“Acha que se ouve o coração? Não está nada aqui dentro”. Foi assim que Joana soube pela médica que tinha perdido o bebé. Histórias de quem sofre abortos espontâneos

16 set 2023, 08:00
Miscarriage (Getty Images)

É uma situação mais comum do que se imagina, mas é ainda um tabu e visto como uma fraqueza. Várias mulheres relatam o que é passar por uma perda gestacional e ter de lidar com a falta de sensibilidade que ainda existe para o problema.

“Ainda bem que foi agora e não no final”. Inês, 22 anos, não esquece a frase que ouviu do médico que a estava a seguir a sua gravidez. Já Francisca, 24 anos, guarda na memória o dia em que quando foi parar à urgência do hospital, um dos profissionais a tentou animar, dizendo-lhe "És muito nova, ainda podes ter outro”. E Joana, de 30 anos, ainda hoje sabe de cor as palavras que um clínico do Hospital de Portalegre lhe disse quando chegou aflita ao hospital -  “Acha que se ouve o coração? Não está nada aqui dentro”. As três sofreram abortos espontâneos - uma situação que ainda é desvalorizada.

“Apesar de ser uma situação bastante comum, o aborto espontâneo é desvalorizado, principalmente nas urgências dos hospitais, que não estão preparadas para lidar com miúdas que o sofrem, tratando o tema de uma forma bruta”, refere à CNN Portugal Madalena Conceição, médica obstetra.  

Aliás, segundo Eduardo Carqueja, psicólogo, frases como as que foram ditas a Inês, Francisca e Joana são na realidade “extremamente violentas para quem de um momento para o outro vê tudo ao contrário daquilo que estava previsto”.

Se for uma gravidez desejada para a mulher, assim que descobre que está grávida, para ela, já é um filho. Por isso, assim que o perde tem um enorme desgosto, independentemente de ter acabado de ficar à espera de bebé, acrescenta a médica obstetra."

O primeiro aborto espontâneo que Joana Calça e Pina sofreu foi aos 26 anos, quando tentou engravidar pela primeira vez. Estava de 9 semanas e foi numa ida às urgências, após deparar-se com perdas constantes de sangue, que recebeu a notícia. “Acha que se ouve o coração? Não está nada aqui dentro…” - lembra-se de ouvir por parte do médico que a atendeu em Portalegre. Da segunda vez que teve um aborto espontâneo, decidiu fazer análises e descobriu que tinha pequenas tromboses que não permitiam que o bebé crescesse. Por isso, começou a fazer medicação.

Joana Calça e Pina e o seu filho Augusto. Estava à espera da sua filha Conceição.
(FOTO/ Vera Moser)

É “importante que se fale no tema”, frisa Joana, recordando que foi quando começou a partilhar a sua história,que se apercebeu que não estava sozinha. “A dor tornou-se mais suportável”, diz.

Na verdade, estima-se que 26% de todas as gravidezes acabam em aborto espontâneo, segundo o American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG). 

Explicando que “o aborto espontâneo é a perda de um feto antes da 20ª semana de gravidez”,  Madalena Conceição garante que é uma situação que ocorre a grande parte das mulheres que engravidam.“A perda gestacional precoce é bastante comum”, diz, explicando ser ainda mais usual durante a primeira gravidez.

Foi o que sucedeu a Teresa, de 30 anos, na primeira vez que engravidou teve dois abortos espontâneos consecutivos. Mas não deu tanta importância ao primeiro. “Sempre ouvi que era normal”, explica. No entanto, da segunda vez que lhe aconteceu, foi assolada pela preocupação de que talvez nunca conseguisse cumprir o sonho de ser mãe. E, por isso, apesar da tristeza, não descansou até chegar à raiz do problema. “Após vários exames descobri que tinha o gene da trombofilia, que causa abortos repetidos”, detalha Teresa, que conseguiu entretanto engravidar e que agora leva injeções todos os dias.

As razões para que uma gravidez não avance nem sempre são fáceis de perceber, “a maior parte das vezes, quando a mulher nada faz, as causas do aborto espontâneo são desconhecidas e involuntárias”, esclarece a obstetra Madalena Conceição, referindo que “a causa mais comum é genética - como a trombofilia, condição em que há um aumento do risco de formação de coágulos no sangue”.

Também é comum que "a mulher perca um bebé quando simplesmente vai correr a maratona ou trabalhar muitas horas de pé, sem saber que está à espera de bebé”, acrescenta a especialista.

“O aborto espontâneo é comum na gravidez inicial, quando o casal mantém segredo até aos primeiros três meses da gravidez, é sobretudo por isso que o tema se torna tabu”, nota ainda a médica, que sobre a tradição de se esperar para revelar a gravidez, relembra o costume da realeza inglesa que só anunciava a gravidez da princesa após as 12 semanas. “As pessoas imitam a tradição para, tal como a princesa, não verem exposto o insucesso da sua gravidez”, afirma Madalena Conceição

Francisca tinha 22 anos quando teve de enfrentar o primeiro aborto. "Nem 24 horas tinham passado desde que sabia que estava grávida quando comecei a ter perdas de sangue", recorda a jovem, hoje com 24 anos. Naquele dia, à medida que o tempo passou as perdas foram aumentando. De tal forma que teve de ser transportada de urgência para o hospital. “Já era bastante tarde, a médica fez várias perguntas e olhando para o relógio disse-me: "A estas horas quer que eu faça o quê?”, conta Francisca. Fez um teste de sangue e soube que já tinha perdido o bebé.

Sentiu-se fragilizada. "Foram 24 horas de extrema felicidade que caíram a pique", lembra, explicando que apesar de a gravidez não ter sido planeada, "o bebé era bastante desejado".

Na altura, ficou tão perturbada que guardou para si e um núcleo próximo de pessoas o que lhe tinha acontecido: "Fechei-me numa bolha e não quis falar do assunto".

O silêncio é muitas vezes uma forma de reação. Segundo Eduardo Carqueja, esta situação tem vários impactos na mulher ."O aborto espontâneo, para as mulheres, é um sinal de fraqueza e de fragilidade do seu sistema reprodutor, que não foi capaz de levar a gravidez até ao final”.

Foi precisamente o que Inês sentiu quando aos 19 anos perdeu o seu bebé, Melissa.“Senti que ninguém compreendia a minha dor, que tinha falhado enquanto mulher”. 

Atualmente, Inês tem um bebé de um ano chamado Gael.
(FOTO/ Jéssica Pires) 

Também ela se fechou e guardou o que estava a passar. “Apenas partilhei com aqueles que me eram mais próximos”. Os dias não foram fáceis e não esquece os detalhes. Descobriu que estava grávida, algo que não tinha planeado. Corria o ano de 2019 e o namorado, que vivia no estrangeiro, até regressou para acompanhar a gravidez. Mas pouco tempo depois, tudo começou a desabar. "Tive umas dores estranhas e fui ao Hospital de Vila Franca", recorda, contando que chegou a fazer uma ecografia. "Era uma menina e dei-lhe o nome de Melissa".

Mas as dores continuaram e acabou por ser internada. Estava no hospital há uma semana, quando foi à casa de banho e desmaiou. "E ouvi os médicos a dizerem que o bebé não tinha batimentos", diz Inês que não esquece o que se passou depois. "Os médicos tiveram de tirar o bebé. Foi horrível".

Seis meses depois, Inês voltou a engravidar mas também não evoluiu. "Tive uma infeção urinária que provocou contrações e quando cheguei aos hospital disseram-me logo que tinha perdido o bebé". Pouco depois voltou a passar pelo mesmo, pela terceira vez. "Tive mais um aborto, mas dessa vez em casa".

Durante algum tempo Inês Correia não quis contar o que lhe sucedeu, mas desde que se deparou com a página amorparaalémdalua, decidiu "quebrar o tabu" e partilhar com outras mulheres a sua história.

Renata e Cláudia são as fundadoras da página. Também elas tiveram abortos e decidiram ajudar quem passa pelo mesmo uma vez que em Portugal não arranjaram respostas "relacionadas com a perda gestacional”.

Assim, criaram a página para que outras mulheres, que tal como elas, sofreram um aborto espontâneo, pudessem encontrar informação fidedigna e testemunhos que as ajudassem a lidar com a situação. Para além da partilha de testemunhos online, organizam pontualmente encontros presenciais, para que quem passa por esta situação"encontre um colo e um apoio".

Temos mulheres que sofreram um aborto espontâneo há 20 e 40 anos atrás e que só agora é que partilharam as suas experiências, revela Renata."

Amor Infinito nas Estrelas (encontro organizado pelo amorparalémdalua)
(FOTO/ Ana Santos)

Segundo o psicólogo Eduardo Carqueija, “existem três dimensões que envolvem a perda" e que geram um grande sofrimento. Em primeiro lugar, diz, “o facto de ser inesperado traz efeitos devastadores a nível emocional e psicológico”. Em segundo “a dimensão da fragilidade pela incapacidade reprodutiva que as mulheres vivem”. E por último, “a incompreensão dos outros”, a “sensação de não valorização do próprio acontecimento”.

“A destruição dessas expectativas e desejos não é começar do zero, mas sim retomar uma situação que tem previamente um trauma por trás”, nota Eduardo Carquejo, aconselhando as mulheres a não terem medo de recorrer a um psicólogo. Até porque há muitos sonhos envolvidos.

“Quando o casal passa por uma gravidez começa a idealizar o futuro. A pensar se vai ser rapaz ou rapariga, com quem vai ser parecido, como vai ser. É um elencar de ideias futuras que com o aborto espontâneo acabam por desmoronar”, refere o especialista em luto.

Eduardo Carquejo defende, por isso, que para que o aborto espontâneo seja menos tabu, “os profissionais de saúde não devem desvalorizar a perda de uma mulher. "Muitos menos rotularem-nas como ‘histéricas’ ou ‘pouco fortes’”; afirma. 

Além disso, aconselha as pessoas próximas de quem sofre um aborto a “disponibilizar-se para ajudar e acolher o sofrimento ”; e sugere que os casais “não vivam o luto em solidão individual”.

Apesar de terem passado por um ou mais abortos, Inês, Francisca, Joana e Teresa, conseguiram ser mães. Teresa e Francisca estão grávidas; Inês tem um bebé de um ano e dois meses, Gael, e Joana já vai no segundo filho. "Procurei a raiz do problemas e fui a uma médica de fertilidade", reforça Joana que deixa ainda um alerta: "Falem abertamente do tema. É importante não ser um tabu porque quando mais falarmos mais nos apercebemos que não é um problema só nosso, mas que acontece a mesmo muita gente".     

Relacionados

Saúde

Mais Saúde

Mais Lidas

Patrocinados