O mundo conseguiu combater um poluente perigoso. Mas será que acidentalmente aqueceu o planeta durante o processo?

CNN
14 abr, 22:00
Nuvens longas e estreitas chamadas "rastos de navios" destacam-se no pano de fundo de nuvens marinhas sobre o Oceano Pacífico Norte, a 26 de agosto de 2018. Estas nuvens distintas formam-se quando o vapor de água se condensa em torno de pequenas partículas emitidas pelos navios nos seus gases de escape. Lauren Dauphin/Observatório da Terra da NASA//MODIS data from LANCE/EOSDIS Rapid Response

Os enormes navios de carga que navegam nos oceanos deixam por vezes "pegadas" no seu rasto: nuvens longas e estreitas que se arrastam pelo céu e duram, no máximo, alguns dias antes de desaparecerem.

Estas nuvens fantasma são bonitas, mas são um sinal visível de poluição atmosférica mortal. Formam-se quando minúsculas partículas de dióxido de enxofre expelidas pelas chaminés dos navios interagem com o vapor de água na atmosfera, criando nuvens baixas e altamente refletoras.

A poluição por enxofre dos navios causa dezenas de milhares de mortes prematuras por ano. Mas, no que pode parecer uma reviravolta cruel - especialmente por parte de uma indústria responsável por cerca de 3% das emissões globais de gases com efeito de estufa - este tipo de poluição também ajuda a arrefecer o planeta, iluminando as nuvens e refletindo a energia do sol para longe da Terra.

Por isso, quando em 2020 a Organização Marítima Internacional (OMI), o organismo das Nações Unidas que regula o transporte marítimo, reduziu em 80% o teor de enxofre permitido no combustível dos navios, foi uma vitória para a saúde humana. Estima-se que serão evitadas 30.000 mortes prematuras por ano.

Mas foi "uma nuvem de prata com um revestimento negro", disse Michael Diamond, professor assistente do Departamento de Ciências da Terra, Oceano e Atmosfera da Universidade do Estado da Florida, nos Estados Unidos. A regulamentação pôs fim a um vasto e acidental projeto de geoengenharia. As trajetórias dos navios diminuíram drasticamente e, com elas, o impacto da poluição no arrefecimento.

À medida que as temperaturas globais sobem, os cientistas tentam perceber se estas regras de navegação podem estar, inadvertidamente, a alimentar uma aceleração alarmante do aquecimento global - uma hipótese controversa que tem dividido alguns especialistas.

É um debate que se tornou mais urgente devido ao calor recorde do ano passado. "Os cientistas estão espantados com o facto de 2023 ter sido um ano atípico", afirmou Olaf Morgenstern, cientista do Instituto Nacional de Investigação da Água e da Atmosfera da Nova Zelândia.

O calor foi especialmente acentuado nalgumas partes dos oceanos, onde as temperaturas da água em áreas como o Atlântico Norte subiram.

Os cientistas afirmam que o aumento da temperatura global foi impulsionado principalmente por dois fatores: o impacto do El Niño, um fenómeno meteorológico natural que tende a ter um impacto no aquecimento global, combinado com o contexto do aquecimento global a longo prazo causado pela queima de combustíveis fósseis.

Mas alguns especulam que o calor aumentou de forma tão anormal que outras influências podem também estar em jogo. As teorias incluem a falta de poeira do Saara que reflita a luz solar, uma mudança nos padrões de vento e a erupção do vulcão submarino Hunga Tonga-Hunga, em janeiro de 2022, que introduziu na atmosfera vapor de água suficiente para encher 58.000 piscinas olímpicas.

No entanto, de todas as teorias, o impacto da regulamentação do transporte marítimo está a tornar-se rapidamente uma das mais debatidas. Há muito que os cientistas sabem que a redução da poluição por estas partículas tem um efeito de aquecimento, mas em que medida "é onde começa a controvérsia", apontou Morgenstern.

Em novembro, James Hansen, cientista de renome no domínio do clima, foi coautor de um artigo que defende que a redução da poluição causada pelo transporte marítimo é o principal fator de uma aceleração alarmante do aquecimento global que vai além do que os modelos climáticos previram.

Os regulamentos da OMI relativos à navegação foram "uma experiência científica não intencional", indicou Hansen à CNN. A sua investigação previu que as temperaturas globais ultrapassariam 1,5 graus Celsius de aquecimento acima dos níveis pré-industriais na década de 2020 e 2 graus na década de 2050, um nível catastrófico de aquecimento que poderia desencadear uma série de pontos de viragem climática.

Mas outros cientistas apelaram à prudência, até porque a relação entre as partículas poluentes e as nuvens é extremamente complexa. Desvendá-la é "um dos maiores desafios da ciência climática ", sublinhou Diamond.

Já para Piers Forster, professor de física climática na Universidade de Leeds, no Reino Unido, a redução da poluição causada pelo transporte marítimo terá provavelmente uma influência muito pequena no aquecimento.

De acordo com os cálculos de Forster, a regulamentação aumentará o aquecimento global em cerca de 0,01 graus Celsius, que poderá aumentar para cerca de 0,05 graus até 2050, o equivalente a cerca de dois anos adicionais de emissões provocadas pelo homem.

No entanto, acrescentou, o efeito incerto da poluição nas nuvens significa que existe a possibilidade de o impacto do aquecimento ser muito maior - mais 0,1 ou 0,2 graus até 2050.

Diamond, cujo próprio trabalho estima que os regulamentos trarão níveis de aquecimento nas próximas décadas entre 0,05 e 0,1 graus, disse que este calor não será "um fator marcante", mas é importante. Cada fração de grau é importante à medida que o mundo se aproxima de níveis de aquecimento aos quais até os humanos terão cada vez mais dificuldade em adaptar-se.

Tal como a maioria dos outros cientistas com quem a CNN falou, Diamond não acredita que a redução da poluição marítima tenha sido um fator importante para o aquecimento global do ano passado, até porque, normalmente, há um intervalo de tempo até que as alterações na atmosfera se reflitam na temperatura da Terra.

"Mas penso que poderá ter tido um impacto muito maior a nível regional", observou. O transporte marítimo está distribuído de forma desigual, estando grande parte concentrado entre a Europa, a América do Norte e a Ásia, o que significa que os efeitos da poluição atmosférica também são suscetíveis de ser distorcidos.

Em áreas como o Atlântico Norte, onde as temperaturas subiram vários graus acima do normal em 2023, "o transporte marítimo é uma explicação decente para parte da razão pela qual foi tão quente", argumentou Diamond.

Navios de carga no porto de Los Angeles, Estados Unidos, a 13 de outubro de 2021. Jason Armond/Los Angeles Times/Getty Images

Até ao momento, só estão disponíveis dados relativos a alguns anos e será necessário algum tempo para que os cientistas consigam descobrir o impacto exato da diminuição da poluição causada pelo transporte marítimo.

Mas é evidente que a poluição por partículas de todas as fontes, incluindo a queima de combustíveis fósseis, tem tido impacto no arrefecimento. Sem ela, o mundo estaria cerca de 0,4 graus mais quente, de acordo com um relatório de 2021 do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas. E a diminuição da poluição no futuro poderá ter um grande impacto.

De acordo com a investigação de Annica Ekman, professora de meteorologia na Universidade de Estocolmo, na Suécia, a diminuição da poluição por partículas causada pelo homem entre 2015 e 2050 poderá aquecer o planeta até 0,5 graus.

Mas isto não é um argumento contra a redução da poluição atmosférica, observou Diamond, mas sim um argumento a favor da sua resolução a par da redução das emissões de carbono.

O impacto da poluição atmosférica no arrefecimento é largamente ultrapassado pelo impacto da queima de combustíveis fósseis no aquecimento. Quando a poluição atmosférica é combatida sem reduzir também as emissões de carbono, "podemos ter problemas", alertou Diamond.

É o que está a acontecer no sector dos transportes marítimos, onde enormes navios porta-contentores continuam a ser movidos através dos oceanos por centenas de milhões de toneladas de combustíveis fósseis.

"Não podemos esquecer a razão da existência desta regulamentação", destacou Forster: "Existe para salvar vidas da poluição atmosférica." Embora a redução desta poluição tenha um pequeno impacto no aquecimento, ações imediatas para diminuir as emissões reduzirão drasticamente a taxa de aquecimento global e irão melhorar a qualidade do ar. "Não estamos "numa trajetória condenada", defendeu.

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