Uma em cada cinco crianças é vítima de abuso sexual. “Algumas desde os primeiros dias de vida”

11 out 2022, 09:00
Ângelo Fernandes

Ângelo Fernandes foi vítima de abuso sexual na infância e viveu no silêncio, como tantas outras vítimas. Calou o sofrimento durante mais de 20 anos. Agora toma a sua história como motor do ativismo em prol da ajuda às vítimas e na prevenção do abuso sexual. O livro “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças” é a mais recente batalha numa luta diária

Tinha 10 anos quando foi vítima de abuso sexual por parte de um amigo da família. Não contou a ninguém e viveu no silêncio durante mais de 20 anos. Só aos 32 anos ganhou coragem para revelar a sua história. Ângelo Fernandes fundou a associação Quebrar o Silêncio, que ajuda outros homens e rapazes vítimas de abuso sexual. Ângelo dedica a vida à luta pelas vítimas e à prevenção dos abusos sexuais.

Esta quinta-feira lança o livro “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças”. Não quer ser alarmista nem assustar ninguém, mas quer colocar o tema na agenda das preocupações dos pais. Sublinha que, em média, há cinco crianças abusadas sexualmente de alguma forma em cada turma das nossas escolas. Você pode conhecer uma delas. O seu filho pode ser uma delas.

Capa do livro de Ângelo Fernandes que será lançado esta quinta-feira. 

O que fazer, como agir, como acolher a vítima e, sobretudo, como prevenir o abuso. É isso que Ângelo Fernandes quer ver discutido.

A propósito do lançamento do livro, e em entrevista à CNN Portugal, o autor lança um repto à Igreja Católica: “É preciso assumir uma postura sólida e inequívoca de apoio para com as vítimas e parar de ocultar os casos e de proteger os abusadores. Uma organização, seja ela qual for, não pode dizer que está no lado das vítimas e depois não assumir a responsabilidade quando se descobrem mais casos de encobrimento”.

Quando e o que o fez sentir necessidade de escrever este livro?
Sempre que dou formação sobre violência sexual contra homens para profissionais de diferentes áreas, as perguntas e dúvidas que colocam no final tendem a ser não enquanto profissionais mas sim enquanto pais e mães. Desde o início da Quebrar o Silêncio que ouvia perguntas sobre que sinais podiam ter em atenção ou que orientações podiam fazer em casa para ajudar a prevenir que os filhos e filhas fossem vítimas de abusos sexuais. E estamos a falar de profissionais de saúde, psicologia, agentes da polícia, entre outras áreas, que têm formação ou contacto com homens, mulheres e crianças sobreviventes de violência sexual e isso levou-me a refletir sobre os materiais existentes de prevenção primária. Como esses recursos tendem a focar e a responsabilizar a criança pela prevenção - algo relativamente ao qual sou profundamente contra -, decidi que poderia escrever um livro com o foco nos pais, mães e pessoas cuidadoras para contribuir para a prevenção da violência sexual contra crianças.

A violência sexual contra crianças tem cada vez maior visibilidade na comunicação social. Então o que falha para haver ainda tanta desinformação sobre o tema?
É verdade que existem várias notícias sobre abusos sexuais contra crianças. No entanto, essa visibilidade mediáticas não contribuem necessariamente para que os pais e mães fiquem mais informados. Ou seja, as notícias tendem a focar casos específicos, sem haver uma contextualização sobre o que há de comum entre esses mesmos casos, apresentação de estatísticas que enquadrem os crimes numa perspetiva macro ou de como os abusadores chegam às crianças, entre outras informações, que ajudem o público a compreender a dimensão e gravidade da violência sexual contra crianças. É preciso ir mais longe do que a 'simples' notícia do crime para começar a educar sobre este tipo de crimes.

Acha que os pais continuam a pensar que não vai acontecer na sua família e aos seus filhos? Continua a haver um certo sentimento de imunidade, uma falsa sensação de segurança?
Sim. Diria que ainda falta muito trabalho no sentido da informação dos pais e mães para começarem a ter consciência da realidade dos abusos sexuais de crianças. É comum acreditarem que este é um problema que 'só acontece aos outros' e essa ideia cria uma falsa sensação de segurança, o que é bastante preocupante. Também é comum que refiram algo como “lá em casa falamos sobre tudo” ou “se acontecesse algo o meu filho iria contar-me” e na verdade sabemos que não é essa a realidade. Não é comum que as crianças partilhem histórias de abuso e, mesmo quando o fazem, as suas partilhas nem sempre são vistas ou reconhecidas como tal e passam despercebidas.

Pode dar-me um exemplo de uma situação em que, na realidade, a criança está a partilhar mas não damos conta disso?
Há várias formas para uma criança tentar indicar que se passou 'algo'. Normalmente pergunto aos pais como acham que será o momento da partilha, que palavras a criança irá escolher. É que muitos têm a ideia de que a criança será superarticulada no discurso, usar um tom sério, como se fosse uma pessoa adulta – algo que não é. Não é o que acontece. Também costumo perguntar aos pais e mães por situações reais, como por exemplo quando uma criança parte um objecto para o qual já tinha sido avisada para não mexer. Como é que os seus filhos e filhas reconhecem que fizeram algo que não deviam? Os sentimentos de culpa que os abusadores passam para as crianças tendem a silenciá-las por anos e anos e a verdade é que não há um guião para as vítimas, neste caso as crianças vitimadas, seguirem. Cada caso é único, mas algo comum é ver pais e mães a desvalorizar a partilha, a minimizar o que aconteceu e a descredibilizar a criança.

É fundamental estar atento a eventuais alterações do comportamento da criança que podem indiciar um eventual abuso

Uma em cada cinco crianças sofre algum tipo de abuso, uma média de cinco crianças por turma. É muito provável que algum caso se passe diante dos nossos olhos e não nos apercebamos…
A tal falsa sensação de segurança dos pais de que falávamos contribui para que os pais e mães não tenham atenção a determinadas questões e ponham em prática orientações numa óptica preventiva. Claro que esta noção de segurança começa a ser desconstruída quando começam a conhecer melhor esta realidade. Por exemplo, quando informo que uma em cada cinco crianças é, foi ou será vítima de violência sexual, são realmente surpreendidos e começam a repensar algumas das suas crenças. Quando refiro que estamos a falar de cinco crianças por turma, a realidade torna-se mais próxima e mais real e isso pode ser assustador. Claro que o meu objetivo não é assustar ou ser alarmista, mas é preciso que as pessoas tenham consciência da dimensão da violência sexual contra crianças para que se comece a contribuir para a sua prevenção. Quando os pais e mães desconhecem esta realidade, é expectável que não tenham consciência do que podem fazer em casa - é todo um universo novo. É isso que faço no meu livro. Inicialmente convido os pais e mães a questionarem aquilo que já sabem sobre violência sexual contra crianças e a refletir sobre as suas crenças e mitos para que depois compreendam a necessidade das orientações que apresento para a prevenção.

Quais são os principais mitos em torno do abuso sexual de crianças?
A maior parte das crianças abusadas sexualmente passa despercebida, é esta a realidade. No entanto, como dizia anteriormente, os pais e mães tendem a acreditar que estes casos só acontecem aos outros ou em determinados contextos - o que é um dos grandes mitos. Muitos também acreditam que a criança irá contar que foi abusada, o que também não é verdade, e acreditam ainda que a criança irá contar de forma clara e inequívoca o que aconteceu, o que também não corresponde à realidade. Por exemplo, há crianças que são abusadas sexualmente desde os primeiros dias de vida e que naturalmente não sabem sequer falar, por isso não têm sequer forma de verbalizar o abuso. Sei que é um exemplo extremo, mas estes casos também acontecem.

Há quem acredite que os abusadores são estranhos ou indivíduos com ar suspeito quando, na maioria dos casos, o abusador é alguém próximo da criança - como um familiar ou um amigo de família, vizinho, professor, chefe de escuteiros, no fundo alguém que alimenta uma relação de confiança com a criança mas também com os adultos cuidadores.

Há adultos que acreditam que as crianças inventam histórias de abuso sexual para chamar a atenção ou que criam estas histórias para se vingarem dos adultos, o que é um pensamento bastante perverso. As crianças não inventam este tipo de histórias - e mesmo que alguém diga que há crianças que as criam, isso seria sempre um sinal de alerta de que ela precisa de ajuda e apoio psicológico.

Serão esses mitos os principais inimigos da proteção das crianças?
Estes mitos contribuem para a manutenção do silêncio das crianças vitimadas e também alimentam os obstáculos na procura de ajuda.

E libertam também o caminho dos agressores…
Os mitos ajudam os abusadores a sentir segurança para interagir com crianças sem suspeitas. Por exemplo, se as pessoas acreditarem que só os estranhos com ar suspeito é que abusam das crianças, então podem estar menos atentos nos contextos em que o abuso acontece. Mas não são só os mitos que ajudam, o silêncio também. Ou seja, quanto menos conversarmos sobre violência sexual contra crianças, maior é a desinformação e maior é o espaço que os abusadores sentem que têm. Por isso digo que é fundamental falarmos de abuso sexual de crianças e como podemos proteger as crianças para que os abusadores sintam que há cada vez mais pessoas, nomeadamente pais, mães e pessoas cuidadores, atentas aos sinais e como podem prevenir. O silêncio só beneficia os abusadores.

Como podemos preparar e empoderar os nossos filhos de forma a prevenir que sejam vítimas?
Antes de mais, é fundamental clarificar que a responsabilidade da prevenção do abuso não é das crianças. Ou seja, não cabe às crianças identificar um abusador, dizer que não, parar o abuso e fugir para contar aos pais. Digo isto porque a grande maioria dos materiais de prevenção primária incide nesta mensagem de responsabilização das crianças. Isto é errado. A responsabilidade da prevenção é dos adultos cuidadores, pais e mães. Somos nós que temos esse dever e também de garantir uma infância e um desenvolvimento harmonioso e saudável.

Resumir todo um processo de prevenção, que tem de ser continuado ao longo da vida da criança, não é fácil e é até redutor, podendo criar uma outra falsa noção de segurança. Mas é importante para os pais e mães criarem um ambiente propício ao diálogo e à partilha, sem tabus (especialmente relativamente à sexualidade), em que a criança se sente segura em abordar qualquer assunto sem receio de ser repreendida ou mesmo castigada.

Abusadores manipulam e ameaçam as vítimas e levam-nas a manter o silêncio sobre o abuso 

Antes de mais é preciso que os pais e mães saibam do que falam e por isso estejam devidamente informados sobre o que é violência sexual. Também é importante ensinar os nomes corretos da genitália, abolir o segredo ou substituir pelo conceito de “surpresa”, desenvolver na criança o respeito pelo seu corpo e pelo dos outros e alertar para os toques desconfortáveis. Estas são algumas das questões a ter em atenção, mas é importante que estas e outras questões sejam desenvolvidas numa lógica integrativa. Ou seja, a prevenção não se consegue numa única conversa ou num dia e é necessário ter um plano a longo prazo, é isso que apresento no meu livro. Ofereço várias orientações que seguem uma lógica progressiva para ajudar na compreensão e importância das mesmas no dia-a-dia das famílias.

Quando tomamos conhecimento de um caso de abuso, o que fazer, para além da natural denúncia às autoridades? Como acolher essa criança? Como protegê-la? Por exemplo, como fazer a denúncia às autoridades sem ferir ainda mais a criança?
Diria que primeiro é importante validar o sofrimento da criança e valorizar ter partilhado. Contar a um adulto o abuso de que foi vítima é um grande risco e um ato de coragem, por isso reforço que é fundamental transmitir à criança que fez bem em falar e que teve imensa força e coragem em fazê-lo. É igualmente importante que o adulto mantenha a calma e não entre em pânico para não assustar a criança - e que não faça muitas perguntas, especialmente num tom inquisitivo, para que a criança não sinta que fez algo errado ou que não deveria ter contado; é importante deixá-la falar ao seu tempo.

Fazer uma denúncia é uma experiência que pode ser confusa, complexa e dolorosa para a criança. Por isso, converse com a criança e explique a importância de denunciar e o que vai acontecer para ela ter conhecimento e ajudar a gerir as expectativas. Sempre que possível, acompanhe a criança no processo e peça ajuda de um psicólogo especializado - é fundamental que ela tenha apoio especializado em violência sexual contra crianças e trauma.

No contexto noticioso que vivemos, é inevitável pensar nos abusos sexuais no seio da Igreja quando falamos de abuso sexual de crianças. Que comentário lhe merece o cenário de abusos sexuais no seio da Igreja que tem vindo a público?
A Igreja Católica tem uma mensagem minada por ambiguidades por parte dos vários membros que a representam. Uns diziam que em Portugal não aconteciam casos de abuso de menores como noutros países, outros defendem os abusadores, outros escudam-se atrás de 'tecnicalidades' imprecisas, enfim. O que acontece é que estes discursos aumentam a dor nas vítimas que foram abusadas no contexto da igreja. As palavras destes representantes têm um peso imenso e por vezes parecem proferidas sem grande consciência do impacto que têm nas vítimas.

Ângelo Fernandes diz que a Igreja Católica tem de parar de ocultar os casos de abuso sexual

A Igreja precisa de assumir uma postura sólida e inequívoca de apoio para com as vítimas e parar de ocultar os casos e de proteger os abusadores. Uma organização, seja ela qual for, não pode dizer que está no lado das vítimas e depois não assumir a responsabilidade quando se descobre mais casos de encobrimento. 

O Ângelo foi vítima de abusos na infância. Pode recordar-nos um pouco a sua história?
A minha história, apesar de ser a minha, é igual a de tantas outras crianças que foram abusadas na infância. Tinha 10 anos quando um amigo de família começou a abusar sexualmente de mim. Hoje compreendo e sei que fui vítima de um processo de manipulação - como muitas outras vítimas - e que por isso cresci a acreditar que tinha sido o único caso, não sabia que havia outras crianças em situações semelhantes. Devido a esse processo de manipulação nasceram sentimentos de vergonha e de culpa que contribuíram para a manutenção do meu silêncio por mais de 20 anos. Só depois dos 32 anos é que finalmente consegui partilhar a minha história e procurar apoio e fui aprendendo a dimensão desta realidade. Por exemplo, relativamente aos homens, sabemos que um em cada seis é vítima de alguma forma de violência sexual antes dos 18 anos. Foi então que decidi fundar a Quebrar o Silêncio, uma associação para dar apoio a outros homens que foram abusados sexualmente.

De que forma é que a sua história influenciou o seu percurso de vida e influencia agora o seu ativismo?
Eu trabalho a tempo inteiro nesta área, por isso diria que a minha história acabou por ser a força que motivou não só a fundar a Quebrar o Silêncio como a escrever este livro de prevenção. Mas gosto de separar a minha história pessoal do trabalho que faço. Ou seja, quando trabalhamos, por exemplo, para aumentar o prazo de prescrição dos crimes de abuso sexual de menores, é fulcral ter uma visão macro dos sistema e compreender o que é importante quando o objetivo é avançar com os direitos humanos das crianças em Portugal. É necessário estarmos informados e conscientes do que é feito noutros países e de exemplos de boas práticas. A história de cada um pode ser a força inicial para fazer um trabalho, mas é fundamental ter uma visão macro e não pessoalizar.

Que mensagem deixaria aos pais e mães de hoje em dia?
A lista de preocupações dos pais e mães é infindável, tenho perfeita consciência disso, e não peço que coloquem a violência sexual no topo mas peço que passem a colocá-la na lista. Tem de estar presente e tem de ser uma preocupação (mais uma, eu sei!), pois estamos a falar de situações potencialmente traumáticas que podem ter um impacto devastador na vida da criança, mas mesmo assim passar despercebidas.

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