Exclusivo: Hospital pediu orientações urgentes ao ministério sobre medicamento mais caro do mundo

19 jan, 21:35

Duas semanas antes do agendamento da primeira consulta das gémeas, Hospital de Santa Maria perguntou ao governo como decidir administrar o medicamento mais caro do mundo

A administração do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, onde está incluído o Hospital de Santa Maria, pediu orientações urgentes aos dois secretários de Estado do Ministério da Saúde entre 2019 e 2020 - no mesmo período em que as gémeas luso-brasileiras foram recebidas no serviço de neuropediatria - sobre o medicamento mais caro do mundo contra a atrofia muscular espinhal.

Os documentos a que o Exclusivo da TVI teve acesso, fornecidos pelo Ministério da Saúde, revelam que a primeira carta assinada pelo antigo presidente do hospital, Daniel Ferro, seguiu para o ministério a 22 de novembro de 2019.

Ou seja, poucas semanas depois da situação das gémeas ter sido encaminhada pela Presidência da República para o ministério (através do gabinete do primeiro-ministro) e da reunião pedida pelo filho de Marcelo Rebelo de Sousa com o então secretário de Estado, Lacerda Sales; bem como duas semanas antes da primeira consulta agendada para as crianças, apesar da resistência dos médicos do Santa Maria que defendiam que estas deviam continuar a ser tratadas no Brasil, numa altura em que tinham mais pedidos de outras famílias de crianças luso-descendentes com atrofia muscular espinhal.

Pedidos "inusitados" de consultas

Recorde-se, em paralelo, que quatro meses antes - depois de uma onda mediática -, o governo tinha aceitado pagar o medicamento Zolgensma para outras duas bebés (Matilde e Natália), apesar deste ainda não estar aprovado pelas autoridades europeias de saúde, numa decisão pioneira e quase única no Mundo.

A carta de 22 de novembro da administração do hospital tem como tema esse mesmo fármaco de 2 milhões de euros e sublinha que “todos os pedidos de financiamento para este medicamento enviados à tutela não tiveram resposta. O acréscimo desta despesa inesperada pela dívida contraída, na já debilitada situação económico-financeira da instituição, prejudicou o prazo médio de pagamento a fornecedores que voltou a situar-se nos 320 dias".

O documento confirma, igualmente, que o hospital tinha recebido mais pedidos de consulta, não apenas o da família das gémeas: "Têm chegado, inusitadamente, quer via serviço de pediatria, quer através do CA [Conselho de Administração], solicitações de consultas para várias crianças de nacionalidade portuguesa, residentes quer no país, quer no estrangeiro, que já totalizam seis casos".

"Imperioso discutir metodologia e decisão"

Além de respostas da tutela sobre os gastos com este medicamento que tinha um impacto tão forte nas contas do hospital, a administração queria saber como decidir administrar o medicamento de 2 milhões de euros: "É imperioso discutir com sua excelência a melhor metodologia para a abordagem e decisão relativa à utilização deste fármaco, bem como o seu financiamento".

Pela mesma altura, também os médicos da neuropediatria do Santa Maria pediam orientações sobre o acesso ao medicamento mais caro do mundo, contestando que este fosse administrado a não-residentes, mesmo com nacionalidade portuguesa, como revelou o coordenador do serviço, Levy Gomes.

A carta da administração do Santa Maria (bem como outras que se seguiram nos meses seguintes apenas sobre a questão do financiamento) tinha como destinatária a ex-secretária de Estado Adjunta e da Saúde, Jamila Madeira, bem como o ex-secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, mas nos documentos agora fornecidos à TVI pelo Ministério da Saúde não se encontra nenhuma resposta formal relativa à metodologia e decisão sobre o Zolgensma.

Apenas a parte financeira acabaria por ter resposta, meses depois, após muita insistência do Santa Maria, com uma solução aplicável a todos os hospitais do Serviço Nacional de Saúde que tivessem de usar este medicamento, algo muito pouco comum tendo em conta que está em causa uma doença rara.

Presidente do hospital e ex-secretário de Estado não comentam

Contactada pela TVI, Jamila Madeira responde agora que “face à pressão financeira existente nas diversas unidades de saúde que lidavam com o tratamento, desenvolveram-se os procedimentos para resolver a questão do financiamento”, num trabalho técnico “feito pela ACSS e Infarmed em articulação".

Jamila Madeira garante, no entanto, que nunca lhe foi dado conhecimento de casos concretos, mas apenas da existência de pedidos juntos dos hospitais que implicavam avultadas despesas.

A metodologia e decisão sobre quem devia ou não receber o fármaco não eram objecto de análise no gabinete desta secretária de Estado Adjunta, numa área que estaria com o secretário de Estado, Lacerda Sales.
Lacerda Sales e o antigo presidente do hospital, Daniel Ferro, recusaram fazer qualquer comentário, remetendo os esclarecimentos para os inquéritos em curso.

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