAC] e são alvo de investigação adicional, que pode ir à PET, com radiação, até à biópsia. Há ansiedade causada por isso, a pessoa não dorme descansada, e há ainda os custos adicionais e o risco de complicações”, acrescenta Luís Rosa, que diz que são as pessoas mais velhas e com uma carga tabágica elevada aquelas que se assumem de maior risco e que podem beneficiar do exame.

Alguns exames diagnósticos têm radiações, as pessoas por tudo e por nada fazem uma TAC, mas nem sempre são a melhor opção”, esclarece Dulce Costa, médica de Medicina Geral e Familiar, que diz que esta questão da procura de doenças vai muito além do cancro.

E não é apenas a radiação que causa danos, “a endoscopia do intestino pode levar a sangramento ou (em casos raros) a lesões graves”, como exemplifica o estudo publicado na National Library of Medicine.

Estes exames vastos sem que haja sintomatologia e que são realizados em check-ups e os falsos positivos que frequentemente aparecem levantam questões éticas e despesas elevadas, como se lê no estudo publicado na BMC Medical Ethics. “Exames de imagens extensas e caros [como a ressonância magnética] são desnecessários - e podem aumentar desnecessariamente a ansiedade se uma anormalidade incidental sem consequências for descoberta”, diz Robert H. Shmerling. 

Para Luís Rosa, e tendo em conta que o cancro é aquilo que mais preocupa as pessoas, “o screening faz sentido dentro de grupos de risco específicos”, sendo a partir dos 40 anos um momento para prestar mais atenção à doença - mas, mesmo assim, são as pessoas com historial familiar ou outros fatores de risco as que se devem realmente preocupar. Ainda tendo como exemplo o cancro da mama, o médico explica que homens podem também ter esta doença, “mas não se faz [o rastreio sem suspeita], é demasiado raro para se justificar”.

Alguns check-ups destinados a mulheres incluem a realização de uma mamografia, mas Luís Rosa diz que a realização deste exame por mulheres com 30 ou menos anos “não é, de maneira nenhuma” recomendado, “é uma guerra” que vai até além dos check-ups: “Há muitos médicos de família que pedem mamografia a mulheres de 30 anos, mas se não existir uma suspeita clínica forte ou história familiar ou uma análise genética que aponte para o risco, não faz sentido fazer mamografia abaixo de uma certa idade”.

A médica oncológica Ana João Pissarra diz que há ainda “o risco de as pessoas estarem cismadas” com uma doença que pode não existir, sobretudo quando as análises e exames feitos levantam a mínima dúvida, porém, defende que “é preferível pecar por excesso do que por defeito”, mas apenas quando os exames complementares não comprometem a saúde do paciente. O ideal, garante, é “dosear”: “é importante a vigilância regular da pessoa, com um médico que faça uma vigilância anual” e de acordo com as queixas ou histórico familiar, sem entrar em exageros

Para a médica Dulce Costa, “uma pessoa que tenha uma alimentação saudável e estilo de vida saudável”, à partida, não necessita de se submeter a exames e análises. “Não quer dizer que não possa ficar doente e que não faça análises, mas se tiver histórico familiar, de diabetes ou hipertensão, terá de ter mais atenção e fazer análises mais regularmente”, diz, frisando a importância de avaliar fatores de risco.

A médica de Medicina Geral e Familiar defende que, por exemplo, “as pessoas que são obesas e que são muito sedentárias, que normalmente já fizeram análises e têm o colesterol alto e diabetes no limite, são pessoas que têm de se cuidar e fazer exames mais vezes, mas fazerem exames não é tudo, é preciso literacia e mudar hábitos”.

Detetar a doença cedo nem sempre é sinónimo de a tratar cedo (ou de poder tratar)

No que diz respeito à deteção precoce de doenças, os rastreios oncológicos são de elevada importância, sublinham os especialistas entrevistados pela CNN Portugal, que se apressam a dizer que nada têm a ver com os check-ups que se podem fazer em clínicas - os rastreios são desenhados para pessoas sem sintomas e sem histórico familiar da doença, mas que, pela sua idade, estão já num grupo de risco. Estes rastreios incluem exames que se mostram seguros na deteção da doença, tendo ficado provado que a relação risco-benefício da sua realização é positiva. 

Existem rastreios em Portugal para determinados cancros e mesmo as pessoas saudáveis, sem doença e sem história familiar, devem fazer estes rastreios”, adianta Ana João Pissarra. “O diagnóstico precoce é pedra basilar para o cancro”, adianta. No caso do cancro da mama, face ao aparecimento da doença em mulheres mais jovens, o rastreio vai começar a ser feito aos 45 anos

Há check-ups que permitem avaliar marcadores oncológicos que podem indicar a presença da doença. Mas, nestes casos, tal como diz outro ditado, “a pressa é inimiga da perfeição”. Afinal, não é por se detetar cedo que se deve fazer o tratamento cedo ou que valha sequer atuar.

Segundo a Universidade de Harvard, há três tipos de cancro em que a deteção precoce e posterior tratamento precoce podem ser mais nocivos do que benéficos. É o caso de certas leucemias e linfomas, que, diz a instituição no seu site, “embora [sejam cancros] malignos, podem progredir tão lentamente que os riscos do tratamento superam os benefícios”, uma vez que “nenhuma terapia pode ser recomendada para leucemia linfocítica crónica em estágio inicial que não causa sintomas”.

Também em alguns tipos de cancro da próstata pode haver riscos quando o diagnóstico é prematuro. Segundo Harvard, “para homens com cancro de próstata que não se espalhou para fora da próstata e que tem uma aparência não agressiva ao microscópio, pode ser aconselhada a monitorização rigorosa sem tratamento”.

Além disso, diz Luís Rosa, “em doenças de evolução lenta, como a próstata, em quase todas as autópsias a homens com mais de 80 anos, 90 e tal por cento têm neoplasia da próstata, a prevalência em homens mais velhos é enormíssima, mas só alguns são diagnosticados precocemente”. Nestes casos, explica, “o screening é de duvidosa relevância, o doente pode passar por manobras terapêuticas agressivas para um cancro que não o mataria”.

“No cancro da próstata faz-se muita vigilância ativa, sobretudo em homens mais velhos, quando o cancro é de baixa agressividade, opta-se por não tratar, fazendo uma ressonância magnética de seis em seis meses e vigiando as variações do SPA [antigénio específico da próstata]”.

Para o médico, há ainda um outro exemplo de como a procura pela doença pode nem sempre ser o melhor caminho, sobretudo quando se espera que isso traga um tratamento precoce e uma cura atempada. O especialista diz que “não faz sentido um screening à procura de doenças em que não há resposta clínica adequada”, como é o caso do cancro do pâncreas.

“Mesmo quando apanhado pelas tecnologias mais evoluídas quando é encontrado, normalmente, já está numa fase em que passado uns meses disseminou. O diagnóstico precoce pode identificar uma doença mais cedo, mas se for grave, o doente acaba por morrer na mesma doença sem screening. O screening dá a entender que aumenta o tempo de vida, mas não, só vive mais tempo a saber que tem a doença”.

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