Sete preocupações da China com a guerra de Putin

21 mar 2022, 06:20
O presidente da China, Xi Jinping, e o presidente da Rússia, Vladimir Putin. (Greg Baker/Pool Photo via AP, File)

A China continua a fazer um exercício de contorcionismo entre o apoio estratégico à Rússia, sem condenar a guerra de Putin, e a defesa dos princípios da ONU sobre soberania e integridade territorial. Sob pressão do Ocidente, onde estão os principais parceiros comerciais da China, há muitos cálculos por detrás da cautela de Xi Jinping

A China voltou a garantir que não está a enviar assistência militar à Rússia para a ofensiva na Ucrânia. "Há desinformação de que a China está a fornecer assistência militar à Rússia. Nós rejeitamo-la", declarou ontem o embaixador chinês nos Estados Unidos, embora sem especificar se essa posição também se aplicará no futuro.

Em entrevista à CBS, Qin Gang indicou que a China apenas "envia comida, medicamentos, sacos-cama e leite em pó". "Nem armas ou munições para as partes [do conflito]", acrescentou, garantindo que o país fará tudo para desescalar o conflito. No entanto, o diplomata chinês evitou confirmar se esta posição se irá manter no futuro.

A declaração do representante chinês nos EUA surgiu dois dias depois da conversa por teleconferência entre o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e o seu homólogo chinês, Xi Jinping. Nesse encontro, Biden voltou a avisar que “haverá custos” e “consequências” para a China caso apoie militarmente o aliado russo.

Após as duas horas de conversações entre Joe Biden e Xi Jinping, a China continua a apresentar-se como uma parte neutra face à guerra na Ucrânia, continua a apelar à paz e ao diálogo - embora sem tomar qualquer iniciativa concreta nesse sentido - e continua sem condenar a invasão russa, ao mesmo tempo que imputa aos EUA e à NATO responsabilidades pelo deflagrar do conflito e pela sua escalada.

Se um dos objetivos de Biden era envolver Xi Jinping nos apelos para que Putin trave a ofensiva contra a Ucrânia - aproveitando o enorme ascendente que a China tem atualmente sobre o líder russo - não parece ter alcançado qualquer resultado. “A pressão agressiva de alguns responsáveis americanos sobre a China nunca alterou o rumo da China”, comentava este sábado um académico chinês citado pelo Global Times, jornal em língua inglesa do Partido Comunista da China. Ao invés, Xi terá tentado virar a pressão para Biden, exortando os EUA e a NATO a entrarem em negociações diretas com o Kremlin. 

Sobre o outro objetivo de Biden - assegurar que a China não se envolve diretamente no conflito fornecendo material de guerra à Rússia - só o tempo dirá se foi mais bem sucedido. 

A cautela com que a China se tem movido desde o início da invasão russa da Ucrânia demonstra bem a percepção de Pequim sobre a delicadeza do que está em causa e das consequências que poderão advir deste conflito e do alinhamento chinês do lado da Rússia, o seu principal aliado estratégico. Em ano de congresso do Partido Comunista Chinês, a guerra de Putin é tudo aquilo de que Xi Jinping não precisava. O líder chinês esperava que 2022 fosse o ano da vitória sobre a covid e do relançamento económico da China, para apresentar-se com esses dois triunfos perante o congresso que lhe irá dar um terceiro mandato que nenhum líder chinês mereceu nas últimas décadas.

No ano em que espera ser colocado no panteão onde estão Mao Tse Tung e Deng Xiaoping, a guerra russa não só ofusca a consagração de Xi, como o obriga a fazer escolhas difíceis, face a um conjunto de preocupações que o homem-forte de Pequim terá de considerar.

Pressionado pelos EUA e pela União Europeia, os principais parceiros comerciais da China, e com pedidos de ajuda da Rússia, o aliado estratégico, eis as principais questões que Xi terá de colocar na balança. 

1. Situação militar

Segundo fontes da administração norte-americana, a Rússia pediu à China que forneça material militar que começa a escassear. A ser assim - e Washington transmitiu essa informação por telegrama diplomático aos seus aliados -, a ofensiva russa estará ainda em piores lençóis do que se poderá supor pela lentidão com que tem avançado no solo. Há informações desencontradas sobre que material Moscovo terá pedido a Pequim, mas tudo aponta para mísseis, drones, veículos blindados, veículos de apoio logístico, equipamento de vigilância, comida não perecível e rações de combate. 

A forma como se tem desenrolado a ofensiva russa, e a alegada escassez de armamento, equipamentos e outros bens necessários no esforço de guerra é uma das razões por que Xi estará desagradado com o seu aliado Vladimir Putin. 

Na semana passada, William Burns, diretor da CIA, foi ao Congresso dos Estados Unidos, onde assegurou que o líder chinês está “perturbado” com o que se está a passar na Ucrânia. Para além do fraco desempenho russo, Xi estará perplexo com a resistência oferecida pelos ucranianos. Outro elemento perturbador para Xi será o facto de ter sido surpreendido por esta evolução dos acontecimentos. Por um lado, porque os serviços secretos chineses “parece que não terão dito [a Xi] o que ia acontecer”; por outro lado, acrescentou Burns, “não creio que [os chineses] tenham antecipado que os militares russos se iriam revelar largamente ineficazes até agora.”

Perante este cenário, Xi sabe que só ele pode ser a tábua de salvação de Putin. Seja financiando a economia russa, abrindo-lhe janelas onde o Ocidente fechou portas e aumentando as trocas comerciais com Moscovo, seja municiando o seu esforço de guerra. 

Segundo o jornal Político, os líderes da União Europeia estão convencidos de que Pequim se inclina mesmo para fornecer material militar a Moscovo. Se assim for, isso será “game changer”, têm dito muitos analistas militares. 

A China, cuja modernização militar nas últimas décadas ficou a dever muito à Rússia, poderia retribuir o apoio do passado, agora com papéis invertidos. O gigante asiático é hoje reconhecidamente uma potência militar, e desenvolveu sistemas de reconhecimento e de comunicação em combate considerados topo de gama, bem como drones armados e outras armas teleguiadas que poderiam dar um fôlego precioso aos russos.

Mas se decidir colocar-se de forma tão clara do lado da Rússia, esse gesto também mudará o jogo noutros tabuleiros. 

2. Geopolítica

No início de fevereiro, por ocasião da abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, Xi Jinping recebeu Vladimir Putin em Pequim, naquela que foi a única deslocação do russo a uma capital estrangeira desde o início da pandemia (a única outra viagem para fora da Rússia foi a Genebra, para uma cimeira com Biden).

A cada vez maior reclusão de Putin teve uma interrupção de peso, para que, ao lado de Xi, pudessem declarar ao mundo que Rússia e China têm uma “parceria” e uma “amizade sem limites”. Nessa altura, as tropas russas já se estavam a concentrar na fronteira ucraniana, e os EUA já teriam avisado Pequim dos planos do Kremlin, pedindo a Xi que ajudasse a travar a invasão iminente. O líder chinês não só não o fez como terá passado à Rússia a informação que obteve de Washington, segundo acusam os americanos. 

A prioridade de Xi era outra: afirmar uma frente unida de russos e chineses contra um mundo ainda marcado pela superioridade americana. 

A longa declaração conjunta dessa cimeira fala na “nova era” ambicionada pelos líderes autoritários chinês e russo. Uma “nova era” em substituição da ordem mundial liderada pelos EUA. “A humanidade está a entrar numa nova era” de “multipolaridade”, em alternativa a “alguns atores” que “defendem abordagens unilaterais” e “interferem nos assuntos internos de outros estados” - a referência aos EUA, sem os mencionar, era clara.

A cereja no topo do bolo foram as declarações dos dois líderes, visando a situação de Taiwan e da Ucrânia. Putin declarou-se contra “qualquer forma de independência de Taiwan”; Xi declarou-se contra o alargamento da NATO para o Leste, englobando as democracias pró-ocidentais que faziam parte da antiga União Soviética. 

Quase dois meses depois, a “nova era” parece cada vez mais o regresso à velha era da Guerra Fria, com os EUA a liderar uma frente das democracias liberais contra a ameaça russa - e, eventualmente, o parceiro chinês. “Não creio que [os chineses] tenham antecipado que o Ocidente iria reagir com tal determinação", declarou o chefe da CIA, perante o Congresso. 

Se houve uma consequência da guerra de Putin foi o reforço da aliança EUA/Europa, bem como outras democracias da Asia-Pacifico, como o Japão, a Coreia do Sul ou a Austrália. Esse realinhamento é visto por Pequim como um retrocesso para os seus interesses. Uma colagem da China à Rússia só iria agravar a fratura.

3. Sanções económicas

Quando a Casa Branca insiste que “haverá um custo para a China” se fornecer material militar a Putin, embora não seja clara sobre que tipo de custos poderão estar em causa, a expectativa é que sejam decretadas sanções económicas. Com que extensão e consequências? Ninguém sabe. Mas não se espera nada parecido com o que tem sido imposto à Rússia. Com uma frente unida das democracias liberais? Também não se sabe, mas o peso da China enquanto parceiro de comércio externo da Europa é muito maior e mais amplo do que o da Rússia, o que poderá aconselhar medidas mais modestas da parte dos governos europeus.

Qualquer que seja a dimensão e o impacto das eventuais sanções à China (e da previsível retaliação chinesa), irá agravar um cenário económico que já é pouco otimista mesmo sem a perspetiva dessa guerra comercial. O FMI já previu o forte impacto da guerra russa nas economias mundiais, e ninguém parece em condições de escapar às consequências.

Este mês, já com a guerra a decorrer, o primeiro-ministro chinês anunciou uma perspetiva de crescimento do PIB de 5,5%. Bem acima da previsão de 4,8% feita pelo FMI, antes da guerra. Em dezembro já era 5,5% o valor previsto pelos chineses - ou seja, Pequim não incorporou qualquer impacto da guerra de Putin, apesar de esta ter feito disparar os preços da energia (de que a China é o maior importador do mundo) e dos alimentos e outras matérias-primas, de que a China é igualmente muito dependente. 

Um crescimento de 5,5%, mesmo que se confirme, será o mais baixo em três décadas para a China. E há outras nuvens sobre a economia chinesa, para além do conflito na Ucrânia e da ameaça de sanções ocidentais se Pequim se assumir do lado russo. A bolha imobiliária da China está em ebulição, a pandemia voltou em força, demonstrando o fracasso da política de “covid zero” e as insuficiências das vacinas chinesas (não são tecnologia RNA mensageiro), o regresso aos confinamentos vai afetar a indústria e à procura interna na China, e os mercados estão em constante sobressalto com sucessivas intervenções regulatórias de Pequim sobre as grandes empresas chinesas. A instabilidade das bolsas obrigou a uma intervenção política na semana passada, numa tentativa de acalmar os investidores após fortes quedas.

Neste contexto, Pequim tem sido muito crítico das sanções impostas à Rússia, pelo impacto que estão a ter na economia global, e já avisou que não tolerará sanções à China, que “não é uma parte” neste conflito. E se se tornar?

4. Instabilidade na Rússia

Para além de interesses partilhados - acima de tudo, a oposição à “ordem global americana” e à NATO -, Xi e Putin têm uma relação pessoal que facilita a articulação entre as duas capitais. O encontro entre ambos, em fevereiro, foi a 38ª vez que os dois líderes estiveram juntos desde 2013. Um número sem comparação, e que diz muito sobre a proximidade entre ambos.

Ao auxiliar Putin, Xi estaria a estender a mão ao presidente russo com que a China tem o melhor relacionamento na atribulada história da interação entre os dois países, que nos anos 50 e 60 praticamente romperam relações bilaterais.

Para além de ter razões para querer a manutenção de Putin no poder, Xi sabe que uma derrota na Ucrânia - ou algo que fosse percepcionado como tal - irá enfraquecer o inquilino do Kremlin e poderá por em risco o seu regime. Quem se seguiria? Não é fácil prever, mas neste caso impõe-se a máxima que diz que é melhor o diabo que conhecemos do que aquele que desconhecemos.

Para além disso, a eventual queda de Putin poderá lançar a Rússia num novo ciclo de instabilidade, à semelhança do que aconteceu após o desmantelamento da União Soviética. Tudo o que Pequim não deseja é o regresso da instabilidade num vizinho com o peso e dimensão da Rússia.

5. Soberania e integridade: a questão de Taiwan

Apesar do alinhamento objetivo com a Rússia - a China absteve-se nas condenações da invasão aprovadas no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral das Nações Unidas, e o seu juiz no Tribunal Penal Internacional votou ao lado do representante russo contra a ordem para que Moscovo pare de imediato a guerra e retire da Ucrânia -, Pequim não vai ao ponto de dar luz verde às pretensões territoriais de Moscovo sobre o país vizinho. Aliás, a China tem-se mantido fiel ao princípio de intangibilidade das fronteiras - já havia sido assim em 2008, quando a Rússia atacou a Geórgia, e voltou a ser em 2014, na Crimeia.

Em todas as suas declarações sobre a guerra na Ucrânia (que raramente Pequim classifica como “guerra” - opta quase sempre pela palavra “situação”), a China reitera a recusa de alterações unilaterais das fronteiras internacionalmente reconhecidas, e invoca a Carta das Nações Unidas sobre soberania e integridade territorial.

A principal razão tem a ver com o seu interesse interno: apesar de ter há vários anos conflitos nas suas fronteiras por questões territoriais - com o Japão, com a Índia, e até com a Rússia, no passado - a China defende a intangibilidade das fronteiras e a integridade territorial a pensar sobretudo em Taiwan. A ilha rebelde tem autogoverno desde 1949, mas continua a ser reconhecida pela esmagadora maioria da comunidade internacional como território chinês. E Xi tem feito questão em reafirmar a necessidade de reunificar todas as parcelas do solo da China - quando o afirma, é de Taiwan que fala. O objetivo de retomar o controlo sobre a ilha é assumido, pela força, “se necessário”, tem dito Xi.

Embora os EUA e os seus aliados temam que a invasão russa da Ucrânia sirva como guião para um passo semelhante da China em relação a Taiwan, Pequim faz questão de vincar as diferenças: no Leste da Europa há um conflito entre duas nações soberanas; Taiwan é uma questão de “política interna” para a China.

6. Relacionamento bilateral

Para além da instabilidade política e militar que resultaria de uma derrota de Putin na Ucrânia, a China pensa nas consequências para as relações comerciais entre os dois países.

Tudo aquilo de que a Rússia é um exportador relevante é importante para Pequim, seja petróleo, gás, minerais, cereais e outras matérias primas.

Desde o início da invasão da Ucrânia, a China levantou algumas restrições que existiam em relação à importação de cereais russos, e há a expectativa de que possa beneficiar das sanções comerciais do Ocidente para receber maiores fornecimentos da Rússia. Juntos, a Rússia e a Ucrânia fornecem cerca de um terço dos cereais exportados para o mundo, mas está por saber que impacto terá a guerra na produção e comércio de trigo. Para já, os preços dispararam nos mercados internacionais.

O mesmo se passa com a energia. A Rússia é um dos maiores exportadores globais de petróleo e gás, e a China já é um grande cliente do primeiro, mas ainda não do segundo. Cerca de trinta por cento das exportações russas de petróleo vão para a China, e cerca de metade tem como destino a Europa. Se países europeus como a Alemanha ou a Holanda reduzirem as compras de petróleo à Rússia (ou Moscovo fechar a torneira), a China poderia beneficiar, aumentando as compras ao vizinho. A Índia já o está a fazer e - segundo notícias deste fim de semana - com desconto. Pequim poderá fazer o mesmo. A Índia terá pago as últimas compras em rupias; a China poderá fazê-lo em Renminbi, diminuindo o peso do dólar no comércio internacional de petróleo. 

Quanto ao gás, a China compra só 5% das exportações russas, e poderá também beneficiar do desvio de produção que atualmente vem para a Europa.

No limite, a falência da economia russa poderá permitir à China entrar em força no mercado russo, sobretudo nos setores da energia e das matérias-primas. Ou seja, a replicação, a uma escala muito maior, do que aconteceu quando Portugal estava sob resgate e capitais chineses compraram empresas estratégicas como a EDP, a REN, ou banca e seguros.

Apesar dessas eventuais vantagens, uma crise energética global afetaria sempre a China, assim como uma crise alimentar  teria impacto no gigante asiático - não por acaso, a autonomia alimentar da China foi um dos objetivos nacionais traçados pelo primeiro-ministro na sessão anual do Congresso Nacional Popular. 

7. Dano reputacional

A China tem-se apresentado, há anos, contra a superpotência EUA com um discurso de multilateralismo, paz e prosperidade. Tem aproveitado o seu boom económico no plano interno - onde havia elevados índices de pobreza surgiu uma classe média robusta - e externo: fortíssimos investimentos um pouco por todo o mundo, sobretudo em países de África e da América Latina, mas também na Ásia e Europa. A iniciativa Belt and Road, de investimento chinês em infraestruturas, criando uma rede de influência em vários continentes, foi uma das grandes armas de afirmação do soft power chinês. 

O maior solavanco nesta afirmação global foi o surgimento do SARS-Cov2 - em relação ao qual permanecem grandes dúvidas sobre as responsabilidades chinesas - a isso, Pequim respondeu com uma firme estratégia de diplomacia de vacinas (quando as criou) e de material médico, de ventiladores a máscaras.

Agora, tudo isso pode sofrer um retrocesso, se a China se aliar à Rússia num conflito que é extremamente impopular, sobretudo no Ocidente e nas democracias liberais.

Cientes desse risco, os responsáveis de Pequim têm apresentado a sua posição ambígua nesta guerra como o ponto de equilíbrio e ponderação. Este fim de semana, o ministro dos Negócios Estrangeiros salientou que a posição da China sobre a questão da Ucrânia é “objetiva e justa”, e “o tempo provará que está no lado certo da história”. 

Wang Yi insistiu que o ponto mais importante é que a China “é sempre uma força para salvaguardar a paz mundial”, numa “tradição enraizada na história e cultura” do país, e na sua política externa. “A China continuará a fazer o seu julgamento de forma independente, objetiva e justa, com base nos méritos da questão”, disse Wang, assegurando que nunca aceitará pressão externas ou suspeitas infundadas. A bola está do lado de Xi Jinping.

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