Kiev processa um dos principais aliados na guerra por causa dos cereais. "Mostra-nos o que seria a adesão da Ucrânia à UE"

18 set 2023, 22:00
Volodymyr Zelensky e Andrzej Duda. AP

Polónia, Hungria e Eslováquia, três Estados-membros da União Europeia, decidiram unilateralmente manter a proibição de importação de cereais ucranianos, apesar da indicação de Bruxelas em contrário. O caso está agora nas mãos da Organização Mundial do Comércio, após intervenção da Ucrânia, que alegou que os países não estão a agir em conformidade com o direito europeu

A Ucrânia avançou com um processo contra a Polónia, a Hungria e a Eslováquia na sequência da proibição da importação de cereais ucranianos imposta unilateralmente pelos três países, à revelia da Comissão Europeia.

No entender de Kiev, "os Estados-membros individuais não podem proibir a importação de produtos ucranianos", razão pela qual avançou esta segunda-feira com uma ação judicial na Organização Mundial do Comércio (OMC) contra aqueles três países, um deles, a Polónia, um dos principais aliados na guerra.

À CNN Portugal, Francisco Pereira Coutinho, especialista em direito europeu e internacional, não tem dúvidas: a Polónia, a Hungria e a Eslováquia estão mesmo a incorrer numa "violação do direito europeu" e podem vir a ser sancionadas por isso mesmo. Isto porque os três Estados-membros da União Europeia (UE) estão a desafiar uma decisão do executivo comunitário, que na sexta-feira passada decidiu levantar as restrições à entrada de cereais ucranianos, permitindo a sua importação em todos os países da UE - incluindo Polónia, Hungria, Eslováquia, Bulgária e Roménia, os cinco países do leste europeu que tinham chegado a acordo com Bruxelas no início deste ano para proibir temporariamente a importação de cereais e outros produtos agrícolas ucranianos.

Na altura, aqueles cinco países justificaram a medida com a necessidade de proteger os seus agricultores, que seriam prejudicados pelos custos reduzidos dos produtos importados da Ucrânia. Cerca de seis meses depois da entrada em vigor das respetivas restrições às importações, a Comissão Europeia diz não ver "distorções no mercado daqueles cinco Estados-membros". "Portanto, não vamos prolongar a proibição", assumiu o comissário europeu para o Comércio, Valdis Dombrovskis, citado pelo Politico.

De acordo com o especialista em direito europeu, a política comercial da União Europeia extravasa a soberania dos Estados-membros, logo Polónia, Hungria e Eslováquia "não podem" decidir prolongar as restrições de forma unilateral e podem mesmo vir a ser alvo de uma "ação por incumprimento" por parte da Comissão Europeia. "[Os três países] Serão notificados de que estão a violar o direito europeu e têm de parar. Se não pararem, a questão pode chegar ao Tribunal de Justiça da União Europeia e, no limite, [podem vir a ser] objeto de coimas", explica Francisco Pereira Coutinho, assegurando que o facto de a Ucrânia não ser um país da UE não coloca em causa esse cenário.

"O problema aqui está na decisão da Comissão Europeia. Eles [a Polónia, Hungria e Eslováquia] estão a contestar uma decisão da Comissão Europeia", reforça.

Tiago André Lopes, por sua vez, argumenta que "a Comissão Europeia jogou mal" na gestão destes acordos com os países do leste europeu. Isto porque, na perspetiva do especialista em relações internacionais, o executivo comunitário "achou que tem um poder que não tem" ao levantar as restrições às importações e assumindo que a decisão seria cumprida pelos governos daqueles cinco países do leste europeu. 

"A Comissão Europeia foi excessivamente idealista. Assumiu que, se terminasse o embargo [aos cereais ucranianos], os cinco Estados também terminariam o embargo. Quando não havia indícios disso. Aliás, o próprio Comissário Europeu para a Agricultura [Janusz Wojciechowski], que é polaco, tinha dito na segunda-feira passada que compreendia se houvesse uma extensão do embargo. Isto dá-nos a ideia de que, mesmo dentro da Comissão, esta não foi uma decisão simples", argumenta.

As relações "beliscadas" com Kiev e "os ganhos internos" do embargo

A decisão dos três países de leste está a ser percecionada pelos media polacos como um caso que "inflama" as relações entre Varsóvia e Kiev. Mas, no entender de Tiago André Lopes, no limite esta decisão apenas vai "beliscar" as relações bilaterais entre os dois países vizinhos, sem quaisquer efeitos na ajuda militar fornecida pela Polónia à Ucrânia na defesa da invasão russa.

"Obviamente que as relações entre a Ucrânia e os Estados vizinhos ficam manchadas e a própria ficção da grande unidade ocidental sem haver brechas também o fica. [As restrições] Beliscam as relações bilaterais e beliscam a perceção de um apoio incondicional por parte daqueles países, que perdem a capacidade de falar em público sobre apoio incondicional" à Ucrânia, argumenta o especialista em relações internacionais.

Também Francisco Pereira Coutinho rejeita que este braço de ferro entre os países do leste europeu, o executivo comunitário e o governo ucraniano possa pôr em causa "a grande aliança político-militar que existe atualmente" para ajudar Kiev a defender-se das forças invasoras. Mas, na perspetiva do especialista, evidencia uma outra preocupação: "Mostra-nos o que significaria a adesão da Ucrânia à União Europeia."

"Todos estes Estados querem que a Ucrânia entre rapidamente na União Europeia, mas, uma vez na União Europeia, a Ucrânia não podia estar sujeita a este tipo de restrições à livre circulação de bens", assinala. Ora, esta questão entra depois em conflito com a gestão interna dos Estados-membros, sobretudo destes países do leste europeu onde o setor primário, nomeadamente o setor agrícola, ainda assume uma grande importância.

É neste contexto que Francisco Pereira Coutinho argumenta que a insistência da Polónia, da Hungria e da Eslováquia em manter as restrições às importações de produtos agrícolas ucranianos mais não é do que uma forma de obter "ganhos internos" nas próximas eleições (a Eslováquia vai a votos no dia 30 deste mês, enquanto a Polónia vai a eleições legislativas em 15 de outubro).

"Acima de tudo, esta decisão mostra os problemas que têm de ser discutidos em relação à adesão de um Estado do tamanho da Ucrânia e com as características da Ucrânia. Nós temos essa discussão cá em Portugal por causa dos fundos de coesão, mas aparentemente nestes Estados o setor primário ainda é bastante relevante, porque os cereais ucranianos depois chegavam ao mercado [dos Estados-membros] a um preço muito barato", problematiza o especialista.

O mesmo afirma Tiago André Lopes, que vai mais longe e admite que, se o governo polaco tivesse de tomar esta decisão após as legislativas, "seria altamente provável que não tivesse tomado uma decisão neste sentido".

"Percebe-se que os Estados têm de começar a calcular os efeitos domésticos da guerra. A guerra tem custos domésticos também para os Estados. Por muito que para a Ucrânia toda a ajuda seja importante, o governo ucraniano terá de perceber que os Estados também têm agendas internas complicadas de gerir."

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