"O que se segue é a minha história criminal". A incrível biografia de um mafioso italiano através de uma tese universitária

7 jan, 20:00
Carabinieri (Foto: Giuseppe Aresu/AP)

São 170 páginas de dissertação sobre a ascensão e queda de um homem que só queria ser alguém. Para isso meteu-se com a Camorra

“Chamo-me Catello Romano. Tenho 33 anos e levo quase metade da minha vida na prisão, 14 anos consecutivos. Cometi vários crimes horríveis e fui condenado por homicídios da Camorra. O que se segue é a minha história criminal”.

Podia ser, mas esta passagem não vem num livro de memórias, tão pouco numa nota de arrependimento. É antes a forma como um assassino da máfia italiana decidiu começar a sua tese universitária que tem, entre outras coisas, a confissão de três homicídios.

Catello Romano licenciou-se em Sociologia a partir da prisão. Fê-lo com destaque no quadro de honra, aproveitando também para confessar coisas que nunca tinha admitido, como os três homicídios que realizou ao serviço da Camorra, o grupo de Nápoles associado à máfia siciliana.

O documento serviu como base para a obtenção da licenciatura, mas, em paralelo, também chegou às mãos das autoridades. A justiça italiana decidiu reabrir os casos em questão, tendo também ordenado a transferência do prisioneiro para uma cadeia de alta segurança em Pádua.

“O meu objetivo também é contribuir para a compreensão do fenómeno da criminalidade e, por consequência, para a sua possível prevenção. Tenho a convicção de que as palavras são importantes e este texto pretende mudar o mundo que nos rodeia”, continua o mafioso, numa tese a que o El País teve acesso.

Trata-se de um trabalho com 170 páginas, numa tese escrita a partir da prisão de Catanzaro, onde Romano, como muitos outros condenados associados à máfia, enfrentou condições duras. Talvez arrependido por muitos dos seus atos, dedicou esse tempo a escrever sobre “o fascínio pelo crime”.

Mais que uma tese universitária em que se valorizam métricas e métodos, o texto de Romano é uma autêntica autobiografia que nos leva ao coração da máfia. Ali estão espelhados episódios dramáticos, muitos deles com descrições aterradoras dos crimes cometidos.

O mafioso fala sobre o ambiente na organização, faz reflexões sobre a sua vida, família, a educação que recebeu, as referências que tinha na infância e adolescência. À cabeça surgem problemas como divórcios, abandono, drogas, violência e muitos outros.

“Desde a minha infância que conheço de perto a miséria e a influência negativa que pode ter, e desenvolvi uma certa disposição à reflexão e uma capacidade, infelizmente não muito comum, para não fazer juízos moralistas fáceis e precipitados sobre as pessoas”, pode ler-se.

Entre os crimes cometidos por Romano está o assassínio de um autarca de Castellammare di Stabia, um município ao sul de Nápoles. Luigi Tommasino foi morto com vários tiros em fevereiro de 2009, quando ia de carro com o seu filho. A Romano a Camorra pediu que matassem este homem. A causa? “Intrometer-se em demasiadas coisas que não lhe diziam respeito”.

Então acabado de entrar na idade adulta, Romano teoriza que o crime suscita um fascínio aos jovens vindos de setores marginalizados e estigmatizados da sociedade, como era o seu caso. Na sua tese explica que encontrou junto dos mafiosos o refúgio que procurava desde que se lembrava.

“É o modo de tentar emancipar e ganhar mais respeito e reconhecimento social”, nota, dizendo que este contexto promove a violência como uma linguagem e uma forma de conseguir esse reconhecimento. É como se a máfia, para Romano a Camorra, substitui-se a falta de estrutura familiar, convertendo-se numa “instituição total”.

Vindo de uma família humilde, mas que nem tinha ligações com o crime, Romano até nasceu a querer ser polícia. Mas o divórcio dos pais, a violência diária e a relação difícil com o pai levou-o por outro caminho.

O “vazio” que se instalou na sua vida fê-lo procurar abrigo. E esse abrigo foi a Camorra, onde encontrou “uma nova família na qual podia viver profunda e totalmente” a sua “nova identidade criminal”.

“Com eles construí a minha nova identidade alternativa de um miúdo duro, com uma máscara para dissimular a minha incapacidade de aceitar a minha fragilidade de adolescente e como forma de sobrevivência num mundo violento e extremo”, pode ler-se na tese.

Mesmo consciente de que não estava a cumprir pena por alguns dos crimes de que fala, Romano decidiu avançar na mesma com as confissões. Nas 170 páginas descreve ao detalhe alguns dos crimes cometidos. Uma forma de redenção. A possível, pelo menos.

“Através deste trabalho, pelo menos até certo ponto, estou a levar a cabo um trabalho de verdade e de reparação, não me atrevia a dizer de justiça, por aqueles que foram diretamente afetadas pelas minhas ações desorientadas”, refere.

Pistola e homicídio: a primeira vez

Entre os vários pormenores e crimes descritos, fica na retina a primeira vez que Romano pegou na pistola. Não pela especial violência do momento, mas por se perceber que foi aí que definitivamente a vida do homem mudou.

Tudo aconteceu para proteger um mafioso que estava em liberdade condicional de possíveis represálias dos clãs rivais. A partir daí foi uma trajetória descendente: em 2008 cometeu os primeiros dois homicídios. Assassinou a tiro Carmine D’Antuono – um rival com demasiado poder – e Federico Donnarumma – que teve o azar de “encontrar-se com a pessoa errada no momento errado”.

Essa “imprudência” era acompanha de um “desejo loco de ser alguém, de ser visto e fazer parte de algo maior e importante, demonstrando a mim mesmo que sou digno mediante a crueldade e frieza de suprimir o próximo”.

Nesses primeiros crimes, que descreve como “o acontecimento mais violento, traumático e irreparável” da sua vida, Romano conta até que se vestiu a preceito para a ocasião. “Gostava de me vestir bem e apreciava a minha roupa, que havia comprado com tantos sacrifícios nos últimos anos a fazer trabalhos mais humildes, duros e honestos. Quando cometi o meu primeiro homicídio tive de abdicar, por precaução, de tudo o que levava vestido no momento do tiroteio, para evitar que se detetassem restos de pólvora”.

Consciente de que é impossível ter perdão para o que fez a tanta gente, deixa uma mensagem que mostra como estava, muitas vezes, pouco consciente do que estava realmente a fazer. “A infame lógica da Camorra funciona assim. Nem sequer é necessário que a vítima tenha feito algo, aprendi no terreno que neste mundo alguém pode morrer pela inveja de alguém que, para azar da vítima, tem uma certa influência para ditar uma sentença de morte”.

“Quando alguém diz a verdade, não deve arrepender-se de a ter dito”, termina.

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