Porque é que Putin vai arrepender-se de ter iniciado esta guerra (Opinião)

CNN , Opinião de Peter Bergen
7 mar 2022, 19:00
Guerra

O ataque de Vladimir Putin à Ucrânia superou os recursos que ele lhe dedicou? Essa é a opinião do major-general na reserva do Exército dos EUA, Mike Repass, que tem uma visão informada sobre o conflito, tendo trabalhado no setor da segurança ucraniana desde 2016.

Como antigo comandante do Comando de Operações Especiais dos EUA na Europa, Repass providenciou educação e apoio consultivo aos militares ucranianos sob contrato do governo dos EUA.

Em conversas mantidas quinta e sexta-feira, falei com Repass sobre as razões para uma nova liderança e o treino aperfeiçoado dos militares ucranianos terem melhorado marcadamente o seu desempenho nos últimos anos; sobre o tipo de armas antiaéreas e antiblindados que os ucranianos esperam que os EUA e os seus aliados da NATO lhes forneçam; e também sobre o que ele antecipa que aconteça à medida que avança a guerra na Ucrânia.

Ele prevê uma campanha dos russos que pode transformar as cidades da Ucrânia em escombros, criando uma crise de refugiados que sobrecarregará os países limítrofes e desestabilizará a Europa Central e de Leste.

Mas Repass acredita que, embora os russos possam derrotar a dura defesa da Ucrânia, não conseguirão manter o controlo do país porque Putin não tem forças suficientes no teatro de operações para ocupar grandes áreas da Ucrânia, indefinidamente. Em suma, Putin deu um passo maior do que a perna.

Informação: Repass faz parte do conselho consultivo da Fundação Global Special Operations, onde eu sou o presidente da administração. A nossa conversa foi editada por questões de clareza e duração.

Repass: A verdade é que os militares ucranianos têm-se saído excecionalmente bem na guerra, até agora. A Rússia terá muita dificuldade em subjugá-los porque eles estão dispostos a lutar até que se torne aparentemente “fútil”, ou até que não tenham mais recursos para fazê-lo.

Os ucranianos foram ultrapassados pela tecnologia russa e superados em número de soldados e de armas – pelos carros de combate russos, a artilharia, os mísseis de precisão de longo alcance, os veículos blindados de transporte de pessoal - mas o terreno favorece os defensores, especialmente no norte e no leste da Ucrânia, embora menos a sul.

Acho que o tempo e os números estão do lado russo, e eles serão capazes de criar condições para a paz adequadas ao gosto de Putin ou então destruirão completamente as cidades da Ucrânia e os militares ucranianos com elas, o que para mim ainda deixa um cenário de resistência para os ucranianos. Portanto, existem vários futuros plausíveis.

Bergen: Porque estão os ucranianos a lutar melhor do que muitos esperavam?

Repass: Não estou surpreendido com quão bem o exército ucraniano está a lutar. Estou surpreendido com a letargia do ataque russo. Parece ser lento e penoso, a norte. A leste, estão a ser fortemente contrariados. A sul, parecem estar a fazer um progresso constante.

Putin esperava que os ucranianos capitulassem como fizeram em 2014, quando ele tomou a Crimeia, mas, no geral, a NATO e os EUA fizeram um trabalho magnífico a treinar os militares ucranianos, a reabilitá-los e a transformá-los numa força de defesa nacional viável, desde 2014. A diferença entre essa altura e agora é que a liderança da Ucrânia está decidida a unir-se ao Ocidente, a nível político, militar e económico.

Do lado militar, o presidente Zelensky herdou um grupo velho de homens que ele entretanto substituiu. A liderança militar que ele apresentou no ano passado, é constituída por generais mais jovens que serviram juntos na região de Donbas, no combate contra os russos. A liderança que ele tem no lado militar é muito mais envolvida e muito mais influente.

Zelensky também tem um novo Ministro da Defesa. O ministro anterior não estava à altura da tarefa por várias razões, portanto, ele chamou Oleksiy Reznikov, que tem sido excecional.

Portanto, a nova liderança acelerou o ritmo das reformas que eram necessárias. Se tivessem tido mais um ou dois anos, estes militares estariam num ponto completamente diferente, muito mais em linha com uma força armada de um país da NATO.

Visitei 100, 150, 200 unidades táticas em vários lugares - no Afeganistão e no Iraque, onde servi em duas comissões de combate - e sei instantaneamente, quando entro num ambiente de unidade tática, qual é a dinâmica existente. Quando visitei uma unidade das Forças Especiais Ucranianas em setembro, senti imediatamente que aqueles homens estavam bem treinados. Pareciam os nossos. Tinham os mesmos maneirismos. Tinham os mesmos processos de planeamento.

Bergen: Pensei que o ataque de Putin à Ucrânia seria como o exército dos EUA a tomar Bagdade, em 2003, e que os russos decapitariam rapidamente o regime ucraniano.

Repass: Acho que era isso que o mundo esperava. Portanto, estrategicamente, a mentalidade da NATO era: “Não nos vamos envolver porque, quando nos comprometermos com isso, quando estivermos prontos e determinados, a maldita coisa estará terminada. Portanto, não vamos arriscar o capital político com outra potência nuclear para fazer isso.” No entanto, agora, temos outra realidade geoestratégica, ou seja, a defesa ucraniana é muitíssimo viável. Acho que os ucranianos estão na vanguarda da proteção das democracias liberais da Europa.

Bergen: Para os ucranianos, que armas são necessárias agora da NATO e dos EUA? Ou estamos no ponto em que é demasiado tarde para receber armas por causa de questões logísticas?

Repass: Não, não é demasiado tarde. Todos os comandantes táticos ucranianos pedem defesa antiaérea e armas antiblindados. Querem armas de defesa aérea como Stingers ou SA-7, e querem armas antiblindados. Eles sabem onde está o inimigo. Sabem como chegar até ele, mas não têm os meios no terreno.

Há congestionamento no corredor de entrega de armas da NATO porque a "torneira" só foi aberta há uns dias, e ainda não chegaram às unidades táticas ucranianas.

Não estou a falar pela NATO de maneira nenhuma naquilo que vou dizer a seguir, mas uma das coisas principais seria terem um sistema de comunicações comum. Neste momento, existem comunicações diferentes e complicadas entre os comandos ucranianos e as nações que estão a providenciar apoio.

Em segundo lugar, como não é uma operação da NATO, a NATO não respondeu de uma forma formal para criar centros de coordenação de movimento e de controlo logístico. Portanto, há muita coisa improvisada a acontecer com a ajuda dos que querem e podem, criando redes de transporte e de logística. Há muito trabalho que pode ser feito por cada um dos diferentes estados-membros da NATO para reforçar a eficiência e a eficácia e para acelerar a entrega do armamento letal.

Bergen: Porque está um comboio militar de 60 quilómetros de comprimento na estrada a tentar tomar Kiev? Parece uma abordagem estranha.

Repass: Sim, toda a gente está intrigada com isso. Há algumas coisas que acho que contribuem para isto. Agora, tem 60 quilómetros, mas o comboio começou em segmentos. E esses segmentos levavam entre 50 e umas duas centenas de veículos, de cada vez. A ideia era esses segmentos serem destacados, mas depois o congestionamento começou a acontecer devido às vítimas dos combates e às avarias.

Além disso, se os veículos e os carros de combate saírem daquela estrada, vão ficar atolados. Há lama na região que se mantém durante a primavera, a partir de agora e durante cerca de seis semanas.

Portanto, a mobilidade fora das estradas é extremamente limitada na zona norte do país. Já na região sul, esse problema não existe. E é por isso que não vemos estes comboios gigantes a sul. Só os vemos a norte onde sair da estrada é um problema.

Bergen: Porque foi isto tão mal planeado, ou era apenas por ser provável que não corresse bem por causa das circunstâncias meteorológicas a que assistimos?

Repass: Presumimos que os russos são capazes de um planeamento com eficiência, mas também são capazes de fazer maus planos. Não fizeram este nível de planeamento e execução em nenhum dos exercícios de treino. Portanto, de certa forma, não estão familiarizados com os aspetos de manobra e logística daquilo que estão a tentar fazer.

Bergen: O que se segue?

Repass: Uma campanha russa para transformar as cidades em escombros, criando uma crise de refugiados, sobrecarregando as fronteiras e as nações fronteiriças e desestabilizando a Europa Central e de Leste.

Vão atacar a infraestrutura do governo e, em seguida, os meios de comando e controlo - comunicações públicas, internet, torres de rádio, torres de telecomunicações – tudo o que puderem fazer para interromper as comunicações e para separar as pessoas do governo.

Com esta campanha, querem criar um enorme choque e pânico na sociedade, assim criando desafios complexos para o governo e degradando a vontade do povo.

Já mais de um milhão de refugiados cruzaram as fronteiras, de uma população total de cerca de 41 milhões. E o número de refugiados vai subir significativamente. Teremos vários milhões de pessoas a fugir para oeste.

É provável que a Bielorrússia e a Rússia declarem a lei marcial e, assim, poderão reprimir todo e qualquer tipo de discurso público, média, internet e diminuir qualquer potencial de resistência ou tentativas de golpe de estado nos seus países.

Provavelmente irão combinar forças, avançar para selar a fronteira ocidental da Ucrânia, primeiro, para criar um desastre humanitário ainda maior na Ucrânia. Depois, cortam qualquer reabastecimento vindo do Ocidente.

Acho que, neste momento, os militares da Ucrânia continuarão a lutar principalmente a oeste do rio Dnieper. Noutros lugares, principalmente nos centros urbanos ucranianos, haverá uma insurgência. Vai aparecer uma resistência, quer seja planeada ou orgânica, e os seus membros infligirão dor e destruição aos russos, na medida em que puderem.

É aqui que entra em jogo o termo “indigesta”. Os russos até podem conseguir consumir a Ucrânia, mas não a conseguirão digerir. Será um grande sofrimento mantê-la e, eventualmente, terão de cuspi-la de volta. Em essência, o custo da ocupação é demasiado grande quando comparado ao que com ela ganham.

Os russos podem acabar por controlar as áreas urbanas, mas há vastas regiões entre elas - estão distanciadas entre 50 a 80 quilómetros - onde não há nada. Há muitas pequenas aldeias e vilas que não são controladas pelos russos.

A devastação vai horrorizar a Europa e a América do Norte. O argumento de não-intervenção acabará por ser anulado por causa do problema do sofrimento humano. Aí talvez uma coligação de voluntários possa impor algo como uma zona de exclusão aérea ou locais seguros para os refugiados e os cidadãos das principais áreas metropolitanas.

Bergen: Então, esses locais seguros podem ser como o tipo de locais que os EUA criaram no Curdistão, no Iraque, em 1991?

Repass: Sim, algo assim, no oeste da Ucrânia.

Bergen: Qual é o mínimo que Putin quer alcançar na Ucrânia?

Repass: A única coisa crítica que Putin tem de ter é o controlo do Canal da Crimeia do Norte.

Bergen: Porquê?

Repass: Porque quando ele invadiu a Crimeia e Donbas, em 2014, os ucranianos fecharam a fonte do Canal da Crimeia do Norte no rio Dnieper. Portanto, acabou por secar e, desde então, têm contado com água subterrânea na Crimeia, mas essa água subterrânea também secou. Portanto, até agora, Putin não tinha água potável na Crimeia.

Os russos capturaram o Canal da Crimeia do Norte e a água potável acabou de voltar à Crimeia nos últimos dias. Portanto, essa é a única coisa que ele tem mesmo de ter.

O que ele também queria ter era uma ponte terrestre de Donbass até à Crimeia, e garantir o controlo dessa rota terrestre e da fonte do Canal da Crimeia do Norte, no rio Dnieper. Essencialmente, ele teria de ter o controlo de todo o território a leste do rio Dnieper, subindo até Kiev e depois fazendo um arco para o norte e leste, até Donbas. Se Putin conquistar terras suficientes a leste do rio Dnieper, então estará disposto a negociar tudo o resto.

Mas mesmo com o território geográfico que acabei de descrever, os cerca de 175 000 soldados de Putin que estão atualmente destacados na Ucrânia e à volta do país, não são suficientes para manter o controlo dessa geografia.

Bergen: De quantos homens precisaria Putin para controlar o território?

Repass: É difícil saber.

Os russos devem ter pessoas suficientes para coagir os 41 milhões de ucranianos a cooperar com o governo russo. Foi necessária uma grande parte da Frente Oriental do Exército Alemão para subjugar os ucranianos, para que pudessem prosseguir a campanha para o sul da Rússia, durante a Segunda Guerra Mundial.

Portanto, não vejo como Putin conseguirá fazer isso.

Acho que as democracias liberais do Ocidente têm tanto uma obrigação moral quanto um imperativo político de apoiar uma nação que luta pela sua independência e pela busca de uma ordem política liberal segundo a tradição ocidental. Se não for aqui, onde nos vamos posicionar contra as forças autocráticas e revisionistas? O que devem a Geórgia e o Azerbaijão concluir da nossa timidez diante do mal? Certamente, Taiwan é o próximo.

Acredito que o ataque da Rússia à Ucrânia é a vanguarda dos estados militarmente fortes que atacam os mais fracos. Poucos de nós pensavam que estaríamos nesta situação, mas assim é. O que vamos fazer agora?

A história tem sido cruel com as nações quando elas toleram ou aplacam tal agressão. Os conceitos de integridade territorial e democracia não podem terminar nas fronteiras da NATO. Deve o resto do mundo ser deixado aos lobos enquanto existe apenas uma ilha de segurança? O ataque da Rússia à Ucrânia não pode ter sucesso, se esperamos construir e manter os benefícios da democracia além das fronteiras da NATO.

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