Declarações de Marcelo "contribuem para o silêncio das vítimas" dos abusos sexuais na Igreja - e pedir desculpa "não é suficiente" (uma análise)

11 out 2022, 22:35

Os comentários do Presidente da República “foram de um desrespeito enorme” - o que uma vítima de abusos sexuais e um psicólogo especialista na área têm a dizer sobre as polémicas declarações de Marcelo Rebelo de Sousa

A opinião do Presidente da República de que as 424 queixas validadas pela Comissão Independente para o estudo dos abusos sexuais contra crianças na Igreja Católica não são um número "particularmente elevado" está a desvalorizar os atos de coragem dos denunciantes e a contribuir para o silêncio de futuras queixas, critica o psicólogo Ricardo Barroso, especialista no tratamento de casos de agressões sexuais.

“Foram [declarações] lamentáveis”, sublinha à CNN Portugal, garantindo que a mensagem de Marcelo Rebelo de Sousa “quis diminuir a gravidade do problema” dos abusos sexuais no seio da Igreja Católica e que, para isso, “serviu-se da estatística”. 

Da mesma opinião é Ângelo Fernandes, vítima de abuso sexual na infância e autor do livro “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças”. “Eu acho que é importante perceber que este tipo de declarações é prejudicial para as vítimas. Bastava apenas um caso para ser demasiado grave e é preciso entender que, por trás destes números, estamos a falar de crianças que foram abusadas.”

Tanto Ângelo Fernandes como Ricardo Barroso temem que os comentários da mais alta figura do Estado português possam contribuir para a manutenção do silêncio de vítimas que ainda estão a ponderar se vão denunciar os seus casos. Isto porque, como explica o psicólogo, “o processo de denúncia é extremamente difícil” e há “uma pressão enorme individual, por um lado”, e por outro há “a culpa que o agressor induz na vítima” e que, “em alguns casos, consegue convencê-la de que se algum dia denunciar o seu caso a culpa será dela”. 

Por isso, acrescenta Ricardo Barroso, os comentários do Presidente da República “foram de um desrespeito enorme”. As pessoas que denunciam “não o fazem de ânimo leve e, neste momento, há muita gente que está a pensar em casa se deve denunciar o seu caso” e está também “extremamente atenta aos comentários de Marcelo Rebelo de Sousa”.

O número de denúncias tem subido, sim, mas Ângelo Fernandes acredita que são “apenas um pequena ponta do iceberg”. “Não haja ilusões, é preciso ter atenção aos casos que estão em silêncio.” Assim, continua o também fundador da Associação Quebrar o Silêncio, “não é aceitável a minimização” deste problema. “Acho que, independentemente do Presidente da República, as mensagens devem ser sempre de apoio e garantir o bem-estar destas pessoas.”

Questionado sobre se Marcelo deve pedir desculpa pelo que disse esta terça-feira, Ângelo Fernandes diz preferir “esperar pelos próximos desenvolvimentos”. Já Ricardo Barroso garante que um pedido de desculpa “não é suficiente”. “Tem de ir um pouco mais além disso, tem ser algo muito mais efetivo, porque as sua postura tem sido muito relaxada.”

Ângelo Fernandes e Ricardo Barroso admitem ainda que tem existido bastante “ruído” em torno deste assunto e, por isso, pedem uma resposta “mais clara” da Comissão Episcopal Portuguesa, mas também apelam à sensatez de Marcelo, que, na opinião do fundador da associação Quebrar o Silêncio,  “devia pedir um parecer técnico para ajudar a navegar estes temas”.

A CNN Portugal tentou contactar vários interlocutores dentro e fora da Igreja Católica para tentar perceber as reações aos comentários de Marcelo Rebelo de Sousa. A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima não quis prestar declarações, garantindo que “não pode comentar diretamente as declarações do Presidente”. Por outro lado, nem a Comissão Independente nem a Conferência Episcopal Portuguesa responderam às tentativas de contacto.

Após as polémicas declarações de Marcelo, a Presidência da República emitiu um esclarecimento em que reafirma que o número de casos denunciados de abusos sexuais na Igreja Católica "não parece particularmente elevado". Mas neste comunicado o Presidente diz que não é elevado "face à provável triste realidade" - estas últimas palavras não foram ditas na primeira declaração do Presidente, que foi a seguinte:

“Não me surpreende. Está a ver, o problema é o seguinte: não há limite do tempo para estas queixas. Há queixas que vêm de pessoas de 90 anos, 80 anos, e que fazem denúncias relativamente ao que sofreram há 60 ou há 70 ou há 80 anos. Portanto, o que significa que estamos perante um universo de pessoas que se relacionou com a Igreja Católica de milhões. De jovens, muitas centenas de milhares de jovens, haver 400 casos não me parece que seja particularmente elevado, porque noutros países – e com horizontes mais pequenos – houve milhares de casos”. 

Posteriormente, no comunicado da Presidência, Marcelo diz assim:

"O Presidente da República sublinha, mais uma vez, a importância dos trabalhos desta Comissão, muito embora lamente que não lhe tenham sido efetuados mais testemunhos, pois este número não parece particularmente elevado face à provável triste realidade, quer em Portugal, quer pelo Mundo".

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