Um "avanço notável da ciência" para uns e um "problema ético" para outros. Pode um bebé com ADN de três pessoas nascer em Portugal?

CNN Portugal , ARC
25 jun 2023, 22:00
Fertilização in vitro

Pouco mais de um mês depois do nascimento do primeiro bebé com ADN de três pessoas no Reino Unido ter corrido o mundo, a CNN Portugal falou com especialistas portugueses para saber se os pedidos já começaram a surgir por cá e perceber como olham os médicos para o tema.

A ciência, que não para de surpreender, promete revolucionar as técnicas de fertilização. Depois da inseminação artificial e das barrigas de aluguer, o mais recente avanço permite um casal ter um filho com ADN de uma terceira pessoa para evitar que nasça com uma doença genética.  A técnica já pode ser feita no Reino Unido à luz da lei. Em Portugal, o tema não é pacífico e as opiniões entre os especialistas dividem-se.

Para alguns especialistas, como o farmacêutico Vladimiro Silva, é muito importante adotar esta técnica no País, uma vez que permite conceber um bebé com genes de três pessoas. Considerando ser uma "técnica com grande potencial" e um “avanço notável da ciência”, o diretor-executivo das clínicas Procriar e Ferticentro garante: “Só vejo vantagens”. O especialista justifica a posição, referindo-se à possibilidade que oferece às mulheres de “fazerem tratamentos com os próprios óvulos”, não tendo de recorrer a uma doação total.

Em causa está um procedimento - tecnicamente conhecido como Tratamento com Dádiva Mitocondrial - que é usado para impedir que a criança herde doenças mitocondriais da mãe. Em causa estão condições “raras”, “incapacitantes” e “graves” presentes no ADN mitocondrial materno, explica Maria do Céu Patrão Neves, a presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV). A neuropatia ótica hereditária de Leber, que pode levar à cegueira, ou a síndrome de Leigh, caracterizada pelo atraso e perda progressiva das capacidades cognitivas e motoras, são, de acordo com Vladimiro Silva, dois exemplos destas doenças.

Usam-se mitocôndrias “saudáveis” de uma doadora, explica Maria do Céu Patrão Neves, mas 99,8% do material genético da criança continua a ser dos “pais verdadeiros”. De acordo com o The Guardian, o bebé fica apenas com 37 genes da doadora, já que o tecido mitocondrial é “só o ambiente celular em que o feto se vai desenvolver e onde estava a doença da mãe”, clarifica a presidente do CNECV.

Mas o tema não é pacífico para Maria do Céu Patrão Neves. Pelo contrário, a tripla progenitura genética, como lhe chama, levanta um “problema ético”: “a manipulação da vida humana na fase geracional e a destruição de embriões”, assegura. A representante do CNECV alerta para a necessidade de se ter em atenção princípios éticos como a “dignidade humana” bem como de “precaver a identidade genética”.

Por parte dos doentes, os pedidos ainda não começaram a surgir nas consultas de Alberto Barros, conta o médico de fertilização in vitro, garantido que "os argumentos a favor ultrapassam o carácter discutível da aplicação” do tratamento. Mas o especialista sublinha a necessidade de se atingir um “patamar de segurança” antes de o trazer para Portugal.

Para já, a técnica não é “suficientemente forte para se fazer de forma tranquila”, diz Alberto Barros, explicando que ainda acarreta “riscos”. “Ao aspirar-se o núcleo do ovócito da mulher podem aspirar-se também as mitocôndrias que têm a mutação”, esclarece, reforçando que a doença pode permanecer, se o tratamento não for bem realizado. Só depois de mais investigação e da devida "literatura científica" pode vir a regulamentação, considera o especialista.

Alberto Barros relembra ainda que, a acontecer, a lei da Procriação Medicamente Assistida teria de mudar, porque a técnica é contrária a alguns dos princípios nela estipulados, já que a legislação pune com pena de prisão a “transferência de núcleo”, que está em causa neste tratamento. Ainda no que toca à regulamentação, Maria do Céu Patrão Neves, a presidente do CNECV, alerta: “Se vier a existir em Portugal uma proposta legislativa, é preciso saber se vai cumprir e respeitar a proteção do melhor interesse da criança e dos pais”.

No Reino Unido, a legislação foi alterada em 2015 para permitir o tratamento que gera bebés com três materiais genéticos, mas só em março deste ano surgiu a primeira licença, atribuída pela Autoridade de Fertilização Humana e Embriologia (HFEA) ao Centro de Fertilidade de Newcastle - a primeira e única clínica com que o pode fazer. Citada pelo The Guardian, a HFEA afirma que o número de bebés com esta condição foi “menos de cinco”, tendo a 9 de maio sido anunciado o primeiro, que correu o mundo.

Há ainda casos a registar no México, onde existem “vazios legais”, o que constitui um “risco”, diz Maria do Céu Patrão Neves. Foi, aliás, em solo mexicano que surgiu o primeiro bebé do mundo com ADN de três pessoas. Em 2016, uma mãe, natural da Jordânia e portadora de mutações mitocondriais que podem causar Síndrome de Leigh, teve quatro abortos espontâneos e só dois bebés sobreviveram - um até aos seis anos e outro apenas seis meses.

Estudos mostram que uma em cada seis mil pessoas sofre de doenças mitocondriais.

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