Crime de branqueamento está a aumentar e as empresas na hora "facilitam" a vida aos criminosos

13 nov 2023, 07:00
Preços, dinheiro, euro, inflação, economia. Foto: Marijan Murat/picture alliance via Getty Images

EXCLUSIVO: Os números não enganam. Há cada vez mais dinheiro de origem criminosa, a passar por Portugal. As redes criminosas criam empresas, abrem contas bancárias e são milhões que se perdem numa teia de operações bancárias. Numa entrevista exclusiva, dois responsáveis da Polícia Judiciária, explicam à CNN Portugal como funciona este fenómeno, que não tem fronteiras, e falam dos motivos para o aumento deste crime

Desde 2020 que o crime de branqueamento de capitais está a aumentar. Seja porque há cada vez mais crimes associados ao branqueamento, seja porque as entidades bancárias e autoridades judiciais estão mais eficazes ou seja ainda, porque já há criminalidade organizada que se dedica a lavar o dinheiro de origem ilícita. Ao mesmo tempo, as empresas na hora facilitam a vida aos criminosos, O cenário foi descrito à CNN Portugal por dois responsáveis da Polícia Judiciária.

“Há aqui dois planos muito importantes na área do branqueamento: a área da prevenção e depois a área da investigação, da repressão”, começa por explicar à CNN Portugal Pedro Vicente, Coordenador de Investigação Criminal da Secção Central de Investigação do Branqueamento e Infrações Tributárias (SCIBIT) da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC). A secção que investiga “os crimes de branqueamento quando não se conhece o crime precedente” ou quando branqueamento tem como crime precedente “a fraude fiscal”. Mas há mais secções que se cruzam, e muito, com o branqueamento de capitais como, por exemplo, a do cibercrime.

A nível nacional, os números da Polícia Judiciária espelham o aumento do branqueamento de capitais em Portugal, mas este fenómeno tem vários motivos, garante Pedro Vicente à CNN Portugal. Em 2020, deram entrada 375 inquéritos ao crime de branqueamento. Em 2021 foram 554 inquéritos e, em 2022 foram 680. Sendo que no primeiro semestre de 2023, o número de inquéritos já vai em 498. 

Os dados do Ministério Público, publicados no seu relatório anual, são ainda maiores e provam a mesma tendência: “O número de novos inquéritos pelo crime de branqueamento continua a revelar tendência de aumento, tendo-se registado (em 2022) a entrada de 1.314 novos inquéritos (892 em 2021, 611 em 2020)”.

Empresas na hora “ajudam” os criminosos

O crime de branqueamento “começou por estar associado ao tráfico de estupefacientes e criou-se uma primeira legislação para, no fundo, fazer a investigação do branqueamento e combater este crime”, recorda Pedro Vicente. Agora a realidade é outra: “Foi-se generalizando a todo o tipo de investigação de crime organizado, seja tráfico de estupefacientes, crime organizado, crimes cometidos por meio informático, entre outros”. Este é um dos motivos que explica o aumento dos números, mas não é o único.

Mesmo sem serem a causa do aumento dos números, as empresas na hora “ajudam” os criminosos, admite o Coordenador Pedro Vicente: “Facilitam sim”, assume, explicando: “Normalmente o branqueamento passa por três fases: colocação, circulação e integração. Quando se chega à última fase ‘da integração’ já não se percebe bem de onde é que veio o dinheiro”. 

Por quantos mais países, quantas mais empresas e quantas mais contas o dinheiro passar, mais difícil é chegar a ele. E, na maioria das vezes, assim que entra numa conta, o dinheiro é rápido a sair. E pode sair para outra conta ou ser disperso por várias contas sucessivamente.

“Pela sua natureza o branqueamento quase que pressupõe uma circulação transnacional, para aproveitar lacunas de alguns regimes. O branqueamento para dificultar a investigação, recorre a várias jurisdições. Se passar por um país onde é fácil abrir uma empresa, associar a empresa a uma conta e por aí fora, isso facilita”, refere Pedro Vicente. E esta é uma dificuldade para quem está no terreno, já que há países que nem respondem aos pedidos de cooperação judicial internacional.

Das reuniões que mantém com os homólogos de outros países europeus, Pedro Vicente garante também que Portugal não é um paraíso e que, na Europa, há muitos a sofrerem com este fenómeno. Até porque as empresas na hora também existem em diversos países europeus.

No primeiro semestre de 2023 já foram apreendidos mais de 18 milhões de euros

Outro motivo que pode ajudar a explicar a subida dos crimes de branqueamento prende-se com uma alteração “em 2020 no catálogo de crimes da lei de branqueamento, que veio incluir os crimes informáticos”, explica à CNN Portugal Paulo Gonçalves, Inspetor-Chefe em Coordenação na Secção Central de Investigação da Criminalidade informática e Tecnológica da UNC3T.

E só os números desta secção fazem perceber o peso da mesma nesta criminalidade: “Em 2020, na secção, entraram 98 inquéritos, classificados como branqueamento”, começa por dizer Paulo Gonçalves. “No ano de 2021 subimos para 209. Em 2022 aumentou para 321. No primeiro semestre de 2023 estamos em 360. Esta é apenas uma secção e já temos metade dos processos a nível nacional”. 

E não são poucas as vezes que outras investigações a burlas como “o phishing” tem “associado a jusante o branqueamento”. Nessa altura, acrescenta-se mais um crime sob suspeita à investigação.

Os valores monetários apreendidos no âmbito destas investigações também subiram, pelo menos na seção coordenada por Paulo Gonçalves: “Em 2020 aprendemos cerca 2.500.000 euros. Em 2021 baixámos para 2.000.000. Em 2022 aumentámos para 11.350.000 e, em 2023, vamos em 18.500.000 de valor apreendido”.

É impossível saber quanto dinheiro já passou por Portugal. Os crimes são cometidos além-fronteiras e, depois, são usadas empresas criadas no país e contas bancárias para fazer circular o dinheiro. O dinheiro entra, mas sai rapidamente. É por isso que Paulo Gonçalves ressalva que o valor apreendido pelas autoridades “é uma pequeníssima parte do valor transacionado”. Na verdade, nem os criminosos querem ter “muito dinheiro nas contas” porque sabem que “pode ser apreendido”.

Quando surgem suspeitas, por norma, as contas “são suspensas” e já não é possível mexer naquele valor “para evitar dissipação dos fundos”. Quando existem “indícios do crime” o valor acaba por ser apreendido.

Na verdade, o que sabem as autoridades no primeiro momento perante uma suspeita? “Sabemos o banco, nos extratos bancários detalhados aparece o banco, mas não sabemos a origem ilícita do dinheiro. Veio da Colômbia. Mas o que é que aconteceu a este dinheiro?”, exemplifica o inspetor-chefe.

“Se é suspeito há uma suspensão. Se eu conseguir demonstrar que aquela empresa é uma empresa fachada, porque não tem atividade” fica por saber a origem da verba. Se o dinheiro entra num país “com uma capa e essa capa não é verdadeira, há fortes indícios de que a origem é ilícita”, clarifica.

“A forma mais eficaz de acabar com o cibercrime, é não ter a internet”

“O crime informático aumentou e o uso dos sistemas informáticos é perfeito. É fácil para o financiamento de organizações terroristas”, explica Paulo Gonçalves. E às vezes, as autoridades até sabem que há organizações “ a atuar”, por exemplo, no “Benin” ou na “Nigéria. 

As investigações e cooperações com a Europol e a Interpol permitem ir reunindo informação: “Tudo ligado ao cibercrime, que depois vai financiar o terrorismo regional”. E o cibercrime evoluiu. Longe vão as “cartas da Nigéria”, como eram conhecidas. Agora existe o “Romance Scam, a CEO fraude ou o Business E-mail Compromise”. E estes são apenas dois exemplos de dois países, mas a realidade é muito mais vasta e percorre vários continentes.

Paulo Gonçalves lembra que “a empresa na hora, é um instrumento que foi criado no sentido de agilizar as questões comerciais e muitos os países têm”. “Tentar impedir isso é como impedir o homebanking mesmo havendo ‘phishing’ todos os dias”.

E com alguma ironia diz: “A forma mais eficaz de acabar com o cibercrime, é não ter a internet. É acabar com a internet”. Por isso, defende que o futuro passa por educar “o cidadão comum”.

“A informática teve uma evolução que foi muito rápida. E nós, com as nossas prioridades, não acompanhámos a evolução. Se falarmos com os jovens de 10 anos, 15 anos, isto é perfeitamente normal. Eles não são alvos de burlas como nós somos. Também tem a ver com questões geracionais”, explica.

Mesmo que as empresas na hora estejam a facilitar a vida a quem vive do crime, o que se precisa são de “mecanismos” de defesa e deteção e “de facto, os bancos cada vez estão mais alerta”. E garante que há países piores. No que diz respeito a ‘money mules’ (pessoas cuja identidade é usada na criação de empresas e contas bancárias) o “Reino Unido é pior”. Sendo que “Espanha e França” também. Mas há outros.

“O estrangeiro, em regra, usa documentos falsos”

Nos últimos anos foram detidas dezenas de pessoas em Portugal, algumas de nacionalidade estrangeira. Em 2020, houve 15 detenções e seis eram estrangeiras. Em 2021, foram oito e duas eram de outras nacionalidades. Em 2022, o número chegou às 66 detenções (46 eram estrangeiros), devido a uma grande operação levada a cabo pela Polícia Judiciária. Em 2023, no primeiro semestre já houve 15 detenções, com seis pessoas de outras nacionalidades.

E as nacionalidades estrangeiras são sempre um problema. Porquê? “Porque o estrangeiro, em regra, usa documentos falsos”, explica Paulo Gonçalves. E nem todas as entidades são capazes de detetar documentos falsos como, por exemplo, os bancos. "Dependendo do tipo de falsificação muitas vezes só se consegue provas “em laboratório”.

Outro aspeto relevante no branqueamento é o surgimento de organizações criminosas cuja função é unicamente o branqueamento de capitais. “Este fenómeno já foi identificado pela Europol, por nós” e também por outras polícias. Chama-se “crime as a service”.

Eles chegam ao país, “constituem uma empresa na hora, a seguir abrem contas bancárias, os fundos começam a circular passado um mês, mais ou menos”, explica Paulo Gonçalves. “Eles já não estão cá, naturalmente”. 

Na verdade, já há um “investimento muito grande por parte das organizações", refere, continuando: "É muito grande porque é um investimento na deslocação, alojamento, no pagamento, na compra dos documentos”. O mundo do crime vai-se especializando: “Em França, por exemplo, há organizações já identificadas, que se dedicam à construção de documentos falsos”. E quanto mais especializadas, melhor a qualidade.

“Portugal foi quem apreendeu mais dinheiro”

Nada melhor do que um exemplo, de uma investigação, na qual a PJ participou e foi determinante para o bom resultado: “Portugal foi o que contribuiu para a identificação, não é que nós fôssemos melhores ou piores, mas contribuímos com informação na hora que permitiu chegar aos franceses, que também nós queríamos”.

Paulo Gonçalves refere-se à Operação “SEFRICIME 2.2”, levada a cabo no início deste ano, e que desmantelou uma rede internacional que se dedicava ao branqueamento de fundos provenientes do cibercrime.

A organização era composta por cidadãos estrangeiros e foi responsável pelo branqueamento de mais de 38 milhões de euros. Por Portugal passaram seis milhões de euros, mas só foram apreendidos três milhões. Mesmo assim, o inspetor-chefe garante que fomos o país “que mais dinheiro apreendeu”.

Através da burla CEO ou BEC Fraud conseguiam induzir as vítimas a transferirem avultadas quantias monetárias para contas bancárias abertas em Portugal, em nome de empresas fictícias, algumas constituídas com recurso a documentação falsa. Ao todo, o grupo constituiu quatro empresas, abriu 17 contas bancárias em diferentes Instituições, recorrendo a três identidades falsas. As vítimas da organização eram empresas e pessoas singulares residentes em França.

Paulo Gonçalves recorda que parte do grupo esteve em Portugal "cerca de uma semana" para "abrirem as empresas" e foi possível "reconstituir o seu percurso no país".

Também este ano, PJ participou numa outra operação internacional onde mais de 30 pessoas foram detidas em Portugal, 1,4 milhões de euros apreendidos e 50 contas bancárias foram congeladas. Esta operação internacional de combate ao crime organizado na África Ocidental, denominada "JACKAL", teve como alvo a organização criminosa Black Axe, de estilo mafioso e conhecida por fraudes financeiras .praticadas por meios informáticos e branqueamento de capitais.

A importância dos bancos e das Unidades de Investigação Financeira

Mas antes da Polícia Judiciária entrar em ação, é o sistema de alerta dos bancos que deteta possíveis situações e as Unidades de Informação Financeira que avaliam a informação que lhes chega. Seja destas instituições, seja de outras, cuja lei prevê que perante determinadas situações, comuniquem as mesmas. Como, por exemplo, notários ou agências imobiliárias. Esta é considerada a fase de prevenção.

As Unidades de Informação Financeira (UIF) “são autónomas” e têm acesso a mais informação, por norma sujeita a sigilo, que, por exemplo, a Polícia Judiciária não tem, explica à CNN Portugal Pedro Vicente, Coordenador de Investigação Criminal da Secção Central de Investigação do Branqueamento e Infrações Tributárias (SCIBIT) da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC).

A informação apurada pela UIF não chega na totalidade a quem está no terreno. Pela lei, a PJ só pode aceder a essa informação após autorização judicial. Após avaliar a informação, as UIF elaboram um relatório que enviam para o Departamento de Investigação e Ação Penal (DCIAP), que decidirá se abre ou não um inquérito.

Nos últimos anos, os próprios bancos reforçaram as áreas de ‘compliance’, que é responsável pela primeira análise “de uma operação financeira suspeita”, seja “depósito, transferência, o que for”, porque criaram “níveis de alerta”. 

Se detetam “fenómenos de entradas em numerário, por exemplo, significativas. Fenómenos de transferências para certos paraísos fiscais e depois, logo a seguir, saídas. Têm ali alguns parâmetros, algumas ferramentas e quando detetam uma operação suspeita têm a obrigação de comunicação no âmbito do regime de prevenção”, esclarece Pedro Vicente.

Para uma luta ainda mais eficaz contra o branqueamento de capitais, para este responsável dotar de mais elementos e ferramentas a UIF seria importante. Sem esquecer também um reforço da Polícia Judiciária. 

Mas antes dos bancos, ainda há outra entidade que pode fiscalizar as empresas quando começam a sua atividade: a Autoridade Tributária. A CNN Portugal falou com Nuno Barroso, Presidente da APIT - Associação Sindical dos Profissionais da Inspeção Tributária e Aduaneira, que explicou a importância da AT na luta contra o branqueamento de capitais: é preciso uma “fiscalização mais ativa no terreno”. 

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