"Apenas Napoleão fez mais do que eu fiz. Mas eu sou definitivamente mais alto": Silvio Berlusconi 1936-2023

12 jun 2023, 12:16

Apesar das condenações por crimes no exercício da atividade política, sempre disse nunca ter cometido um único erro. Morreu esta segunda-feira, tinha 86 anos

“Não te preocupes, Samantha, eu certifico-me de que algum assessor me obriga a sair do jacuzzi antes de as prostitutas chegarem”: era 2010 quando o então primeiro-ministro do Reino Unido David Cameron disse isto à sua mulher - procurava tranquilizá-la sobre a ida a Itália, onde se ia reunir com Silvio Berlusconi. As conhecidas festas do “Bunga Bunga” já eram do conhecimento público, mas a frase do britânico, que consta numa biografia do antigo primeiro-ministro italiano, só vinha confirmar os rumores de que havia grandes orgias patrocinadas por Berlusconi. O burlesco tinha chegado ao Palácio Chigi.

O gosto assumido por mulheres bonitas, incluindo acompanhantes de luxo, acabou por valer a Berlusconi um pedido de divórcio em 2009, bem como um processo por prostituição de menor e abuso de poder. Uma das figuras centrais era marroquina Karima El Mahrug, conhecida como Ruby Rubacuori (Ruby Rouba-corações), e havia ainda as chamadas festas "Bunga Bunga" - o escândalo ficou conhecido como "Rubygate", que envolveu o pagamento de milhares de euros à jovem.

Berlusconi nunca escondeu uma postura narcisista e egocêntrica, optando regularmente por cirurgias estéticas, base carregada e cabelo pintado, fazendo com que parecesse sempre mais novo do que na realidade era. A excentricidade é um dos legados que ficam daquele que foi primeiro-ministro de Itália em quatro ocasiões - antes e depois foi também um magnata, sendo que ainda no início deste mês figurava na lista das pessoas mais ricas de Itália, com uma fortuna avaliada em 6,4 mil milhões de euros, de acordo com a revista Forbes.

Silvio Berlusconi numa festa na sua casa na Sardenha, em 2004 (Arquivo AP)

Grande parte da fortuna pessoal dinheiro vem da Fininvest, empresa que controla a maioria do capital da Mediaset, o maior conglomerado de meios de comunicação em Itália, criado em 1978. Foi com apostas como a compra da série “Marés Vivas” ou improváveis concursos de topless que Berlusconi conseguiu fazer dos seus canais os mais vistos, mesmo numa Itália marcada pelo conservadorismo e por costumes católicos.

As suas piadas racistas e gaffes diplomáticas também fizeram manchetes, tendo numa ocasião comparado um eurodeputado alemão a um nazi. A sua descrição do ex-presidente norte-americano Barack Obama como "bronzeado", o hábito de flirtar com mulheres em cargos políticos de topo e a sua amizade com o falecido ditador líbio Muhammar Kadhafi e, mais recentemente, com o presidente russo, Vladimir Putin - especialmente depois de a Rússia ter invadido a vizinha Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022 -, ajudaram igualmente a caracterizar a sua imagem.

Mas Berlusconi nunca pediu desculpas: "Tudo o que sei é que, tanto nas políticas domésticas como nas externas, nunca cometi um único erro", disse numa entrevista em 2016. Cultivou sempre a controvérsia, tendo chegado a classificar-se como "o melhor líder político da Europa e do mundo", depois de se ter comparado com Jesus Cristo e de ter também afirmado: "Apenas Napoleão fez mais do que eu fiz. Mas eu sou definitivamente mais alto". 

Silvio Berlusconi com o presidente russo, Vladimir Putin, numa viagem a Moscovo em 2003 (Arquivo AP)

Nascido em 1936, a infância de Berlusconi foi marcada pela Segunda Guerra Mundial, na qual a Alemanha alinhou ao lado da Alemanha Nazi. Como muitas crianças de Milão, Berlusconi, de uma família de classe média-alta, foi obrigado a fugir da cidade.

Foi de volta àquela cidade do norte de Itália que começou a criar o seu império: primeiro como vendedor de aspiradores e depois como um importante empreiteiro de Milão, que sempre negou alegações de receber dinheiro da máfia para iniciar as suas atividades. Nas casas que construía colocava televisões com os seus canais, dando início à transformação da comunicação social italiana. Isto tudo aconteceu já depois de também ter trabalhado em cruzeiros como... cantor.

No entanto, foi a entrada na política que o lançou para uma carreira de controvérsias e de grande polarização.

Berlusconi para Trump ver

Um magnata a utilizar todo o seu dinheiro e fama para se autopromover numa campanha política pode ser a descrição de Donald Trump. Mas muito antes disso, em 1990, já Berlusconi o fazia.

Foi aí que decidiu romper com os partidos tradicionais e criar o seu próprio espaço político à direita. A decadência da direita foi, segundo o próprio, o grande motivo para enveredar pela política: “A política nunca foi a minha paixão. Fez-me perder muito tempo e energia. Se entrei no ringue foi apenas para prevenir os comunistas de chegarem ao poder”, afirmou em 2016, por ocasião do seu 80.º aniversário.

Só que os sucessivos escândalos e os maus resultados do país fizeram com que os seus críticos o acusassem de ter estado no governo apenas para proteger os seus negócios. Apesar de ter sobrevivido aos escândalos sexuais e às alegações de corrupção no seio do governo, foi a dimensão da crise financeira, que atingiu o pico em 2011, que o obrigou a demitir-se do cargo de primeiro-ministro.

Sílvio Berlusconi (ao centro) em 1985, então ainda designado "magnata da televisão" (Arquivo AP)

Em 2013 foi condenado por fraude fiscal, ficando temporariamente impedido de concorrer a um lugar no parlamento, além de também lhe ter sido retirada a condecoração estatal de Il Cavaliere - o mais jovem distinguido como cavaleiro da Ordem de Mérito do Trabalho. Mais tarde foi ainda condenado por subornar um senador, mas o tribunal levantou-lhe a proibição de concorrer a eleições em 2018. Um ano depois conseguia um lugar como deputado no Parlamento Europeu.

Durante todos esses anos, nos seus diversos processos judiciais por corrupção e fraude fiscal Berlusconi apresentou-se sempre como uma vítima da magistratura de esquerda. A 1 de agosto de 2013 teve uma condenação definitiva: uma pena de quatro anos de prisão por fraude fiscal no caso Mediaset, três dos quais suprimidos por uma amnistia - a pena foi confirmada pelo Supremo Tribunal.

Acabaria por conseguir regressar ao governo em 2022, mesmo que o seu partido Força Itália não tenha conseguido mais do que 8%. Mas foi suficiente para lhe valer um lugar na coligação governamental, bem como um lugar no parlamento, como senador.

O que acontece agora ao partido é uma das dúvidas maiores. Se a Mediaset deverá ser equitativamente dividida pelos cinco filhos, Berlusconi não deixou nenhum aparente “herdeiro” no Força Itália.

A ganhar a Benfica e FC Porto

Berlusconi tem mais Ligas dos Campeões no currículo do que Benfica e FC Porto juntos. Quando, em 1986, se tornou dono do histórico AC Milan, abriu caminho a 31 anos de sucesso no clube italiano.

No palmarés conta com cinco Ligas dos Campeões, oito campeonatos italianos e vários outros troféus. Acabou por deixar o clube de Milão em 2017, depois de obrigado a vender o clube para fazer face às dificuldades financeiras.

Silvio Berlusconi a segurar uma das Ligas dos Campeões que conquistou (Luca Bruno/AP)

Mas o gosto pelo futebol fê-lo tomar as rédeas do Monza, um modesto clube que nunca tinha estado no mais alto patamar do futebol italiano.

Em apenas quatro épocas a equipa conseguiu subir da terceira divisão para a Serie A, a principal de Itália, num feito histórico que continuou com uma época de sonho neste ano – o Monza conseguiu a manutenção com tranquilidade e teve vários resultados importantes.

Hiperativo e dormindo poucas horas, tinha problemas cardíacos desde os anos 1990 e implantou em 2006 um 'pace-maker' nos Estados Unidos; em 2016 foi submetido a uma cirurgia de peito aberto ao coração, em 2019 voltou ao bloco operatório devido a uma obstrução intestinal e em 2020 foi várias vezes hospitalizado devido a sequelas de covid-19.

Em 1997 já tinha sido operado a um tumor na próstata e, ao longo dos anos, foi diversas vezes internado por problemas no trato urinário; por último, já em abril de 2023, foi-lhe diagnosticada uma leucemia.

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