O queijo favorito de França enfrenta uma crise de "extinção". Mas nem toda a gente está preocupada

CNN , Xiaofei Xu
9 mar, 10:00
Queijo Camembert

Quando Napoleão encontrou pela primeira vez um queijo Camembert, diz a lenda, ficou tão encantado que beijou a mulher que lhe colocou o queijo à frente. Colocando de lado a inconveniência do gesto, o imperador francês tinha reconhecido claramente um vencedor.

Produzido na região da Normandia, no noroeste da França, em diversas formas desde pelo menos o século XVIII, o queijo - cremoso, picante e pegajoso - é hoje considerado o favorito da França.

É por isso que as manchetes recentes sobre a morte iminente do Camembert por causa de uma crise fúngica causaram o pânico entre os fãs deste queijo histórico. Ao que parece, os cientistas alertaram que os problemas com a produção industrial do queijo francês podem ter consequências a longo prazo para o seu futuro.

O alarme foi dado em Janeiro, quando um estudo recente realizado por cientistas da Universidade Paris-Saclay identificou que o principal fungo utilizado na criação do Camembert e de outros queijos estava cada vez mais escasso, por causa dos métodos de produção industrial utilizados para acompanhar a procura.

E embora isso possa significar problemas para uma variedade de lacticínios, alguns interpretaram que isto significa que o pobre Camembert – que é abundantemente vendido na sua própria caixa de madeira – está a caminho da sepultura.

“Os queijos azuis podem estar ameaçados, mas a situação é muito pior para o Camembert, que já está à beira da extinção”, afirmou o Centro Nacional Francês de Investigação Científica (CNRS, da sigla em francês), no relatório sobre as descobertas. Noutro lugar, outra manchete alertou para uma iminente “crise do queijo”, acrescentando: “reze pelo Camembert!”

As apostas do queijo não poderiam ser maiores. A par com o Louvre, a alta-costura e a Torre Eiffel, o Camembert é um tesouro nacional amado em todo o mundo – tão existencial para os franceses como o existencialismo.

“Qual é a imagem típica da França? Uma garrafa de vinho tinto, uma baguete e um Camembert”, diz Anne-Marie Cantin, queijeira veterana e jurada presidente do concurso francês de Camembert de 2023. “É o nosso queijo nacional.”

Bolor antigo

No centro do problema, está o Penicillium camemberti, um fungo usado na fabricação de queijos que dá ao Camembert sua casca branca e ajuda a desenvolver o rico sabor umami amanteigado do queijo e seu aroma palpável de meias sujas.

Penicillium camemberti está, dizem os cientistas da Paris-Saclay, a enfrentar problemas de reprodução, em grande parte por causa das pressões da produção industrial. Não tanto por causa do desempenho em si, mas antes consequência de um processo assexuado de cultivo de fungos que, devido a uma extrema falta de diversidade genética, está a entrar num vazio.

O camembert e queijos semelhantes, como o Brie, já foram envelhecidos em cavernas ou hâloirs (salas de secagem), onde esporos de bolor que surgiam naturalmente lhes davam cascas azuis ou, às vezes, castanho-amareladas. Na transição do século passado, o Penicillium camemberti foi introduzido, substituindo o bolor natural e criando as cascas brancas uniformes que conhecemos hoje.

“Pensa-se que seja um mutante branco, selecionado a partir da espécie verde-acinzentada Penicillium commune, pela sua cor, no início do século XX”, afirma o estudo da Paris-Saclay.

Infelizmente, ao contrário dos seus homólogos fúngicos que vivem em cavernas, os investigadores descobriram que o Penicillium camemberti tem uma diversidade genética muito baixa e uma capacidade diminuída de reprodução sexual.

“As nossas descobertas levantam questões sobre o uso de um número limitado de cepas clonais no fabrico de queijo, o que tende a levar à degeneração, limitando as possibilidades de melhorias futuras”, afirma o estudo.

De acordo com o relatório do CNRS, isto significa que “agora é muito difícil para os fabricantes obter quantidades suficientes de esporos de Penicillium camemberti para inocular a sua produção de queijo da Normandia”.

Cair e levantar

Camemberts expostos nos seus distintos recipientes de madeira. (Ludovic Marin/AFP/Getty Images)

Não é a primeira vez que o Camembert enfrenta uma crise depois da introdução do Penicillium camemberti. De acordo com o falecido Patrick Lance, um especialista britânico em queijos que escreveu um guia imprescindível sobre o queijo francês, a industrialização e o conflito do século passado quase o eliminaram.

“Duas guerras mundiais e muitos grandes negócios quase levaram o Camembert ao túmulo, exceto no nome”, escreveu ele no livro de 1989, “The French Cheese Book”.

“E este nome foi desprezado pela incapacidade de o proteger contra as massas de distorções fabris pasteurizadas da fórmula, perpetradas em quase toda a França e no estrangeiro.

Para o resgate, em 1982, surgiu a denominação de Appellation d’origine protégée (AOP), o que significava que apenas os queijos produzidos na Normandia poderiam levar o nome Camembert. Isso, no entanto, não impediu mais discussões sobre se o verdadeiro Camembert deveria ser feito com leite cru ou pasteurizado.

A produção de camembert foi industrializada ao longo do século passado para acompanhar a procura pelo popular queijo. (Leitenberger S/Andia/Universal Images Group/Getty Images)

Aqueles que experienciaram as quedas e ascenções do Camembert no passado parecem estar a enfrentar o mais recente problema do queijo com tranquilidade.

“A minha família fabrica Camembert desde 1891, há cinco gerações… Nunca tinha ouvido falar dessa situação antes”, disse Bruno Lefèvre, diretor-geral da Les fromageries de Normandie, uma associação regional de produtores de queijo, à CNN.

“É verdade que os queijeiros travaram batalhas contra o queijo que não tinha aparência branca”, disse Lefèvre, acrescentando que os primeiros lotes de Camembert que o seu pai fez, há mais de 50 anos, eram “azuis, brancos e vermelhos.”

“Já fiz todos os tipos de Camembert, desde os mais tradicionais aos mais industriais, nunca tive problemas com o meu fungo”, disse Bruno Lefèvre.

Mas, pelo que ele entende, a diferença de cor é resultado da pigmentação bacteriana.

“Está ligado a um tipo de bactéria chamada Brevibacterium linens, que tem a capacidade de formar um pigmento laranja. Não é de forma alguma resultado da atividade de fungos”, disse Lefèvre.

A França acolhe atualmente a sua feira anual de queijos em Paris, reunindo os principais produtores de queijo de todo o país. Naturalmente, o desaparecimento dos fungos tem sido um tema muito discutido. Lefèvre diz que as pessoas com quem ele conversou estavam confusas sobre a origem do medo pelo futuro do Camembert.

O camembert é apreciado pelos seus sabores salgados distintos. (Charly Triballeau/AFP/Getty Images/File)

“Este estudo foi amplamente divulgado pelos meios de comunicação. Talvez os investigadores estivessem a tentar fazer com que os queijeiros entrassem em pânico, mas até agora não conseguiram”, acrescentou.

Embora os cientistas mantenham as suas afirmações, sublinham que não há perigo de o Camembert desaparecer tão cedo. “Sempre deixámos claro aos jornalistas que não há perigo a curto prazo para a produção de Camembert”, disse a investigadoraTatiana Giraud à CNN. “O que os nossos artigos dizem é que há uma grande homogeneização dos starters e que isso reduz sua capacidade de adaptação, nada mais.”

Ligação ao queijo americano

Um memorial em homenagem a Marie Harel, uma agricultora da vila de Camembert, no noroeste da França. Há uma estátua em homenagem a Harel também na cidade de Vimoutiers, na Normandia. (Charly Triballeau/AFP/Getty Images/File)

É claro que manter o Camembert vivo também significa que a história do queijo se mantém igualmente viva. Supostamente, foi criado por uma mulher da Normandia chamada Marie Harel, que recebeu ensinamentos de um padre fugitivo de Brie, outro bastião da produção de queijos francesa. Depois de conquistar o favor de Napoleão, passou a desempenhar um papel inesperado na Primeira Guerra Mundial, que foi comemorado com uma estátua.

O monumento a Harel, na cidade de Vimoutiers, na Normandia, foi na verdade construído por um americano, de acordo com a especialista em camembert Anne-Marie Cantin.

“Um médico americano veio primeiro à Normandia após a Primeira Guerra Mundial e pediu para encontrar o túmulo de Marie Harel. Mais tarde construiu-lhe uma estátua”, disse ela.

“Para surpresa dos moradores locais, que lutaram para encontrar alguém que falasse inglês, ele explicou que usou Camembert durante a guerra para curar pacientes e queria vir agradecer ao inventor.”

Todo o queijo do presidente: os olhos do presidente francês Emmanuel Macron apreciam pedaços de Camembert numa feira de queijos em Paris. (Christophe Petit Tesson/Pool/AFP/Getty Images)

Essa estátua foi posteriormente destruída, em 1944, pelo bombardeamento americano, durante o desembarque na Normandia, e foi um grupo de trabalhadores de uma fábrica de queijo de Ohio que fez uma doação para construir uma nova depois da guerra, segundo Cantin.

A estátua ainda hoje está orgulhosamente na praça da cidade de Vimoutiers, na Normandia, com uma placa indicando que é um presente oferecido por “400 homens e mulheres que fazem queijo em Van Wert, Ohio, EUA”.

Outra estátua de Marie Harel fica no Museu do Condado de Van Wert, em Ohio, marcando discretamente uma relação extraordinária e cremosa entre a França e os Estados Unidos.

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