Os advogados contactados pela CNN Portugal não têm dúvidas de que os professores que empunharam caricaturas do primeiro-ministro com nariz de porco e lápis enfiados nos olhos "ultrapassaram os limites da liberdade de expressão" e podem ser punidos
"Estamos claramente perante uma situação de discurso de ódio, em que os limites foram ultrapassados." É assim que a advogada Iolanda Rodrigues de Brito descreve o protesto de um grupo de professores nas comemorações do Dia de Portugal, que empunhavam uma caricatura de António Costa com nariz de porco e lápis enfiados nos olhos.
Na perspetiva da advogada, mais do que o direito à liberdade de expressão, está em causa nesta situação "a liberdade de criação artística e os seus limites" - tanto que o autor das caricaturas é um professor e ilustrador que esteve presente no protesto no Peso da Régua e já se demarcou das acusações de "racista" de que foi alvo pelo primeiro-ministro.
Sendo certo que "a liberdade de criação artística é uma dimensão da liberdade de expressão que legitima o esforço de elasticidade dos limites admissíveis", Iolanda Rodrigues de Brito salienta que "numa democracia, não existem liberdades absolutas". Aliás, acrescenta a advogada, no artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o direito à liberdade de expressão é considerado "um direito relativo e não absoluto", estando, por isso, sujeito a "certas formalidades, condições, restrições ou sanções", quando está em causa, entre outras, a "proteção da honra ou dos direitos de outrem".
"Um dos fundamentos que podem servir para limitar o direito à liberdade de expressão, mesmo em caso de caricatura, é a existência de conteúdos racistas que estimulam o discurso do ódio", indica Iolanda Rodrigues de Brito, argumentando que é precisamente isso que está em causa neste protesto com caricaturas que visam o primeiro-ministro.
"A caricatura do primeiro-ministro, em que parte do seu rosto é substituída por um porco, é chocante e em nada contribui para suscitar um debate saudável sobre a luta dos professores", observa a advogada.
Também o advogado Rogério Alves considera "profundamente lamentável" este tipo de manifestações, uma vez que "não se criticam ideais, nem políticas, nem opções governativas", resumem-se a "achincalhar e ofender pessoas".
"Isto é profundamente condenável e é um péssimo exemplo de utilização de liberdade de expressão. Este tipo de manifestações não têm lugar no debate democrático e na crítica que nos é lícito fazer. Uma coisa é criticar, outra coisa é achincalhar", argumenta Rogério Alves.
O exemplo de bullying para os alunos
Neste caso em concreto, a advogada Iara Rodrigues de Brito salienta o exemplo que está a ser dado aos alunos pelos próprios professores, uma vez que "parece que se está a validar práticas de bullying com conteúdos semelhantes entre alunos", que, "induzidos em erro", podem percecionar este tipo de comportamentos como "legítimos" e, por isso, passíveis de serem reproduzidos.
Por outro lado, acrescenta, estes cartazes também "ferem a relevância do papel social do professor, que deve ser perspetivado como alguém a quem os alunos, vítimas de discriminação dentro da escola, podem recorrer".
"Por isso, ainda que a caricatura em matéria política admita, muitas vezes, a legitimação de conteúdos que estão em cima da linha de fronteira, aqui estamos claramente perante uma situação de discurso de ódio, em que os limites - ainda que muito amplos - foram ultrapassados", conclui Iolanda Rodrigues de Brito.
Professores e autor dos cartazes podem ser punidos?
De acordo com os advogados contactados pela CNN Portugal, a lei não faz distinção entre a difamação e a injúria verbal, por escrito, gestos ou imagens. Por isso, o advogado Rogério Alves considera que este caso tem tutela penal e o primeiro-ministro tem ao seu dispor meios legais para avançar com uma queixa criminal.
"É certo que, estando no universo político, as pessoas são mais suscetíveis a insultos. Mas há limites, e aqui foram claramente ultrapassados, com uma pitada de racismo", observa Rogério Alves.
Caso queira avançar com um processo em tribunal por difamação e injúria, o primeiro-ministro tem de avançar com uma queixa nesse sentido e apresentar uma acusação "que pode ser ou não acompanhada pelo Ministério Público", explica Paulo Saragoça da Matta, ressalvando, contudo, que neste caso em concreto é muito "difícil estabelecer a fronteira do admissível" no âmbito da liberdade de expressão, uma vez que se trata de uma situação de combate político, entre professores e Governo.
"No âmbito do combate político são de admitir comportamentos que, fora desse âmbito, não seriam admitidos", comenta o advogado, comparando a situação com o que acontece numa bancada de adeptos num jogo de futebol, quando "as pessoas no estádio insultam a mãe do árbitro, por exemplo. "É uma manifestação própria do âmbito do futebol que não deve merecer tutela criminal. Não estou a dizer que a política possa adquirir a mesma dimensão, mas, dado que estamos a falar daqueles cartazes no contexto de uma manifestação, tem de se ponderar bem o peso da liberdade de expressão e o das ideias e da luta política, que podem, até certo ponto, atenuar a necessidade de intervenção do direito penal."
Partindo desta análise, Paulo Saragoça da Matta considera que "um tribunal teria muita dificuldade em condenar" alguém por esse crime, uma vez que os tribunais portugueses e o Ministério Público "têm vindo a desvalorizar imenso a tutela da honra", e o próprio Tribunal Europeu dos Direitos do Homem "tem vindo a alargar cada vez mais o campo da liberdade de expressão" a um ponto que o advogado considera "intolerável", uma vez que permite "difamações e injúrias ao abrigo da liberdade de expressão, como se esta fosse um direito ilimitado e absoluto", que, na sua perspetiva, "não o é".
Já Iolanda Rodrigues de Brito acredita que seria "mais premente" promover um debate na esfera pública sobre este tema em concreto, nomeadamente sobre a "normalização dos conteúdos racistas", do que a abertura de processo judicial. "Existem várias incriminações que podem estar em causa, mas, sendo o visado figura pública, parece-me que a promoção do debate na esfera pública sobre a inadmissibilidade democrática da normalização dos conteúdos racistas é mais premente do que um processo judicial", sugere.