Em Kupyansk os habitantes “já perderam o seu instinto de proteção”

Agência Lusa , Henrique Botequilha
10 fev, 08:32
Kupyansk (Associated Press)

Kupyansk esteve ocupada nos primeiros seis meses de guerra e, desde então, é acossada pelas forças russas, numa ameaça permanente que já levou a vida de civis e conduziu a diversas ordens de retirada da população face à intensidade dos bombardeamentos.

Desde o início da guerra, Kupyansk já foi russa e voltou a ser ucraniana, mas sempre acossada pelas tropas de Moscovo, que persistentemente desafiam os habitantes restantes e o seu “instinto de proteção”, mas não a crença na vitória.

Paira uma sensação de desolação em Kupyansk, desde logo porque em todo o município faltam 50 mil residentes aos 57 mil existentes antes do início da invasão russa, em 24 de fevereiro de 2022, nas ruas enlameadas sem o movimento habitual em qualquer cidade, por onde vagueiam raros moradores e cães abandonados.

Nesta cidade emblemática da região de Kharkiv, no nordeste da Ucrânia, a maioria das lojas foi encerrada, diversas casas e prédios ficaram destruídos e os que restam de pé estão quase desabitados, com todas as suas janelas protegidas das ondas das explosões.

Em seu lugar, as artérias da cidade de Kupyansk, que empresta o nome a todo município, foram tomadas pela atividade militar constante, visível na azáfama de homens fardados e postos de controlo, a par da circulação de camiões do Exército, viaturas logísticas, blindados e tanques.

As linhas russas estão a apenas sete quilómetros, atrás de pequenas colinas cobertas de mato rasteiro. É para lá que se dirigem tiros de artilharia que se escutam ao longe. São ucranianos.

Kupyansk esteve ocupada nos primeiros seis meses de guerra e, desde então, é acossada pelas forças russas, numa ameaça permanente que já levou a vida de civis e conduziu a diversas ordens de retirada da população face à intensidade dos bombardeamentos.

As últimas notícias dão conta de uma colossal mobilização de 40 mil soldados russos e centenas de carros de combate para fazer um assalto decisivo a esta cidade, supostamente como ‘prenda’ para o líder do Kremlin, Vladimir Putin, na sua esperada reeleição no próximo mês de março e na entrada para o terceiro ano da invasão.

“A situação é muito difícil, mas não há qualquer razão para alarme”, assegura Andrii Besedin, chefe da administração militar da região de Kupyansk-Hromada, falando à Lusa no seu ‘bunker’ instalado na cave de um prédio, sem janelas, e paredes forradas de bandeiras de unidades ucranianas que protegem este setor de elevada atividade de guerra e que já produziu vários “Heróis da Ucrânia”, a mais alta condecoração do país, alguns a título póstumo.

Segundo Besedin, as forças russas “atacam com tudo o que têm”, sobretudo as infraestruturas mais críticas, “mas é assim desde o início” da invasão, altura em que tropas de Moscovo ocuparam a região, tendo sido repelidas seis meses mais tarde. Mas não desistiram.

Desde partir da libertação de Kupyansk, prossegue o administrador militar, o exército russo mantém a cidade sob mira e, mesmo quando teve superioridade em homens e munições, “a situação não se alterou”, com a linha da frente a mover-se apenas “cem metros mais para a frente ou mais para trás”.

Isso explica, de acordo com o responsável, a forma como a cidade é fustigada em bombardeamentos aéreos e de artilharia e o comportamento de “um inimigo que só destrói”.

“Antes da guerra, as pessoas viviam as suas vidas normais com as suas esperanças”, recorda. Depois, a grande maioria partiu, metade para a parte oeste da Ucrânia, outra metade para a Rússia.

Para os que ficaram, e ao fim de quase dois anos de conflito, uma coisa Besedin está certo de que mudou: “O pior disto tudo é que as pessoas perderam o seu instinto de proteção mais básico. Não morrer. Isso desapareceu”.

Como exemplo, conta que mandou instalar abrigos em betão junto às paragens de transportes públicos, como proteção para os bombardeamentos, mas para nada: “Nunca lá vi uma única pessoa. Todos se habituaram em demasia a esta rotina de guerra”.

Ao longo da manhã, os alarmes de ataque aéreo soaram várias vezes. As escassas pessoas apanhadas na rua pelo toque repetitivo não aceleram passo e seguem o seu caminho com o mesmo vagar.

O administrador militar não era assim quando se mudou de Borawa, noutra parte da região de Kharkiv, para assumir as atuais funções, logo após a libertação de Kupyansk. Olhava em redor, sobressaltado, e imitava o que os outros faziam: “Agora sou como eles”.

No dia-a-dia, cabe-lhe lutar contra a indiferença e fazer a vida do município prosseguir. As estradas que ficam em mau estado no inverno são reparadas de pronto, o que é demonstrado, a poucos passos do seu ‘bunker’ pela polícia a encher uma rua esburacada com brita, entre uma moldura de montes de neve suja.

Três hospitais e várias pequenas unidades locais de saúde estão a funcionar nas três cidades que integram o município, mais três escolas e instituições de justiça, as companhias de gás eletricidade, água, gás e comunicações reparam rapidamente o que os bombardeamentos danificaram e o lixo é sempre recolhido, descreve o administrador.

“Os soldados estão a dar as suas vidas na linha da frente e cabe-nos a nós garantir que tudo funciona para que a vitória seja aclamada”, justifica Andrii Besedin, referindo que muita coisa pode ter desaparecido em Kupyansk, mas não a crença de que esse dia chegará: “Se a perdermos, também perdemos a guerra”. Mais do que isso, porque “o que acontecer aqui será uma lição para todo o mundo civilizado de modo a que nunca mais se repita”.

“Kupyansk – Inconquistável, Inquebrável, Ucraniana!”, este é o título de um livro mandado fazer pelas autoridades locais sobre a cidade, após a invasão russa. Nas suas páginas, veem-se os principais cartões de visita “antes e depois dos mísseis”, na documentação das feridas de guerra abertas pelos raides aéreos, que atingiram hospitais, escolas, habitações, a sede do município, mercados, fábricas e instalações desportivas – “30% da comunidade foi destruída”, na estimativa oficial ucraniana.

As forças russas tomaram a cidade em 27 de fevereiro de 2022, três dias apenas depois do início da invasão e manifestações contra os ocupantes foram reprimidas com gás lacrimogéneo e o seu principal organizador foi levado para parte incerta até hoje, bem como outras pessoas que desapareceram nos seis meses seguintes.

Durante este período, a cidade ficou sem comunicações, o que deixou a população “cara a cara com os ocupantes sob total influência da propaganda russa” e os suspeitos de ativismo ucraniano terminaram nas “caves”, ou câmaras de tortura, mas o seu número permanece desconhecido porque a documentação foi destruída no fim da ocupação. As lojas e farmácias ficaram sem produtos ucranianos, que acabaram por ser substituídos por bens de origem desconhecida e bastante caros.

Svetlana, 43 anos, lembra-se bem desses dias. É habitante de Kivsharivka, uma das três cidades que compõem o triângulo de Kupyansk, e uma vez por semana ajuda a organizar a distribuição de ajuda alimentar fornecida pela organização não-governamental Global Empowerment Mission (GEM)

Durante a ocupação, recorda, os russos davam senhas de acesso a bens, mas isso implicava uma viagem de 15 quilómetros até à cidade de Kupyansk que muitos não podiam pagar, permanecer 24 horas nas filas e “talvez em quatro ou cinco dias obter alguma coisa”. A comida não prestava. Muitos sobreviveram porque conseguiram armazenar bens quando a guerra parecia iminente, outros subsistiram com vegetais das suas hortas e que se tornariam na “moeda de troca” local.

“Não havia água, eletricidade nem gás. Agora, se alguma coisa falha, o Governo resolve. Acho que antes da guerra até vivíamos pior”, ironiza a atual voluntária da GEM na pequena cidade que se sustentava no setor florestal, metalomecânica e produtos das quintas e de onde a maioria da população partiu.

Svetlana foi uma das 2.200 que ficou. Tem familiares idosos e um cão grande e, tal como a maior parte dos atuais residentes, que são pensionistas, eles precisam de ajuda do exterior porque a economia da cidade foi substituída pela guerra.

À chegada da carrinha da GEM a Kivsharivka, assinalada por um monumento de um velho jato militar soviético, o silêncio nas artérias cinzentas numa manhã gelada é interrompido pela saída apressada de moradores dos seus blocos de apartamentos, que formam uma geometria perfeita e que se mantêm intactos: “Aqui os mísseis passam por cima de nós. Vão para Kupyansk”, satiriza de novo Svetlana.

Os moradores vão receber farinha, açúcar massas, óleo, leite, vegetais, biscoitos, atum e frascos de carne, acondicionados em caixas individuais e que garantem a subsistência a cada família durante cerca de um mês.

“Estamos na zona vermelha, esta ajuda é muito importante porque não queremos morrer de fome”, resume Luba, 62 anos, que recebeu uma das 195 caixas entregues em Kivsharivka, ao som dos tiros da artilharia, que volta a fazer-se ouvir.

Luba tem saudades da União Soviética, diz que naquele período não lhe faltava nada e “nada melhorou nos últimos 30 anos” de independência da Ucrânia. Mas, como o tempo não anda para trás, entre ser russa e ucraniana, abre um sorriso com três dentes de ouro e escolhe: “Esta é a nossa casa e os russos não foram convidados. Ucraniana!”

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