Alterações climáticas. Entrámos na fase do desespero e este até pode estar a ser "um verão fresco"

29 jul 2023, 22:00
Vale da Morte, na Califórnia, EUA, ultrapassou os 50ºC (Foto: Ronda Churchill/AFP via Getty Images)

Estudos científicos divulgados esta semana indicam que as alterações climáticas estão perto de fazer colapsar sistema de correntes oceânicas que mantém estabilidade do clima do hemisfério norte, e que as ondas de calor serão cada vez mais frequentes e intensas. A sobrevivência do ser humano pode estar em causa, mas a economia com uma gigantesca pegada carbónica continua a levar a melhor. Até quando? Ninguém sabe

Em poucas décadas - no melhor dos cenários -, um sistema de correntes marítimas crucial para a humanidade pode colapsar. A conclusão é de um estudo publicado esta semana na revista Nature, que indica que o fim da circulação meridional do Atlântico - ou Atlantic Meridional Overturning Circulation, AMOC na sigla em inglês - trará consequências imprevisíveis para o planeta e seus habitantes. 

Também esta semana, os cientistas da World Weather Attribution, iniciativa que junta especialistas que estudam o efeito das alterações climáticas nos fenómenos meteorológicos extremos, concluíram que as ondas de calor que se registaram este mês de julho em três continentes distintos teriam sido "virtualmente impossíveis" sem o aquecimento global provocado pelo Homem. 

E se Portugal tem sido poupado ao calor desta vez, a verdade é que, no sul da Europa, as temperaturas altas seguem implacáveis e aproximam-se perigosamente dos 50 graus centígrados na Sardenha. Na Grécia, os grandes incêndios obrigaram a retirar milhares de pessoas da ilha de Rodes e, nos últimos dias, Itália enfrentou tempestades no norte além do calor insuportável do sul. 

Há vários fenómenos conjugados este ano", indica Pedro Garrett, especialista em alterações climáticas, que faz um aviso sério: "O que estamos a observar este ano é o melhor daquilo que ainda está para vir daqui para a frente".  

O especialista indica que há sobretudo dois fenómenos que estão a preocupar a comunidade científica em 2023, e que têm sido cuidadosamente monitorizados: "A elevada probabilidade de termos um El Niño muito forte, com aquecimento do Pacífico e influência nos padrões de circulação global e no clima de todo o mundo, e também outro fenómeno, algo que nunca fora medido e observado: um Atlântico Norte extremamente quente", que liberta grandes quantidades de energia para a atmosfera que são devolvidas sob a forma de furacões ou tempestades intensas. 

Ou seja, há "um mundo novo do ponto de vista científico" que se abre agora, aponta Pedro Garrett, e cujas consequências escapam ainda aos estudiosos que, nas últimas décadas, têm procurado compreender os impactos das alterações climáticas no globo terrestre.

Neste quadro negativo, os efeitos para a saúde humana também se intensificam, uma vez que, conjugados com as temperaturas elevadas, verificam-se elevados valores de humidades relativas, "o que faz com que o nosso corpo deixe de ter a capacidade de regular a temperatura interna", explica Pedro Garrett. "Diminuímos drasticamente a nossa capacidade de sobrevivência", acrescenta o especialista, já que este fenómeno de incapacidade de regulação de temperatura afeta transversalmente a população humana, com ou sem doenças associadas. 

Correntes que garantem estabilidade no hemisfério norte

As correntes oceânicas são muito difíceis de estudar. "A obtenção de dados é difícil, pelo que as estimativas envolvem algum grau de incerteza", indica Pedro Garrett. Ainda assim, não deixa de ser preocupante que o estudo publicado na revista Nature sobre a circulação meridional do Atlântico revele que este sistema de correntes pode deixar de existir como o conhecemos já em 2025, mesmo que a data mais provável para colapsar seja entre 2039 e 2070. Certo é que, a continuarmos no caminho do aquecimento global, deixará de existir, mais tarde ou mais cedo.

"É muito assustador", disse à CNN Internacional Peter Ditlevsen, professor de física do clima na Universidade de Copenhaga e um dos autores do estudo. "Não é algo que se escreva de ânimo leve", sublinhou, acrescentando que os investigadores envolvidos acreditam que o resultado da pesquisa é "robusto". 

O AMOC tem sido continuamente monitorizado desde 2004, mas os autores da pesquisa debruçaram-se sobre um conjunto de dados mais vasto, procurando indícios de como as correntes se comportavam num período sem alterações climáticas causadas pela atividade humana. 

"Esta corrente tem sido minimamente estável nos últimos 12 mil anos, desde uma mini era glaciar", diz o investigador Pedro Garrett. "É responsável pela estabilidade climática no hemisfério norte e o que permitiu a civilização que temos hoje, do ponto de vista da agricultura, da sociedade que conseguimos criar, das cidades que temos hoje", acrescenta. 

De forma simples, o AMOC pode ser descrito como um "tapete rolante global", que transporta água dos trópicos até ao Atlântico norte, onde a água arrefece, torna-se mais salgada e afunda no oceano, antes de ir para sul. Tem um papel fundamental na regulação dos padrões globais da meteorologia e, ao colapsar, terá consequências brutais, nomeadamente invernos mais rigorosos e uma subida do nível da água do mar que afetará partes da Europa e dos Estados Unidos, provocando igualmente alterações nas monções dos trópicos.

"Se este sistema colapsar, se este transporte de águas mais quentes para o Atlântico norte colapsar, e colapsa porque há um aporte muito elevado de água doce do degelo do Ártico e, depois, uma diminuição da concentração do sal oceânico, uma combinação de fatores que faz com que as diferenças de densidade da água diminuam, a corrente deixa de funcionar e poderemos estar novamente perante um arrefecimento abrupto do norte da Europa e dos EUA. E este colapso do sistema terá consequências que são imprevisíveis", nota Pedro Garrett.

O ponto de não retorno

Neste estudo sobre as correntes oceânicas, foram analisadas as temperaturas à superfície no Atlântico Norte numa área a sul da Gronelândia, num período de 150 anos, entre 1870 e 2020. Esta área do oceano torna-se mais quente por causa da água transportada desde os trópicos pelo AMOC. "Se arrefece, é porque o AMOC está a enfraquecer", explica Ditlevsen, o autor do estudo, à CNN Internacional. Os investigadores subtraíram os impactos do aquecimento global à temperatura da água, para compreender como as correntes estavam a mudar. E encontraram "sinais de aviso" de alterações críticas na circulação meridional do Atlântico, o que os leva a prever, "com elevada confiança", que o AMOC pode colapsar ou deixar de funcionar já em 2025 e nunca depois de 2095.  

Há algum caminho para evitar este colapso, abrupto e irreversível? Os investigadores envolvidos no estudo pedem medidas eficazes e rápidas para cortar a poluição que está a provocar o aquecimento do planeta, de forma a reduzir as temperaturas e abrandar o degelo do Ártico. Mas "não há uma solução", lamenta Pedro Garrett. "Todas as soluções que temos disponíveis para descarbonizar as nossas economias teriam de ser aplicadas em simultâneo e devíamos tê-lo feito há 20 anos", acrescenta o especialista em alterações climáticas. "Sabemos desde a década de 80, e foram os grandes poluidores que fizeram os estudos, é irónico, que isto podia acontecer. Não tínhamos era noção da rapidez com que estes sistemas podiam colapsar", declara.

Mais perto estará, também, o chamado "ponto de não retorno", a partir do qual "alteramos a química da nossa atmosfera de tal forma que alguns sistemas da atmosfera deixam de funcionar e passam a funcionar outros", diz o especialista. Daí a meta do Acordo de Paris, que estabelecia o objetivo de conter o aumento da temperatura média do planeta bem abaixo dos 2ºC e, se possível, abaixo dos 1,5ºC em relação à era pré-industrial. "Até aos 1,5ºC seria possível tentar reverter ou controlar os pontos de não retorno. A partir dos 2ºC, os cientistas dizem de forma muito clara que o que pode acontecer é altamente imprevisível. É outro sistema climático", aponta Pedro Garrett.

"Os últimos modelos indicam que os 1,5ºC serão atingidos em 2026 e antes de 2040 devemos atingir os 2ºC. Estamos perante um conjunto de eventos em cadeia que, do ponto de vista da modelação e conhecimento físico, entendemos, mas o que desconhecemos é proporcional ao que conhecemos", acrescenta ainda o especialista em alterações climáticas, sublinhando a "urgência climática de descarbonizar de forma muito rápida a economia global". Atingir a neutralidade carbónica em 2050, frisa, "é tarde demais", algo que a própria Organização das Nações Unidas também já reconheceu. 

Este ano, diz Pedro Garrett, com a conjugação de várias ondas de calor e incêndios incontroláveis em várias partes do mundo, do Canadá às ilhas gregas, "provavelmente haverá maior perceção pública para que esta mudança da descarbonização seja acelerada. Mas isso vem com decisões que não são nada populares e essa é uma dificuldade que os governos têm, de manter as economias saudáveis ao mesmo tempo que atravessam esse processo. Temos uma economia dependente da produção de cimento, aço, fertilizantes, processos que têm pegadas carbónicas gigantescas", admite. 

As alternativas controversas

Outra pesquisa alarmante, divulgada esta semana, parte precisamente das metas estabelecidas no Acordo de Paris para desenhar um cenário que já se verifica e que deverá piorar no futuro: se o aumento da temperatura média no planeta chegar aos já referidos 2ºC, as ondas de calor extremas podem verificar-se a cada dois ou cinco anos, chegando a temperaturas ainda mais altas.

A análise foi feita pelos cientistas da World Weather Attribution, cuja equipa estuda o papel das alterações climáticas em condições meteorológicas extremas, e que estudou dados e modelos computorizados para comparar o clima atual - mais quente em cerca de 1,2ºC do que na era pré-industrial - com o clima do passado. 

O papel das alterações climáticas é absolutamente esmagador", disse à CNN Internacional Friederike Otto, climatologista no Grantham Institute for Climate Change na Imperial College de Londres. Sem aquecimento global, as ondas de calor que se verificaram em partes dos Estados Unidos, Europa e China teriam sido "virtualmente impossíveis", mas as alterações climáticas tornaram-nas 50 vezes mais prováveis, segundo esta análise. 

E com os humanos a sentirem, literalmente, no corpo, os efeitos da emissão de gases de estufa, estaremos agora todos mais alerta para a necessidade de travar o aquecimento global? Pedro Garrett admite que é injusto que se coloque na mão das pessoas a procura de uma solução para as alterações dramáticas que se têm verificado. "O processo de descarbonização tem de ser liderado pelos políticos, com uma estratégia muito forte e uma direção muito clara sobre o que queremos fazer à nossa economia", reflete. "Com os incêndios no Canadá, na Grécia, as cheias na Suíça, é impossível que a conjugação deste tipo de fenómenos não esteja na agenda política, porque também tem consequências económicas gravosas", defende. 

Pedro Garrett lembra ainda que tanto a Europa - que tem tido um importante papel de liderança no combate às alterações climáticas, pela ação da Comissão Europeia - como os Estados Unidos elaboraram já dois relatórios que se debruçam sobre alternativas para regular o clima, para acelerar o processo de transição energética. 

"São alternativas não consensuais", explica, "processos de geo-engenharia". Dá o exemplo da possibilidade da colocação de aerossóis na atmosfera que refletissem para o espaço a radiação solar que a poluição atmosférica impede de chegar à Terra. "É controverso, porque não sabemos que impacto teria para a agricultura, são impactos tão incertos como os das próprias alterações climáticas. Mas é para termos noção do quão desesperados estamos, já estamos na fase do desespero", assegura.

À CNN Internacional, Friederike Otto diz, mais otimista, que ainda há tempo para assegurar um futuro seguro e saudável, "mas temos de parar urgentemente de queimar combustíveis fósseis e investir em diminuir a vulnerabilidade. Se não o fizermos, milhares de pessoas vão continuar a morrer todos os anos por causas relacionadas com o calor", assume. Sobre o verão que atravessamos, com dias sucessivos de temperaturas muito altas, ironiza: "No futuro, pode muito bem ser que este seja considerado um verão fresco, se não pararmos de queimar combustíveis fósseis rapidamente".

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