Um Presidente está a agir como Presidente ou como pai quando diz que não falou com o filho sobre uma suspeita porque "partiu do princípio" de que o filho era incapaz de ter agido mal? Análise

5 dez 2023, 22:05
Marcelo Rebelo de Sousa (Lusa/José Coelho)

Marcelo não se lembra mas admite ter recebido um email em que o alertaram para o facto de o filho ter alegadamente posto uma cunha no caso das gémeas luso-brasileiras. São palavras do próprio no dia em que falou ao país sobre o caso. E os jornalistas perguntaram a Marcelo: "Tem conhecimento de que o seu filho possa ter falado com alguém no Ministério da Saúde sobre este caso?". Resposta: "Eu não sei e espero bem que não tenha falado, mas isso já não é comigo. Não sei". Nova pergunta ao Presidente: "O senhor nunca falou com ele?". Resposta: "Não, sobre isso não. Parto do princípio que isso não aconteceu". Portanto: um Presidente não tem o dever de questionar quando há dúvidas em vez de partir do princípio de que alguém não fez determinada coisa? Há quem responda com estupefação, até pela questão familiar: “Se eu fosse o pai ou o filho não faria sentido que um mês depois nunca tivesse falado com o meu filho/pai sabendo da questão pendente. É tudo uma narrativa estranha para os meus padrões de família”

Marcelo Rebelo de Sousa sublinhou-o várias vezes durante a comunicação que fez ao país sobre a intervenção da Presidência da República no caso do tratamento milionário às gémeas no Hospital de Santa Maria. “O doutor Nuno Rebelo de Sousa”, que primeiro informou o pai sobre esta situação denunciada em primeira mão pela TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal), seria, para ele, visto “como qualquer cidadão” e, por isso, esperava bem que ele “não tenha de algum modo invocado o seu nome”.

Mas, ao responder a uma questão sobre se tinha conhecimento de o filho ter falado com alguém no Ministério da Saúde sobre o caso, Marcelo respondeu que “parte do princípio que isso não aconteceu”.

Uma frase que, para o advogado Manuel Magalhães e Silva, antigo consultor para Assuntos Políticos de Jorge Sampaio, mostra “um tratamento diferenciado” e reflete “dois sentidos possíveis”: “Ou o meu filho é bem capaz de ter feito isso ou, pelo menos, desconfio disso e espero que não o tenha feito”. Isto porque, continua, se Marcelo “excluísse por completo essa hipótese” não tinha adensado as suspeitas e “responderia com um categórico não”.

A leitura que o advogado faz surge sequencialmente à investigação que o Ministério Público tem em curso contra desconhecidos por alegado favorecimento neste tratamento no Santa Maria com o medicamento mais caro do mundo. Assim, refere, foi “uma forma de mostrar que suspeita” - de que o filho possa ter contactado o Ministério da Saúde para tentar influenciar o caso - e “antecipadamente dizê-lo para que depois não seja acusado de estar calado, e acautelando-se perante a hipótese” desses contactos serem investigados.

Certo é que a frase em si pressupõe um julgamento de carácter. Não seria credível que o Presidente inferisse à partida que tal situação não tenha decorrido se, do lado de lá, estivesse outro qualquer cidadão. “É muito dificil nesta situação separar o pai do presidente”, argumenta João Massano, presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, referindo que, “a existência de uma relação como esta, e atendendo às circunstâncias políticas, deveria ter motivado Marcelo Rebelo de Sousa a ter uma maior objetividade”.

Ainda que “não seja este tipo de afirmação que possa levar o Ministério Público a criminalizar ou não a conduta”, Massano destaca que “eticamente, deveria ter tido um comportamento diferente para dar o exemplo à população”. “As instituições têm de ser impermeáveis”, realça. 

Para a politóloga Paula do Espírito Santo, a declaração de Marcelo “foi muito mais além” da equidade que exerceu neste caso e, salienta, “acaba por deixar em aberto a questão, não garantindo  que o filho não tenha feito este tipo de diligências”. Daí que, explica, “o Presidente da República acabou por se querer escudar na sua independência”.

Há ainda outro ponto que causa alguma estranheza aos advogados e politólogos contactados pela CNN Portugal. Em nenhum momento, durante a intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente da República referiu um contacto direto com o filho sobre este caso. 

Marcelo disse, inclusive, que o tratamento ao processo das gémeas serviu o trâmite habitual de outras “centenas, se não milhares” de ocorrências: “perante uma pretensão de um cidadão como qualquer outro, dá o despacho mais neutral e igual a que deu em N casos, respeita os contactos feitos pela consultora e a posição do chefe da Casa Civil e não há uma intervenção do Presidente da República pelo facto de ser filho ou não ser filho”, disse na segunda-feira. 

Esta forma institucional de lidar com a pretensão do filho, diz o advogado Paulo Saragoça da Matta, “não faz sentido”. “Se eu fosse o pai ou o filho não faria sentido que um mês depois nunca tivesse falado com o meu filho/pai, sabendo da questão pendente. É tudo uma narrativa estranha para os meus padrões de família”, acrescenta.

Também Magalhães e Silva destaca o carácter diferenciador do seguimento dado ao caso pelo facto de Maria João Ruela, consultora da presidência para os assuntos sociais ter esclarecido o pai das crianças de que “não seria expectável” uma resposta célere por parte do Santa Maria, já que a prioridade desenhada pelo SNS era dada a residentes em Portugal. Então, questiona o ex-assessor de Jorge Sampaio, “porque carga de água foi remeter o assunto para o Governo”. É uma forma de “deixar a porta aberta” a que eventuais suspeitas sejam reforçadas na intervenção do Governo.

Na mesma linha, a politóloga Paula do Espírito Santo aponta que Marcelo tentou sustentar que “diretamente não houve qualquer influência direta”, mas que todo o caso suscita questões sobre até que ponto “essa interferência possa ter acontecido por extensão da sua própria figura, ou mesmo por via de dizer o seu nome”. “Não podemos dizer que a Casa Civil é independente da influência do presidente e é preciso apurar se indiretamente ela foi exercida”, acrescenta.

A politóloga salienta ainda que todo o caso “fragiliza” o presidente numa altura de alta pressão em que viu os “canhões apontados a si” por ter optado pela escolha de dissolver o parlamento. “Não lhe retira poderes, mas não é benéfico para a sua posição política”.

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