“A esquerda quer consertar o sistema e a ultradireita quer afundar o sistema. Daí que a direita leve uma enorme vantagem”: um mês de Javier Milei, que “não é louco nem pirata”

10 jan, 07:00
Milei motosserra eleições Argentina (Tomas Cuesta/Getty Images)

Há traumas que não passam: “O argentino médio viveu uma experiência ultradramática em 2001 que está colada à pele dele - chamam-lhe ‘o corralito’: quando foi levantar dinheiro do banco, em vez da poupança de 100 mil dólares tinha 5 mil”. Sendo assim: “Se tens dinheiro extra na Argentina, compras dólares e guardas esse dinheiro num cofre em casa ou fora do país”. E isto vem a propósito de quê? Disto: ao final do primeiro mês no poder, o novo presidente da Argentina, Javier Milei, já desvalorizou o peso em mais de 50% face ao dólar, tentou aplicar uma vasta reforma laboral já suspensa por um tribunal e aguarda que deputados e senadores, a quem chama “idiotas úteis”, debatam um polémico pacote legislativo para desregular a economia, alterar as regras eleitorais e criar as bases para a sua almejada dolarização. Consequência: está em curso “uma luta de classes” - que tem um episódio crucial marcado para 24 de janeiro

Foi o ministro da Economia de Javier Milei quem o explicou, logo após a tomada de posse do novo presidente da Argentina a 10 de dezembro. “Recebemos um doente nos cuidados intensivos e primeiro temos de o tirar dos cuidados intensivos, não podemos mandá-lo praticar desporto no dia seguinte”, disse Luis Caputo. “Estamos a fazer o que é preciso e a única coisa que era possível fazer. O ponto de partida é controlar este caos e [a dolarização da economia] é a meta.”

O doente: a Argentina. O diagnóstico: uma profunda crise económica e financeira, cíclica na história moderna de um país que, sendo o maior exportador mundial de soja processada e largamente dependente da produção agrícola, viu o setor cair a pique em 2023 após três anos de seca severa e a inflação galopar até aos 160%. O tratamento: uma “terapia de choque”, nas palavras do próprio Milei, que já está a abalar a Argentina e a fazer ondas na América Latina – e que o presidente quer que culmine com a dolarização da economia.

“A Argentina vai suportar pelo menos seis meses de números económicos muito difíceis antes de o panorama melhorar”, antecipa Ryan C. Berg, diretor do programa Américas do Center for Strategic and International Studies (CSIS). “Milei tem um forte mandato de mudança junto da opinião pública neste momento, mas eventualmente os sindicatos e outros grupos alinhados com o partido esquerdista peronista vão testar a sua popularidade e pôr areia nas engrenagens da reforma.”

Nildo Domingos Ouriques, presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (IELA-UFSC), concorda. “A Argentina vai arrastar-se nesse diapasão por mais tempo e tudo vai depender do pulsar da crise global e sobretudo da crise no país”, diz o economista brasileiro. “Não importa o que Milei quer, entre aspas, o que importa é o que o processo político e social admite. E aí Milei vai encontrar imensas dificuldades.”

"A ira da população" que apoia Milei

As dificuldades já começaram a surgir. Na semana passada, a Câmara Nacional do Trabalho, o principal tribunal laboral argentino, deu razão à Central Geral de Trabalhadores e suspendeu a reforma do setor prevista no amplo Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) que Milei apresentou 10 dias após tomar posse. Sob esse decreto, que dá amplos poderes ao presidente, o país ficaria sob emergência pública económica e financeira até 31 de dezembro de 2025, prazo que poderia ser prorrogado pelo executivo por mais dois anos, até ao final do atual mandato. 

O megadecreto, que altera ou revoga mais de 360 leis de diferentes setores, incluindo o tributário e o eleitoral, prevê uma liberalização do mercado de trabalho, com o aumento do período de contratos à experiência de três para oito meses, limites ao direito à greve, a participação em manifestações como motivo legal para despedimentos, o fim das penalizações para empresas que façam contratos irregulares, o alargamento da jornada de trabalho até 12 horas diárias e mudanças no sistema de indemnizações a trabalhadores. 

O governo já prometeu recorrer da decisão, o que significa que o decreto vai seguir para o Supremo Tribunal. Reagindo à suspensão da reforma, Milei veio classificar os opositores como “idiotas úteis” - fê-lo numa entrevista à rádio Mitre de Buenos Aires. “Chamamos o DNU 'decreto de libertação': é pró-mercado, elimina os vícios da política, os disparates, mas os idiotas úteis concentram-se nos métodos”, acusou o presidente, no passado fim de semana.

As dificuldades também estão à espreita no Congresso, que esta semana começa a debater o pacote legislativo que Milei enviou aos deputados e senadores há uma semana, contendo 664 normas, entre as quais a privatização de 41 empresas estatais de setores-chave, a introdução de um imposto abrangente de 15% sobre a maioria das exportações, amnistias fiscais para os argentinos que queiram repatriar bens não declarados (como ações, criptomoedas e dinheiro), o fim dos limites sobre os títulos soberanos emitidos no estrangeiro e a eliminação de parte das condições para a reestruturação da dívida.

“Ao emitir um decreto maciço e ao forçar o Congresso a votá-lo, Milei pode pintar o Congresso como obstrucionista, obrigando-o a enfrentar a ira da população que apoia o seu mandato pela mudança”, defende à CNN Portugal Ryan Berg, sublinhando que “muitas partes da reforma, como as alterações ao sistema eleitoral, requerem maiorias absolutas, o que pode desacelerar o seu movimento no Congresso”.

Neste momento, a coligação de extrema-direita de Milei, A Liberdade Avança, controla apenas 15% dos assentos na câmara baixa (38 de 257) e o presidente conta com o apoio de cerca de metade da bancada da coligação de direita Juntos pela Mudança (JxC), pelo que precisa de angariar mais apoios para ver as reformas avançar. Se isso acontecer, a proposta segue para o Senado, onde o governo está ainda mais enfraquecido, com cerca de 10% dos assentos (oito de 72 senadores) – é um Congresso onde nenhuma força política tem maioria e onde o peronismo continua a ser a maior das minorias. E o presidente já prometeu levar as suas propostas a referendo se não encontrar respaldo nos congressistas (embora seja necessária uma maioria parlamentar para avançar com consultas populares). 

Questionado se é do interesse dos peronistas que Milei dê a cara por uma consolidação fiscal necessária mas previsivelmente impopular, pagando o preço político de o fazer, Nildo Ouriques não discorda. “Em alguma medida, isso é verdade, foi essa a política sob a administração de Maurício Macri, que contava com apoios peronistas no Congresso. Todos os planos de ajuste, o recorrer ao endividamento externo junto do Fundo Monetário Internacional (FMI), nunca tiveram o voto contrário do peronismo, há algo de continuidade aqui. Aqui no Brasil não houve nenhuma mudança de Paulo Guedes para Fernando Haddad e na Argentina tampouco.”

Mas de que forma se pode vislumbrar uma vitória do presidente num Congresso tão dividido? “O partido decisivo será o dos chamados 'radicais', alguns dos quais apoiam Milei, que ainda é popular junto do povo e que tentará usar essa popularidade contra membros do Congresso que votem contra as suas reformas”, responde Berg. “Ter maioria ou não é o último critério, tal como na Europa”, contrapõe Nildo Ouriques. “No Brasil, Lula não tem maioria e não tem nenhum problema, tudo o que é do interesse da classe dominante passa.”

“Dólar: história de uma moeda argentina”

Antes do anúncio de reformas, Milei e Caputo decidiram desvalorizar de imediato o peso argentino em 54% face ao dólar, um passo inicialmente aplaudido pelo FMI como “audacioso” – a quem o país deve 44 mil milhões de dólares – e que visa “reconstruir o potencial económico do país”, mas que ao final de um mês está a começar a preocupar os mercados, com a desvalorização do peso a pôr em foco as políticas monetárias que Milei vai ou não seguir. 

Em particular, as atenções externas estão debruçadas sobre o plano do banco central de continuar a desvalorizar a divisa a uma taxa de 2% por mês, o que leva a mais aumentos de preços, como os argentinos já estão a sentir na comida e nos transportes públicos, com óbvios efeitos na inflação, que este ano poder ultrapassar os 200%.

Desde 2019, a Argentina tem mantido a sua divisa artificialmente forte, controlando de forma estrita o movimento de dinheiro, o que ajudou a impulsionar a procura por dólares norte-americanos no mercado informal e o peso a ser negociado a uma taxa muito mais baixa do que a oficial. Como explicam Mariana Luzzi e Ariel Wilkis num livro ironicamente intitulado “Dólar: história de uma moeda argentina”, é já uma velha máxima a de que, quando acordam todas as manhãs, os argentinos procuram três informações essenciais: o clima, o trânsito e a cotação do dólar.

“O dólar americano sempre foi visto pelos argentinos como um armazenador de valor, calcula-se que os argentinos têm as maiores poupanças do mundo em dólares entre os países não-dolarizados”, explica Ryan C. Berg. “Se tens dinheiro extra na Argentina, compras dólares e guardas esse dinheiro num cofre em casa ou fora do país. Informalmente, o dólar circulou lado a lado com o peso num tipo de sistema quase dual durante algum tempo.” 

Por outras palavras, “os preços muitas vezes são definidos com os dólares em mente, e muitos argentinos com poupanças dolarizadas convertem essas poupanças em pesos e depois gastam-nos para evitarem ter pesos durante demasiado tempo, dadas as preocupações com a inflação”, adianta Berg. “Durante anos, os argentinos têm oscilado entre essas duas mentalidades: pagar em pesos mas pensar em dólares e comprar dólares para se protegerem da inflação.”

A experiência económica sustentada na desvalorização do peso já tinha sido testada nos anos 1990, face a um outro episódio de recessão e hiperinflação na Argentina, quando o governo fixou a taxa de câmbio de um peso por dólar. Esta estratégia de convertibilidade, aplicada pelo então ministro da Economia Domingo Cavallo sob a presidência de Carlos Menem, foi abandonada em 2002, após uma profunda recessão e violentos protestos contra as restrições ao levantamento de dinheiro. “O argentino médio viveu uma experiência ultradramática em 2001 que está colada à pele dele - a crise da convertibilidade, a que os argentinos chamam ‘o corralito’: quando foi levantar dinheiro do banco, em vez da poupança de 100 mil dólares tinha 5 mil, houve um empobrecimento em massa”, recorda Nildo Ouriques.

Para responder à crise, Eduardo Duhalde, presidente da Argentina entre 2002 e 2003, abandonou o plano de dolarização de Menem e optou por desvalorizar o peso – que atingiu os 200% e que permitiu exportações mais lucrativas e o aumento da atividade económica privada, mas que se saldou num custo de vida cada vez mais elevado. 

Mais de duas décadas depois, cerca de 40% da população argentina vive hoje na pobreza e os atuais planos de Milei não vão dar resposta ao problema, nem mesmo com medidas que já aprovou em modo panaceia, como o aumento da assistência estatal às famílias com menos recursos e a subida em 50% do cartão-alimentação para os mais pobres. É por isso, e pelo que os sindicatos e movimentos sociais dizem ser o seu declarado ataque aos direitos dos cidadãos, que o primeiro mês da presidência Milei tem sido marcado por vários protestos por todo o país – alguns já concretizados, outros ainda por vir.

Na senda da desregulação económica, Milei quer ir ainda mais longe do que Menem, mas, para Nildo Domingos Ouriques, a promessa de acabar com o banco central é uma “bobagem” que não merece comentário – “todo o mundo sabe que o banco central é a casa do rentismo, é como a classe média alta, os latifundiários, a burguesia, colocam o dinheiro fora do país” – e “a dolarização da Argentina é tão possível quanto eu tornar-me primeiro-ministro de Portugal”.

Num artigo de opinião publicado após a tomada de posse de Milei, o codiretor do Center for Economic and Policy Research em Washington já alertava que, apesar de os argentinos estarem a pagar um elevado preço pelos erros da administração Macri, “uma abordagem económica suicida e tresloucada só vai piorar as coisas – e como a Argentina já experienciou, as coisas podem ficar ainda piores”.

Ryan C. Berg é menos fatalista, mas concorda que “a questão da dolarização é inviável até que a estabilidade necessária no plano macroeconómico tenha sido alcançada no curto e médio prazo”. Mas para isso seria necessário a Argentina ter dinheiro – e, neste momento, as reservas de dólares do banco central já serão praticamente nulas. 

“Os países devem ter cuidado ao abdicar da sua liberdade de fixar as próprias taxas de câmbio e desvalorizar as suas divisas”, escrevia o editor de economia do Guardian em novembro, no rescaldo da eleição de Milei. “Mesmo que uma solução seja encontrada para os problemas técnicos decorrentes de abandonar o peso, o tratamento de choque de Milei pode rebentar-lhe na cara de forma relativamente rápida. A dolarização é uma estrada de sentido único, uma jogada política sem saída que pode prender a Argentina a um caminho insustentável e levar ao colapso da economia.”

“Essa tendência do Ocidente de os tratar como loucos – a Bolsonaro no Brasil, a Meloni em Itália, a Milei – é uma bobagem”

O liberalismo de Milei não é uma novidade na segunda maior economia da América do Sul. “Tem raízes profundas na Argentina, que nasce sob a condução liberal de Juan Bautista Alberdi no século XIX e toda a formação social está baseada nesse liberalismo, com exceção do período peronista”, explica Ouriques, para quem o ultraliberalismo de Milei (autoproclamado anarco-libertário) “é só uma forma radicalizada do liberalismo clássico” a que os argentinos estão habituados.

O economista brasileiro, que em tempos viveu em Buenos Aires, reconhece que “há uma necessidade objetiva” de reformular a economia argentina, até porque o país “renunciou há décadas à industrialização, pelo que não tem tido outra forma senão estafar o Estado através de um sistema de dívidas que foi a lógica não só de Macri e agora de Milei, mas também dos peronistas Alberto e Cristina Kirchner”.

Nesse contexto, Ouriques faz questão de destacar que “Milei não é um louco nem um pirata” como muitos media o pintam – inclusive numa biografia não-autorizada acabada de chegar aos escaparates, da autoria de Juan Luis González e intitulada “El Loco”. A sua vitória nas eleições com quase 56% dos votos, bem acima do que as sondagens previam, “corresponde a forças concretas que existem na Argentina, e essa tendência do Ocidente de os tratar como loucos – a Bolsonaro no Brasil, a Meloni em Itália, a Milei – é uma bobagem”, porque ignora os movimentos que levaram à subida de popularidade de figuras antissistema, explicada pela “incapacidade da esquerda liberal de cumprir as suas promessas”, em particular na América Latina. “A esquerda quer consertar o sistema e a ultradireita, o ultraliberalismo, quer afundar o sistema, essa é a contradição. Daí que a direita leve uma enorme vantagem.”

Antigo instrutor de sexo tântrico, o atual presidente saltou da relativa obscuridade sustentado por uma agenda explosiva que, para Ryan Berg, pretende “sinalizar que a Argentina está interessada em alinhar-se geopoliticamente com o Ocidente”, num sentido contrário ao de vários países latino-americanos, o que ajuda a explicar o cumprimento de outra promessa de campanha no arranque de 2024. “Milei já tinha dado a entender que a Argentina não ia juntar-se aos BRICS e o anúncio da ministra [dos Negócios Estrangeiros, Diana] Mondino foi o cumprimento dessa promessa”, explica o politólogo do CSIS. 

“Os BRICS emergiram como uma organização de topo que quer agrupar países do chamado sul global contra organizações multilaterais que veem como exclusionárias e incapazes de responder aos desafios” – pelo que a não-entrada da Argentina no clube, como era suposto ter acontecido este mês, “oferece ao Ocidente uma oportunidade de alinhamento geopolítico em questões como minerais críticos, exploração espacial, cooperação no setor da defesa e mais investimento – se o Ocidente quiser aproveitar essas oportunidades”, acrescenta Berg.

Para Nildo Ouriques, este é um ponto “sem importância”, até porque “Milei depende de uma coisa só – da bolsa de valores dos produtos agrícolas e minerais, sobretudo os agrícolas. Estar nos BRICS significa nada para o Brasil, imagine para a Argentina, significa menos ainda”. 

Mais importante, indicam os dois analistas, e ainda menos provável é o líder argentino vir a cumprir a promessa de suspender as trocas comerciais com a China. “Não penso que Milei vá ser capaz de o fazer com aquele que é o mercado de destino para tantas das mercadorias argentinas”, defende Berg. “Apesar de querer certamente desviar as relações com a China para o Ocidente, o pragmatismo e a dura realidade só lhe permitirão chegar até um certo ponto – pelo menos enquanto a economia argentina estiver ligada às máquinas.” 

Ouriques é mais contundente – “Milei simplesmente não o pode fazer”. Durante a campanha, o excêntrico candidato empunhou uma motosserra para demonstrar o seu empenho em cortar impostos. Quando Milei anunciou as suas primeiras propostas legislativas, Carlos Melconian, candidato a ministro da Economia pela coligação JxC, acusou-o de trocar a motosserra pelo liquidificador. À CNN Portugal, o economista brasileiro apoia-se nessa analogia para declarar: “No que toca à China, a motosserra já saiu e o liquidificador também, Milei quer é um jantar à luz das velas”.

Kari, a Moisés

Não entrar nos BRICS não foi a única promessa que Milei já concretizou. A destacar há a lei antinepotismo que anulou assim que chegou à Casa Rosada, para poder nomear a irmã secretária-geral da presidência. Não foi portanto de estranhar que, ao entrar pela primeira vez no palácio presidencial após tomar posse, se tenha feito acompanhar não da mulher e agora primeira-dama, a atriz Fátima Flórez, nem da sua vice-presidente, Victoria Vilarruel, mas de Karina, ou Kari, como lhe chama.

No livro “El Loco”, González refere que Kari é muito mais do que a assessora do irmão – além de gerir a sua agenda, desde os tempos em que Milei era deputado, é ela que decide quem tem acesso ao presidente e até o que o chefe de Estado deve vestir em cada ocasião. “Moisés era um grande líder, mas não era um grande comunicador, então Deus enviou-lhe Araão”, declarou o agora chefe de Estado há alguns anos. “Kari é Moisés e eu sou o seu porta-voz.”

Kari Milei, a que os argentinos chamam "El Jefe" pelo seu poder de influência sobre o irmão, é tida como a atual copresidente da Argentina

Tal como a primeira-dama Evita Perón foi fundamental na construção do movimento populista de esquerda que definiu a política argentina durante décadas, sob o qual as mulheres passaram a ir às urnas (desde 1947) e os trabalhadores passaram a ter férias pagas, Kari é hoje vista como a grande estratega das políticas ultraliberais de Milei. Mas ao contrário de Evita, que se assumiu como a voz dos marginalizados e deu a cara pelo projeto peronista, é raro Kari dar entrevistas ou falar em público.

Sob o cargo de secretária-geral da presidência, equiparado ao de um ministro, a irmã de Milei é responsável por desenvolver políticas públicas, escrever discursos e gerir as relações da Casa Rosada com a sociedade civil. É por isso que vários analistas a veem como copresidente da Argentina, a trabalhar nas sombras para concretizar as promessas do irmão, da mesma forma que ajudou a lançar o movimento que viu Milei chegar à presidência.

A dúvida, que pode ou não ser esclarecida nos próximos tempos, é até que ponto “El Jefe”, como também chamam a Karina, irá gerir as profundas disputas políticas e sociais que estão a perfilar-se na Argentina à sombra dos projetos com pés de barro que Milei pretende implementar.

24 de janeiro

Para os analistas ouvidos pela CNN Portugal, no balanço do primeiro mês da presidência Milei as notícias de uma revolução económica na Argentina são manifestamente exageradas, pelo menos para já e mesmo diante da sua “terapia de choque”. Mas isso não significa que todas as reformas vão ficar pelo caminho. 

“O que eu quero é saber o que ele vai fazer com a dívida, agora que está a seguir exatamente as medidas já tramadas por Alberto e Cristina [Kirchner], e várias dessas reformas vão avançar”, postula Nildo Ouriques, dando como exemplo o “problema dos alugueres”, num mercado de arrendamento sem regulação estatal e onde os proprietários preferem deixar casas vazias a arrendá-las em pesos (neste momento, calcula-se que uma em cada sete casas da capital está vazia).

A necessidade de reformas económicas e fiscais é consensual, até porque, destaca Berg, “uma Argentina com melhores perspetivas económicas e um conjunto melhor de políticas macroeconómicas pode contribuir muito para a estabilidade e crescimento” da América Latina. No caminho certo, o país “pode ser um fornecedor mundial de colheitas fortes e garante de segurança alimentar, podia exportar petróleo e gás para o resto do mundo e podia tornar-se uma base de importantes cadeias de abastecimento de veículos elétricos, dados os seus vastos depósitos de lítio”, explica o analista. 

Esse cenário continua longínquo para já e tudo vai depender da pressão popular nas ruas, num país com profundas raízes sindicalistas. Como indica Nicolás Saldías, da Economist Intelligente Unit para a América Latina, muitas das reformas propostas por Milei vão ser profundamente impopulares, sobretudo entre os argentinos das classes mais baixas, e devem conduzir a agitação social liderada pelos poderosos sindicatos e movimentos sociais do país. “Como resultado, a política deve ficar altamente polarizada e divisionista nos próximos meses, o que deve resultar numa curta lua de mel para Milei.”

Para Nildo Ouriques, a data-chave que vai definir o futuro próximo dos argentinos é 24 de janeiro, dia de greve geral na Argentina. “A configuração do Congresso Nacional está sob duas pressões: a da grande riqueza e a pressão nas ruas. Coloque atenção no alcance da greve, isso pode mudar o humor dos parlamentares”, avisa o economista brasileiro. “O Congresso move-se de acordo com a opinião pública – mais concretamente, na minha interpretação, de acordo com a luta de classes – e várias das medidas vão ser barradas no Congresso de acordo com a contundência da greve geral."

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