"Suspeitamos que há um homicídio premeditado do SNS por parte das forças políticas". Médicos em Luta recusam mais horas extra

1 out 2023, 08:00

ENTREVISTA || Susana Costa, porta-voz do movimento Médicos em Luta, diz que a falta de camas de internamento e o encerramento de diversos serviços de atendimento permanente tem tornado as urgências verdadeiros cenários de guerra

Desde as zero horas de hoje muitos médicos deixarão de fazer horas extraordinárias para além das 150 horas a que estão obrigados por lei. Uma situação que o ministro da Saúde já admitiu que poderá pôr em risco algumas urgências. De acordo com o movimento Médicos em Luta, criado em agosto nas redes sociais, a esmagadora maioria dos médicos já ultrapassou as 150 horas obrigatórias no final do primeiro trimestre do ano e muitos já fizeram este ano mais de 600 horas extraordinárias.

Em que circunstâncias e por que razão nasceu o movimento Médicos em Luta?

A 19 de agosto, um grupo de médicos da Unidade Local de Saúde do Alto Minho escreveu uma carta aberta ao ministro da Saúde informando da indisponibilidade dos médicos para a realização de horas extraordinárias acima das 150 horas previstas pela lei caso não houvesse propostas negociais válidas e sérias sobre a valorização da carreira médica. Nos dez dias finais do mês de agosto, esta carta recebeu o apoio de mais de mil médicos de diferentes especialidades de todo o país. No dia 1 de setembro, a carta e as respetivas assinaturas foram enviadas ao ministro da Saúde sem qualquer resposta por parte do mesmo até à presente data. Nas semanas seguintes, o grupo inicial destes mil médicos cresceu e, de forma espontânea, sem qualquer ligação política ou sindical, nasceu o movimento Médicos em Luta.

Qual é o principal objetivo do movimento e quais são as principais reivindicações?

O grande objetivo deste movimento é a defesa do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que os médicos entendem estar em risco e com imensa dificuldade de resposta aos utentes. As grandes reivindicações é que a tutela se sente de novo na mesa das negociações com os sindicatos médicos. Pretendemos ainda informar a população sobre o real estado do SNS e sobre informações que a população não detém.

A que formas de luta ou de protesto estão dispostos para fazerem ouvir a vossa voz?

Este é um movimento inédito em Portugal e no grupo de médicos portugueses. Os médicos portugueses estão dispostos a diversas formas de luta e de protesto que ainda não estão decididas. Esta primeira forma de luta é para que se compreenda que o SNS está assente em esforço suplementar dos profissionais e que a tutela e o SNS dependem dos médicos.

Quantos elementos compõem já o movimento?

A informação que temos é que temos mais de 4.500 médicos que compõem já o movimento.

Que problemas do SNS são identificados pelo movimento?

São diversos. O desinvestimento e a desestruturação, a falta de resposta e a falta de acesso que os doentes têm ao SNS, a falta de condições de trabalho, nomeadamente no que respeita a espaço físico, a áreas de trabalho médico, o excesso de funções a que os médicos são sujeitos, o excesso de burocracia, a falta de funcionalismo das plataformas informáticas que necessitamos para trabalhar e para fazer tudo aquilo que é necessário para um doente, a escassez de tempo que este aumento de burocracia condiciona para a observação do doente, a mercantilização da medicina no seu todo, a proletarização dos médicos, a própria definição de chefias que é feita de uma forma politizada e muitas vezes sem merecimento. São tudo problemas do SNS por nós identificados.

Fala-se muito do caos nas urgências. É um problema cuja gravidade é recente, herdada do período da pandemia ou sempre existiu?

É um problema que já tem anos e que se tem vindo a agravar porque o SNS vai deixando de responder às necessidades dos doentes e porque, nomeadamente, os doentes vão deixando de ter acesso a médicos de família. Por outro lado, temos uma população envelhecida, pobre e cada vez mais doente e isso condiciona a necessidade dos utentes de acederem ao serviço de urgência, porque é o único sítio onde vêm os seus problemas resolvidos. Durante os primeiros meses de pandemia houve uma maior tranquilidade do ponto de vista da chegada de doentes ao serviço de urgência, que não fossem realmente os doentes importantes, mas rapidamente essa questão foi agravada já depois da pandemia. Depois, a falta de camas de internamento, o encerramento de diversos serviços de atendimento permanente, tudo isto tem tornado as urgências verdadeiros cenários de guerra.

Os médicos queixam-se da falta de condições de trabalho. Em que se traduzem essas condições de trabalho precárias?

Começam no espaço físico. Os médicos têm gabinetes de atendimento muito pequenos. As macas, por exemplo, não entram, os doentes em macas são vistos noutros locais, muitas vezes no corredor. Os gabinetes de trabalho são exíguos, não permitem que uma equipa se possa sequer reunir. Na maior parte dos serviços não há um local adequado e com espaço adequado para que os profissionais possam fazer as suas refeições. Não há um local, nomeadamente nos serviços de urgência, onde os profissionais possam repousar.

Relativamente a outras condições de trabalho, temos a falta de apoio ao trabalho médico, não temos enfermeiros a trabalhar connosco, o enfermeiro deixou de trabalhar com o médico, trabalha na sua área, deixou de haver o trabalho de equipa.

Os assistentes operacionais são em número muito reduzido. Os médicos para poderem observar o doente empurram macas, preparam material, suturam sozinhos, fazem tratamentos sozinhos, estão isolados a ver doentes num gabinete. Se o doente sofrer um declínio do seu estado, se tiver um desmaio, temos de sair do gabinete e procurar auxílio, não temos como chamar ninguém. São tantas as situações que é muito difícil descrevê-las todas.

Há falta de médicos em Portugal. Mas ainda este ano entraram mais jovens em cursos de medicina do que no ano passado. O que acontece aos jovens que todos os anos saem da universidade?

Isso é uma falsidade. Não há falta de médicos em Portugal. Portugal tem entre os países da Europa o maior número de médicos por 100 mil habitantes. Há médicos em Portugal, mas a grande maioria dos médicos, ou pelo menos 50% dos médicos, não estão no SNS. Não é um serviço atrativo, não é um serviço onde haja motivação, não é um serviço onde os médicos se sintam tratados de acordo com a sua capacidade e o seu trabalho diferenciado. Os médicos não são reconhecidos nem pela tutela, nem pelas administrações, nem pelas chefias. E, portanto, os médicos saem do SNS. Isto, para além dos vencimentos serem péssimos em relação à diferenciação e à qualificação dos profissionais e ao trabalho que desenvolvem, à penosidade que têm. A evolução na carreira quase não existe e, portanto, um médico que entre na carreira médica pode ter o mesmo vencimento durante anos a fim.

E o que acontece aos médicos que se formam?

Muitos deles não ficam no país, outros dedicam-se a áreas que nada têm a ver com a SNS. Por outro lado, um médico não se forma apenas numa faculdade. O SNS é feito de vários serviços, de várias equipas, de qualificação médica e da capacidade formativa destes médicos que acabam a universidade. E começa a ser difícil a resposta formativa a estes médicos. Pode haver muitos médicos a sair com o curso de medicina, mas depois é preciso formá-los. Há um grande percurso de formação após a faculdade. O número de médicos na faculdade de medicina não se traduz numa resposta às necessidades do SNS.

O SNS vai continuar a ter a capacidade de dar resposta aos seus utentes ou mais tarde ou mais cedo corre o risco de acabar?

De há vários anos a esta parte, agravado com a presença da ‘troika’, o SNS tem vindo a dar cada vez menos resposta aos seus utentes. Essa capacidade não foi recuperada e o SNS, neste momento, já muito dificilmente é recuperável em relação ao SNS que tínhamos, antes dos diversos desinvestimentos. Suspeitamos mesmo que há até um homicídio premeditado do SNS por parte das forças políticas do nosso país.

Os números mostram que o SNS nunca recebeu tanto dinheiro como agora. A que se deve esta aparente falta de recursos? É preciso mais dinheiro ou o dinheiro está a ser mal gerido?

Na verdade, o SNS não recebe mais dinheiro agora do que previamente, se tivermos em conta a inflação e o aumento do Produto Interno Bruto. A falta de recursos, e estamos a falar fundamentalmente em recursos em médicos, é que tem vindo a diminuir e vai continuar a diminuir. Não é preciso, se calhar, muito mais dinheiro, é preciso que o dinheiro seja investido no local certo. E sem médicos não há SNS. Isso é claro e evidente.

Este caos permanente em que vive o SNS está a virar-se contra os médicos e profissionais de saúde? Têm sido notícia cada vez mais comportamentos violentos contra médicos e enfermeiros…

Obviamente que os médicos são os mais lesados pelos caos que se instala no SNS. Os médicos não conseguem fazer mais. Já fazem mais do que aquilo a que estão comprometidos, em número de consultas, em penalizarem-se com excesso de horário, a custo zero. Mas há efetivamente um movimento do Governo e das administrações para que haja um volte-face da população e uma responsabilização que a população faz aos próprios médicos e outros profissionais. E isso é verdadeiramente promíscuo. Portanto, continuará a haver comportamentos violentos contra médicos e enfermeiros porque não temos conhecimento de nenhum constrangimento que as pessoas que protagonizaram estes comportamentos violentos tenham tido. A falta de segurança dos profissionais, em especial nos serviços de urgência, é enorme. Não temos sistemas de proteção, não temos agentes de autoridade que possam ajudar-nos e, portanto, é um risco enorme estar no serviço de urgência.

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