A Venezuela vai anexar Essequibo? É improvável e os chavistas "devem ficar seriamente preocupados com este falhanço de Maduro"

5 dez 2023, 17:00
Nicolás Maduro após vitória no referendo sobre a anexação de Esequibo (Matias Delacroix/AP)

Vitória do "sim" no referendo de domingo sobre a "recuperação" da região da Guiana deverá ter pouco ou nenhum impacto no terreno. Dois dias depois da votação, amontoam-se dúvidas sobre os reais resultados da consulta e o grande perdedor parece ter sido o próprio presidente venezuelano, que jogou as fichas todas numa reivindicação de soberania com mais de 100 anos, consensual entre um povo que está "mais preocupado com os baixos salários e os fracos serviços públicos"

A notícia chegou há mais de oito anos, mas poucos fora da América do Sul prestaram atenção. A 20 de maio de 2015, dia em que a norte-americana ExxonMobil anunciou a descoberta de vastas bolsas de petróleo e gás natural na região de Essequibo, com um “valor comercial superior a mil milhões de dólares”, o Ocidente estava de olhos postos na Síria, mergulhada numa sangrenta guerra há quatro anos, e no inédito fluxo de refugiados do Médio Oriente e de África para a União Europeia - mais de um milhão chegaria ao bloco até dezembro.

Do outro lado do Atlântico, a crise que se perfilava era outra e estava diretamente relacionada com a descoberta da gigante petrolífera na faixa de território pertencente à Guiana, país com cerca de 800 mil habitantes que partilha 743 quilómetros de fronteira com a Venezuela.

“A Guiana enfrenta neste momento um desafio à sua sobrevivência”, sublinhou na altura David Granger, então presidente eleito da pequena nação sul-americana, numa visita a Washington DC. Um confronto militar direto com a Venezuela por causa destes recursos naturais teria um impacto “devastador” não apenas para a Guiana, avisou, mas para todo o Caribe e o continente americano.

Houve quem, em 2015, antecipasse movimentações imediatas da parte de Caracas, que reclama Essequibo há 111 anos e cujo presidente, Nicolás Maduro, acusa a Guiana e os países que a apoiam de “roubo” através do que classifica de “colonialismo legal”. 

Esse receio não se concretizou, mas ganhou novo fôlego no passado domingo, quando os mais de 28 milhões de eleitores venezuelanos foram chamados às urnas para um referendo de cinco perguntas sobre a “recuperação” daquela região guianense, correspondente a 74% do território do país. 

Uma maioria votou a favor da proposta de Maduro. Mas para os analistas, uma tentativa de anexação da Guiana é altamente improvável. “Este referendo foi mais para consumo doméstico do que parte de uma estratégia genuína para tomar Essequibo”, diz Philip Gunson, do International Crisis Group, à CNN Portugal. “Em teoria, a Venezuela é muito mais forte militarmente do que a Guiana, mas está quase completamente isolada em termos diplomáticos neste assunto, ao passo que a Guiana tem aliados muito importantes, nomeadamente os Estados Unidos.” Para além disso, “Maduro nega qualquer intenção de usar a força e, se o fizesse, o seu Exército enfrentaria sérias dificuldades logísticas”.

Na reação aos resultados, o vice-presidente da Guiana reconheceu a promessa feita pelo presidente venezuelano aos vizinhos caribenhos, mas defendeu que este não é o momento de baixar os braços. “A liderança da Guiana não pode simplesmente ficar-se pelas garantias do governo de Maduro de que não vai invadir o país, temos de estar preparados para qualquer eventualidade”, disse Bharrat Jagdeo. Em entrevista ao Guardian, o ministro guianês dos Negócios Estrangeiros soou igualmente alarmado. "As pessoas na fronteira estão muito preocupadas", disse Hugh Todd. "Maduro é um déspota e os déspotas são muito difíceis de prever."

“Um domingo normal”

Ex-correspondente da Economist e especialista do ICG na região dos Andes, Gunson vive há mais de 25 anos na capital da Venezuela e não tem dúvidas quanto ao que esteve em jogo no fim de semana, embora levante questões sobre a real participação na consulta.

A Comissão Nacional Eleitoral alega que mais de 10.4 milhões de venezuelanos foram às urnas no domingo, cerca de 40% da população, numa altura em que dados da ONU indicam que oito milhões de pessoas terão abandonado a Venezuela nos últimos anos face à profunda crise económica que o país atravessa. Contas feitas, a aritmética não bate certo.

“É impossível que tanta gente se tenha mobilizado por todo o país sem alterações notórias no trânsito e sem filas nas estações de voto. As autoridades eleitorais, controladas pelo governo, não apresentaram quaisquer provas que sustentem [os resultados] e a forma como os números foram apresentados levanta dúvidas consideráveis. Em Caracas foi um domingo normal, o que coincide com relatos chegados de outras partes da Venezuela.”

“Maduro alega que 95% [dos que participaram] votaram a favor de reclamar Essequibo, mas a questão é quantas pessoas realmente votaram, com alguns observadores a falarem inclusivamente em fraude”, adianta Annette Idler, professora associada de Segurança Global na Blavatnik School of Government, da Universidade de Oxford. “O que é claro é que ninguém assistiu a uma participação massiva nas ruas de Caracas no domingo. Na verdade, o que é mais provável é que menos de 1,5 milhões de pessoas tenham votado, o que corresponde a menos de um décimo da população da Venezuela.”

Durante a campanha para o referendo, o governo não poupou esforços para tentar mobilizar a população, que historicamente reivindica Essequibo à Guiana mas que, como aponta Gunson, “está mais preocupada com os baixos salários e os fracos serviços públicos” do que com aspirações de soberania com mais de um século.

Foram várias as intervenções do presidente na televisão, com lições de História sobre a região integrada na Guiana britânica no século XIX através da chamada Linha de Schomburgk, na raiz da atual disputa. Maduro chegou a interromper aulas numa escola, distribuindo mapas com Essequibo como o 24.º estado venezuelano e pedindo aos alunos que entoassem consigo a canção “Essequibo é nosso”. O momento foi partilhado na sua conta oficial do TikTok, numa clara tentativa de atrair o eleitorado mais jovem. Já no rescaldo dos resultados, prometeu “uma nova e poderosa etapa” no diferendo. “O povo falou alto e claro. Temos o mandato do povo”, adiantou o chefe de Estado, reforçando que a população sabe que “a Venezuela tem um sistema eleitoral transparente e fiável”.

Um bluff falhado, um tiro no pé?

Idler também fala numa “votação que foi sobretudo fogo de vista”, com o claro objetivo de “aumentar o apoio interno a Maduro antes das eleições do próximo ano”. Mas o bluff de Maduro parece ter saído furado.

“A questão de Essequibo tem o potencial de estimular este sentimento nacional e [Maduro] pensou que poderia ajudá-lo a ganhar as eleições. [Mas] é improvável que tente realmente anexar a região, sobretudo porque isso levaria à reimposição de sanções pelos EUA, o que poria a economia venezuelana, já de si em crise, numa situação difícil”, diz a especialista. Os países vizinhos seriam forçados a reagir e “as capacidades do Exército da Venezuela não seriam suficientes para confrontar uma Guiana potencialmente apoiada pelo Brasil e pelos EUA, pelo que qualquer ação da parte de Maduro só o poria numa situação ainda pior".

Mas e se o presidente venezuelano quisesse, mesmo assim, avançar com a anexação? “Bom, Maduro não pode simplesmente enviar uma coluna de tanques pela fronteira, porque não há estradas a ligar a Guiana e à Venezuela e grande parte do território do outro lado é montanhoso ou está coberto por uma selva impenetrável”, responde Gunson. “A única via seria através do Brasil, isto numa altura em que o Exército brasileiro está já sob alerta por causa do referendo.”

Mapas e censos demonstram bem a preponderância geográfica e demográfica da Venezuela face à Guiana, mas no caso de uma invasão, a pequena nação teria outros trunfos na manga para além destes apoios de peso. “Uma das poucas vantagens militares que os guianenses têm é que as suas forças especiais são altamente especializadas em guerra na selva. A concretizar-se, o cenário mais provável seria o de confrontos armados via mar, especialmente dado que a Venezuela também reclama as águas territoriais onde petrolíferas estrangeiras têm concessões de exploração emitidas pela Guiana”, explica o analista do ICG, reforçando a mesma ideia de Idler sobre a óbvia e “imediata” retoma das sanções norte-americanas à Venezuela caso Maduro escolhesse atuar sobre os resultados do referendo.

As sanções são algo que o presidente venezuelano “está empenhado em evitar”, indica Gunson, e mesmo sem manobras militares à vista no curto prazo, essa já é uma ameaça latente, “porque Washington diz que [Maduro] não está a cumprir o seu lado do acordo, isto é, a melhorar as condições para as eleições presidenciais do próximo ano”. Entre outros motivos está o facto de o Supremo Tribunal de Justiça ter decidido suspender a eleição de Maria Corina Machado nas primárias do principal partido da oposição no final de outubro.

No contexto da disputa por Essequibo, é o Tribunal Penal Internacional (TPI) quem tem um “papel muito importante” a desempenhar, adianta Idler, sobretudo depois de este ano, na sequência de um pedido da Guiana em 2018, ter sido confirmado que é a alta instância judicial da ONU quem tem jurisdição sobre a matéria.

“Maduro pediu ao secretário-geral da ONU que ajude a resolver a disputa, mas o referendo não demonstra boa vontade da sua parte para resolver a situação de forma pacífica”, refere a analista de Oxford. “Em última instância, é importante que toda a comunidade internacional continue a prestar atenção a isto e a deixar claro que qualquer ato de anexação seria inaceitável.”

Não é certo, para já, quando chegará a sentença do TPI, mas “qualquer decisão será internacionalmente vinculativa”, ressalta Philip Gunson, mesmo após uma aparente maioria dos eleitores ter alinhado com Maduro quanto ao não-reconhecimento da jurisdição do tribunal. “Se o governo de Maduro não reconhecer a jurisdição do TPI e falhar em apresentar um caso apropriado em Haia, serão os próprios interesses da Venezuela a saírem danificados.”

Apesar das alegações públicas sobre a votação, “o governo deve ficar seriamente preocupado com o falhanço de Maduro em mobilizar a população” para esta consulta, acrescenta. “Esta questão vem somar-se aos apelos no interior do chavismo para que apresente um candidato diferente às presidenciais do próximo ano. Maduro vai resistir e um dos fatores que deverá determinar a evolução da situação será a tensão dentro do seu partido, bem como entre os militares, de quem Maduro depende para continuar no poder.”

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