Autarca de Alenquer é substituído nas reuniões da Câmara e oposição apresenta queixa no Ministério Público

9 jun 2023, 09:00
Procuradoria-Geral da República

Vereador do PSD na Câmara Municipal de Alenquer suspeita de conflitos de interesses e até ilegalidades que poderão colocar em causa decisões da autarquia. Por isso, já fez uma exposição junto do Ministério Público. Parece “que são os donos de tudo e fazem tudo, sem nada lhes acontecer”, acusa Nuno Miguel Henriques. Autarquia tem um entendimento diferente

Na Câmara Municipal de Alenquer, algumas vezes, quando está ao serviço da autarquia e não pode estar nas reuniões de câmara, o presidente Pedro Folgado (eleito pelo PS) faz-se substituir por outra pessoa. Nuno Miguel Henriques, vereador eleito do PSD, avançou à CNN Portugal que já deu “a conhecer a situação” ao Ministério Público e que podem estar em causa várias decisões votadas por substitutos que, no seu entender, não deviam estar nestas reuniões. “Esta é uma questão polémica, porque artificialmente sobem o número de eleitos”, explica o social-democrata.

O social-democrata tentou que fosse pedido um esclarecimento junto da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo (CCDR LVT), algo que acabou por acontecer, e que “deu razão” às dúvidas do PSD, garante. Mas a câmara “insiste em continuar a fazer o que quer”. “É ridículo, porque nada se alterava, até porque quem preside tem voto de qualidade, tratando-se de uma arrogância política e falta de respeito pelos munícipes cidadãos, parecendo que são os donos de tudo e fazem tudo, sem nada lhes acontecer”.

A CNN Portugal teve acesso ao referido parecer da CCDR LVT e a conclusão é: “Em situação de ausência do presidente da câmara municipal, (...) por se encontrar no exercício de funções de representação do Município, a reunião é presidida pelo vice-presidente e não há lugar a qualquer substituição, posto que o presidente da câmara se mantém no exercício do cargo”.

Para o advogado especialista em Direito Laboral João Santos, se existe um parecer que “diz que não é para substituir e continua a acontecer, está a arriscar”. Eventualmente, acrescenta, poderá ser “invocada a anulabilidade de decisões” e, depois, os “tribunais administrativos” terão a palavra final.

João Massano, presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, lembra que “por norma o Presidente da Câmara Municipal designa, de entre os vereadores, o vice-presidente a quem, para além de outras funções que lhe sejam distribuídas, cabe substituir o primeiro nas suas faltas e impedimentos”. E nestas situações “em que o Presidente da Câmara não está presente numa reunião desse órgão por se encontrar no exercício de outras funções de representação do Município, nesse caso será substituído pelo Vice-Presidente”. 

Segundo o parecer, a substituição por outra pessoa durante uma reunião e votação não é permitida quando os autarcas se ausentam em exercício de funções. Mas é permitida, por exemplo, em caso de falta por doença.

A comprovar-se esta situação denunciada pela oposição, isso pode implicar que as decisões tomadas nas respetivas reuniões de Câmara sofram de “irregularidades processuais e até anulabilidade ou nulidade”, clarifica o vereador social-democrata Nuno Miguel Henriques. Daí ter recorrido ao Ministério Público: “Dei agora a conhecer a situação, com as gravações online das reuniões, para que sejam feitos os bons-ofícios e se clarifique a situação”.

Entendimento diferente tem a Câmara de Alenquer, que sublinha à CNN Portugal a existência de “vários pareceres, nenhum deles vinculativo". "Um da CCDR-LVT e um outro, completamente oposto, da CCDR Centro. Este último vai ao encontro dos pareceres do Gabinete Jurídico desta Câmara e da sociedade de advogados – Pares Advogados, tendo as duas CCDR pareceres distintos e contraditórios”. Sendo certo que, para a autarquia, “de acordo com os três pareceres (Gabinete Jurídico da Câmara Municipal, Sociedade de Advogados - Pares Advogados e CCDR – CENTRO), não existe ilegalidade na sua substituição”.

Fonte oficial da autarquia acrescenta ainda “que a ausência do Presidente da Câmara Municipal de Alenquer foi motivada por um cargo que ocupa na ANMP, enquanto membro do conselho diretivo, para o qual foi eleito, e não na qualidade de associado daquela, pelo que a sua ausência não ocorre em representação do município”. Estando assim, portanto, justificada a sua substituição.

Vereadora do urbanismo “escondeu-se atrás de uma porta no decorrer de uma votação”

Mas a questão das substituições é apenas uma entre outras. Nuno Miguel Henriques destaca ainda que a vereadora responsável pela pasta do Urbanismo é casada com o Chefe da Divisão Administrativa e Jurídica e acredita que isso pode representar um conflito de interesses. 

A ligação conjugal entre a vereadora do urbanismo e o Chefe da Divisão Administrativa e Jurídica “é pública e já foi referenciada por mim, enquanto vereador, em reuniões ordinárias da Câmara Municipal, onde levantei a questão”, afirma à CNN Portugal Nuno Miguel Henriques. E a resposta é quase sempre a mesma: “Estavam cientes e que tudo era normal”.

Mas o social-democrata conta que já aconteceram situações caricatas com a vereadora, devido a esta ligação: uma vez, “escondeu-se atrás de uma porta, no decorrer de uma reunião, quando houve votações de supostas incompatibilidades, como por exemplo os prémios dos funcionários e, outra vez, sobre um terreno público, junto da sua residência”. “Têm sido sistemáticas as alterações ou até retiradas de diálogos em atas, no que concerne ao setor do urbanismo, sendo que a divisão que faz as atas é a do cônjuge da vereadora do urbanismo, que as vota, tal como as contas anuais (conta de gerência) onde estão refletidos os recebimentos do cônjuge”, acrescenta.

Nuno Miguel Henriques garante ainda que a vereadora do urbanismo tem decidido “sozinha os nomes de ruas, praças e artérias”, o que configura, no seu entender, “uma irregularidade”, porque estas alterações, por “terem eficácia externa”, devem ser “aprovadas em reunião de Câmara Municipal e posteriormente na Assembleia”, explica. Por fim, é “a divisão chefiada pelo marido que confirma a suposta legalidade” do ato. 

Em declarações à CNN Portugal, o advogado João Santos considera que “ter um marido numa posição em que, pelo exercício das suas funções, ‘controla os atos’ de uma função ou de um posto que é ocupado pela sua própria mulher”, ou vice-versa, “desaconselhável é de certeza": "Agora, a questão é saber se isso é ilegal”. Não é por acaso, sublinha, que “por exemplo, maridos e mulheres e pais e mães não são obrigados a depor em julgamento. Se forem chamados têm a opção de não depor. Porquê? Por causa precisamente de não quererem prejudicar, ou não querem beneficiar, ou não serem objetivos na análise que façam sobre determinados atos ou eventos”. 

Já João Massano considera que “a resposta a esta questão depende de uma análise de cada situação em concreto, não sendo possível uma resposta genérica”. Todavia, lembra que deverá ser sempre tido em conta o Código do Procedimento Administrativo, que diz que “os titulares de órgãos da Administração Pública e os respetivos agentes que (…) se encontrem no exercício de poderes públicos não podem intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado (…) quando nele tenham interesse o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, algum parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem vivam em economia comum ou com a qual tenham uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil”.

Nomeação para chefe de divisão foi “efetuada pelo Sr. Presidente da Câmara"

Relativamente a esta situação, fonte oficial da Câmara de Alenquer recorre a um “parecer jurídico de entidade externa”, que explica que o Chefe de Divisão está no cargo “em regime de substituição” e que o mesmo “corresponde a um cargo de direção intermédia de 2.º grau”, enquanto a vereadora “tem o estatuto de eleita local” e se “encontra igualmente sujeita ao Regime de Exercício de Funções por Titulares de Cargos Públicos”. Esclarece a autarquia que a nomeação para chefe de divisão foi “efetuada pelo Sr. Presidente da Câmara, sem qualquer intervenção da Vereadora” e que, tratando-se de uma chefia intermédia, a questão nem sequer se colocava.

Quantos aos “impedimentos” previstos na lei que podem colocar “em causa a imparcialidade das decisões a tomar”, a autarquia argumenta que “não é isso que ocorre nos procedimentos" em que o Chefe de Divisão e a Vereadora participam quando as suas competências se cruzam: ambos têm um vínculo à Câmara Municipal, ainda que por vias diferentes, e estão ambos adstritos à prossecução do interesse público, razão pela qual a simples circunstância de serem cônjuges não é suficiente para que exista um impedimento em tais procedimentos”.

Mesmo que a vereadora possa delegar “competências” ao próprio marido, “isso não traduz qualquer violação da lei”. A relação “é estritamente funcional, ou seja, não é posta em causa pelo facto de o delegante ser cônjuge do delegado. Igualmente, a lei não consagra qualquer proibição de delegação em função desse facto”. Mas a própria a autarquia reconhece “o surgimento de impedimentos em dois casos concretos”: se o chefe de divisão “for objeto de um procedimento disciplinar” e aqui “a intervenção da Vereadora encontra-se necessariamente vedada a qualquer título”. E ainda se este “se encontrar em processo de avaliação enquanto dirigente não poderá existir qualquer intervenção da Sra. Vereadora”.

“Não sabemos quem são os funcionários públicos, o que fazem e onde estão a trabalhar”

Na última reunião de Câmara, o vereador do PSD recusou participar em votações que envolviam a contratação de novos funcionários para a autarquia. À CNN Portugal, Nuno Miguel Henriques explicou que, apesar de ser um vereador eleito, não sabe “quem são os funcionários, o que fazem, qual a categoria e onde estão a trabalhar": "O que é muito estranho, já para não falar de estagiários e prestadores de serviços que temos no município”.

Por isso mesmo, pediu para conhecer a listagem dos funcionários da Câmara, mas até ao momento isso foi-lhe negado, com base na lei da proteção de dados. “Esta semana veio outra vez a reunião de câmara novas contratações e nós protestámos”, explica. “Recusámo-nos a participar nessas votações. Como podemos em consciência votar a contratação, por contrato ou avença, novos recursos humanos, se não sabemos se temos pessoas a mais ou a menos em cada sector/divisão?”, questiona.

Neste ponto, os dois especialistas ouvidos pela CNN Portugal consideram que a alegação da lei de Proteção de dados não faz muito sentido.

“Acho altamente improvável que a lei dos dados pessoais seja invocável neste caso. Porque não se está a pedir dados específicos sobre as pessoas”, afirma o advogado João Santos. "No limite, se não lhe derem a lista, ele até pode ir, de departamento em departamento, saber quem são” e até ver “nos Diários da República as nomeações”. “Portanto, com franqueza, eu acho que invocar a lei dos dados pessoais para esse efeito, deve ser porque não existe melhor argumento”, conclui. 

“Trata-se de um conflito entre o direito de acesso à informação administrativa e o respeito pela proteção de dados pessoais, não sendo ainda conhecido um entendimento unânime para esta controvérsia”, assume o presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados. Todavia, refere que “os tribunais e a CADA, em posição maioritária, têm decidido em sentido diverso do entendimento sufragado pela Câmara. Portanto, no âmbito do exercício de funções públicas prevalecerá o direito de acesso sobre a proteção dos dados pessoais”.

Até porque, no caso em apreço, aparentemente “o pedido se fundamenta no direito de acesso a documentos administrativos”. Ou seja, não há questões relacionadas com “dados pessoais que revelem a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à vida sexual ou à orientação sexual de uma pessoa”.

Neste caso, a Câmara de Alenquer explica que “não foi negada qualquer informação” e que “os dados solicitados pelo sr. vereador do PSD contêm dados pessoais dos trabalhadores”. E, por isso, foi solicitado pela “Divisão de Recursos Humanos o parecer do Encarregado de Proteção de Dados”. Um documento que “chegou esta semana e é desfavorável à pretensão do sr. vereador”.

A autarquia acrescenta que solicitou que o parecer fosse enviado à Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) “no sentido de verificar se esta entidade tem o mesmo entendimento”.

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