"Tinha falta de pudor mas não tinha tendências quase fascizantes e autoritárias": Berlusconi (1936-2023) por quem o conheceu (e por quem o estudou)

12 jun 2023, 14:52

Apareceu na política italiana para salvar um sistema podre que ajudou a criar. "Uma das motivações dele para ir para a política foi tentar não ser preso." Silvio Berlusconi morreu esta segunda-feira aos 86 anos. "O que ele queria mesmo era viver a vida, ter poder e não ser incomodado - e conseguiu isso." E quem o conheceu diz que entre o populismo de Berlusconi e o de Trump há um universo de semelhanças que choca numa diferença que é fundamental para os distinguir

“Era um homem pícaro, com uma grande ideia de si próprio.” O embaixador Fernando Neves conheceu pessoalmente Silvio Berlusconi quando era embaixador de Portugal em Itália, uma fase que coincidiu com o quarto e último governo do ex-primeiro-ministro, entre 2008 e 2011.  Para Fernando Neves, uma personalidade como Berlusconi só podia resultar em Itália, um país com “caraterísticas muito próprias”. “Ele dizia-se um conservador mas a sua vida privada não correspondia sempre aos seus valores. Fez coisas altamente censuráveis.”

Já por essa altura o então primeiro-ministro italiano tinha “três centímetros de pasta na cara”. A “pasta” de que Fernando Neves fala é a base, um dos utensílios indispensáveis no dia a dia de Berlusconi, que até ao fim não abdicou de cirurgias estéticas, de pintar o cabelo e de se maquilhar para parecer bronzeado. “Era muito impressionante estar ao pé dele”, refere o embaixador, falando de uma pessoa que “nunca conseguiu abandonar aquele ar de animador dos cruzeiros”, numa alusão aos primeiros anos de carreira de Berlusconi, que cantou em navios.

O historiador Manuel Loff tem o mesmo entendimento: Berlusconi “tinha a aparência de acompanhar a liberalização mas o tom era conservador”. Manuel Loff estava a completar o doutoramento em Itália quando Berlusconi apareceu na política - e por isso lembra-se bem de um episódio que o marcou: “Foi num 25 de Abril, também feriado em Itália, em que Berlusconi, que tinha sido acusado pela própria mulher sobre a forma como tratava as mulheres, decidiu cumprimentar a presidente da câmara baixa do parlamento com uma palmada na nádega”.

"Não ser preso"

Apesar de 30 anos marcados por polémicas e casos judiciais - que foram da corrupção à prostituição de menores -, Fernando Neves e Manuel Loff reconhecem um mérito a Berlusconi: fazer a Itália renascer num período crítico. Em 1993, o sistema político italiano estava podre, havia corrupção generalizada, relembra Manuel Loff, que viveu de perto no país a transformação em curso à época. “Era o momento em que estava a cair um sistema de corrupção generalizada. Hoje vai-se fazer um grande elogio a Berlusconi - ele é responsável por uma mudança estrutural do sistema político italiano”, explica o historiador.

Esse mérito deve-se não tanto pela forma como foi feito mas mais pelo facto de ter sido feito, uma vez que era complexo. E a ascensão de Berlusconi também trouxe outra mudança: “Ele tornou permanente uma grande consideração da direita clássica. Criou um partido como uma verdadeira empresa associada permanentemente às duas forças de extrema-direita”, nota Manuel Loff, falando dos Irmãos de Itália e da Liga, hoje até mais fortes que o Força Itália de Berlusconi.

De resto, Manuel Loff destaca que a degradação do sistema político italiano também foi provocada em parte pelo próprio Berlusconi, era ele apenas um empresário. “Um sistema pelo qual ele era responsável, corrompendo políticos e responsáveis da área da justiça”, acrescenta.

Fernando Neves também aponta a estabilidade como o grande mérito de Berlusconi, mas ressalva: “Uma das motivações dele para ir para a política foi tentar não ser preso”. É que já nessa altura havia escândalos associados - a tal corrupção de que faria parte para obter benefícios fiscais e empresariais.

“Ele conseguiu que as duas câmaras do parlamento italiano aprovassem leis a seu favor. Havia uma altura em que estava a ser julgado e a principal prova eram documentos falsos. Depois saiu uma lei a dizer que a falsificação de documentos não podia servir de prova”, recorda o embaixador, dando um exemplo de uma lei feita à medida do primeiro-ministro. “Ele tinha muitas caraterísticas italianas, talvez por isso aguentou tanto tempo”, vinca Fernando Neves, sublinhando que Berlusconi foi o homem que mais tempo esteve à frente de um governo em Itália desde a Segunda Guerra Mundial.

No fim, Fernando Neves fica com a ideia de que não houve nenhuma reforma relevante de Berlusconi como primeiro-ministro, deixando um legado de grande dívida pública e resultados económicos trágicos, que culminaram na sua demissão final, em 2011. “O que ele queria mesmo era viver a vida, ter poder e não ser incomodado - e conseguiu isso”, conclui.

Sem a tendência "fascizante"

Fernando Neves tinha acabado de chegar a Itália, dominava o idioma italiano de forma "débil" mas ficou logo marcado por um episódio: Berlusconi estava nos seus canais de televisão a contar uma anedota sobre dois carabinieri que tinham ido à caça de comunistas. "Ele considerava-se acima da lei", aponta o embaixador, que vê uma "falta de respeito, de valores e de princípios" na figura do antigo primeiro-ministro. Caraterísticas que encontra presentes noutro político atual, Donald Trump.

É aquilo a que Manuel Loff chama "falta de pudor", uma caraterística que também entende que Berlusconi partilhava com Benito Mussolini, ditador italiano responsável pelo nascimento do fascismo.

Sobre as comparações com Trump, o historiador não tem dúvidas: "Foi o percursor de Trump. Para quem conhece Berlusconi, Trump não é nada de novo, até fisicamente eram parecidos. Os dois têm uma postura muito semelhante, mas Berlusconi foi o primeiro".

Fernando Neves não vai tão longe. Existem parecenças, sim, "mas não havia tendência quase fascizante e autoritária".

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